Série: 1944-2024, 80 anos de intervenção do Banco Mundial e do FMI, basta!

O FMI e o Banco Mundial em tempos de coronavírus: vira o disco e toca o mesmo

18 de Setembro por CADTM


O FMI e o Banco Mundial têm 80 anos. 80 anos de neocolonialismo financeiro e de imposição de políticas de austeridade em nome do pagamento da dívida. 80 anos já bastam! As instituições de Bretton Woods devem ser abolidas e substituídas por instituições democráticas ao serviço de uma bifurcação ecológica, feminista e antirracista. Para assinalar estes 80 anos, publicamos todas as quartas-feiras, uma série de artigos que analisam em pormenor a história e os danos causados por estas duas instituições.



Face à catástrofe económica e ao drama social dos planos de ajustamento estrutural (PAE) impostos às populações do Sul, a partir dos anos 1990 numerosas vozes denunciaram os promotores dessas políticas: o FMI e o Banco Mundial. Além das acusações das ONG e dos meios altermundialistas, a crítica alastrou a sectores inesperados, como é o caso de Joseph Stiglitz, ex-economista-chefe do Banco Mundial, que em 2002 subscreveu uma acusação contra o FMI [1].

Na sequência destas acusações, a subida dos preços das matérias-primas permitiu a uma série de países obterem as divisas necessárias ao reembolso antecipado do FMI, libertando-se assim das condições catastróficas associadas aos empréstimos concedidos pela instituição. Confrontadas com uma crise de legitimidade e uma progressiva escassez de clientes, as instituições de Bretton Woods não se pouparam a esforços para apresentarem uma nova imagem.

Ao anunciar, a partir de 1999, o abandono dos tão criticados PAE e a reorientação da sua acção para a luta contra a pobreza, o Banco Mundial pretendia dar mostras de ter adoptado uma nova moral.

Quanto ao FMI, quando a crise da dívida no Norte lhe proporcionou uma bela oportunidade para repor a sua saúde financeira, os seus dirigentes aproveitaram para gritar aos quatro ventos uma pretensa remodelação da instituição. «O FMI está irreconhecível? De facto, ele mudou!» [2], garantiu Dominique Strauss-Khan à televisão francesa em 2011.

O Banco Mundial também se tem gabado da sua luta contra a mudança climática.

Mas por detrás destes discursos … haveria realmente algo de novo nas instituições de Bretton Woods?

É evidente que não. Um exemplo, a título de demonstração: o Banco Mundial continua a subsidiar massivamente a produção eléctrica a partir de combustíveis fósseis. [3]


Terão acabado os ajustamentos estruturais impostos pelo FMI?

Em outubro de 2014, num documento intitulado «Resposta do FMI à Crise Financeira e Económica», a instituição afirmou ter aprendido com os seus erros e assegurou que desde a crise financeira de 2008 nenhum empréstimo concedido estava associado às condições draconianas utilizadas no passado. Um centro londrino de investigação económica decidiu submeter esta afirmação à prova dos factos. [4] O resultado é iniludível: nos 41 países envolvidos em empréstimos da instituição, 31 aplicaram medidas de austeridade orçamental num contexto de recessão ou de crescimento lento.

A situação se agravou a partir de 2010. Segundo Isabel Ortiz e Matthew Cummins, «generalizou-se em 2010 uma contracção prematura nos gastos, apesar da necessidade urgente de assistência governamental às populações vulneráveis». Segundo esses autores, em 2013, a contracção dos gastos públicos espalhou-se e intensificou-se consideravelmente, afectando 119 países em termos de PIB PIB
Produto interno bruto
O produto interno bruto é um agregado económico que mede a produção total num determinado território, calculado pela soma dos valores acrescentados. Esta fórmula de medida é notoriamente incompleta; não leva em conta, por exemplo, todas as actividades que não são objecto de trocas mercantis. O PIB contabiliza tanto a produção de bens como a de serviços. Chama-se crescimento económico à variação do PIB entre dois períodos.
. Eles projectaram que isto chegaria a 132 países até 2015.

Quando um antigo analista do Banco Mundial, Mohammed Mossallem, estudou as condições impostas nos acordos de empréstimo à Tunísia, Marrocos, Jordânia e Egipto após 2011, encontrou todos os ingredientes dos programas de ajustamento estrutural da década de oitenta

Ainda segundo Isabel Ortiz e Matthew Cummins, «Em relação às medidas de austeridade, uma revisão dos relatórios dos países do FMI publicados desde 2010 indica que os governos estão considerando várias estratégias de ajuste. Estas incluem: (i) eliminação ou redução dos subsídios, inclusive para combustíveis, alimentos e insumos agrícolas (em 100 países), (ii) redução ou limitação da massa salarial, inclusive salários na educação, saúde e outros sectores públicos (em 98 países), (iii) racionamento e maior selectividade das acções de assistência e segurança social (em 80 países), (iv) reforma da previdência (em 86 países); (v) reforma do sistema de saúde (37 países), e (vi) flexibilidade laboral (32 países). Muitos governos também estão a considerar medidas paralelas para aumentar as receitas, o que pode afectar negativamente as populações vulneráveis, principalmente através da introdução ou expansão de impostos sobre o consumo, tais como o imposto sobre o valor acrescentado (IVA) sobre mercadorias que afectam de forma desproporcional as famílias pobres (em 94 países)» [5].


O caso dos países do mundo árabe parece emblemático deste ponto de vista

Inquieto com o afastamento desses países da rota neoliberal a partir de 2011 – em resultado dos levantamentos populares que derrubaram os ditadores da região –, o FMI multiplicou as suas afirmações tranquilizadoras. Nos relatórios que se seguiram à «Primavera Árabe», a instituição sublinhou a dimensão social dos programas que preconizava: «crescimento inclusivo», políticas sociais para os mais vulneráveis, etc.

No entanto, quando um antigo analista do Banco Mundial, Mohammed Mossallem, estudou as condições associadas aos acordos de empréstimo assinados com a Tunísia, Marrocos, Jordânia e Egipto [6] após 2011, encontrou todos os ingredientes dos PAE dos anos 80: redução dos impostos sobre o sector privado, aumento do imposto sobre o consumo (o imposto mais injusto), liberalização dos investimentos, redução dos subsídios do Estado, aumento dos preços da energia, desregulamentação do mercado de trabalho. Quanto ao conteúdo dos planos de austeridade impostos aos países da Zona Euro Zona euro Zona composta por 18 países que utilizam o euro como moeda: Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Espanha, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Irlanda, Itália, Letónia (a partir da 1-01-2014), Luxemburgo, Malta, Países Baixos, Portugal, Eslováquia e Eslovénia. Os 10 países membros da União Europeia que não participam na zona euro são: Bulgária, Croácia, Dinamarca, Hungria, Lituânia, Polónia, República Checa, Roménia, Reino Unido e Suécia. desde 2010, eles inscrevem-se na linha do tratamento infligido aos países do Norte de África.


Mea culpa sobre a austeridade: remissão profunda ou lágrimas de crocodilo?

Em anos recentes temos visto uma diversidade de relatórios internos criticando vivamente as políticas do FMI:

  • Janeiro de 2013: Olivier Blanchard, economista-chefe do FMI, revela que o FMI subestimou largamente o impacto negativo da austeridade sobre o crescimento económico. Este erro de cálculo nada tem de anedótico, tendo em conta que foi calculado em 300 %! [7]
  • Fevereiro de 2014: Após dois estudantes terem demolido um estudo realizado por ex-economistas-chefe do FMI, que afirmavam que uma dívida pública superior a 90 % do PIB implicava automaticamente um abrandamento do crescimento económico, os peritos do FMI confirmaram que não existe um limiar crítico da dívida pública. [8]
  • Junho de 2016: Três economistas do FMI publicam um estudo intitulado «O Neoliberalismo Foi Sobrestimado?», no qual afirmam: «em vez de ajudar o crescimento económico, certas políticas neoliberais aumentaram as desigualdades e, por consequência, comprometeram qualquer hipótese de expansão económica permanente».
    Terão estas críticas provocado uma mudança de rumo da instituição?

Para começar, ainda que os títulos gordos dos jornais dêem a ilusão de que os autores deste tipo de relatórios são muito heterodoxos, uma leitura atenta das suas obras mostra que os seus propósitos são bastante comedidos. A título de exemplo: embora o estudo «O Neoliberalismo Foi Sobrestimado?» revele números que mostram claramente os limites do modelo neoliberal, ao mesmo tempo recorda que há «muitas razões de júbilo na agenda neoliberal» [9]. Note-se, de resto, que na maioria dos casos os documentos heterodoxos e críticos que são publicados no website do FMI só comprometem os seus autores e não o FMI como instituição.

A intervenção do FMI na Grécia é emblemática desta persistência na aplicação de políticas neoliberais que favorecem o grande capital, reforçam as desigualdades sociais e destroem conquistas sociais essenciais
Notemos além disso que o jogo da contradição não é novidade no seio das instituições de Bretton Woods. Mas a questão está em saber se esta autocrítica leva ou não a mudanças reais nas orientações da instituição.

Ora a intervenção do FMI na Grécia é emblemática [10] desta persistência na aplicação de políticas neoliberais que favorecem o grande capital, reforçam as desigualdades sociais e destroem conquistas sociais essenciais. Em 2013 um estudo independente de avaliação do FMI [11] reconheceu que o primeiro plano de resgate, de 2010, se saldou em «falhanços notáveis». No entanto, as receitas austeritárias continuaram de vento em popa.

Em junho de 2016, a mesma organização «independente» emitiu um relatório que dava conta da mesma constatação de falhanço da acção do FMI na Grécia. Mas desta vez os peritos do Fundo vão ao ponto de afirmar que apesar de todos os limites da acção do FMI, é «impossível construir um cenário alternativo». Está visto que o famoso TINA (there is no alternative) nunca chegou a abandonar os corredores da instituição!


A reforma democrática do FMI … ou: como a montanha pariu um rato

Desde a sua criação que a estrutura directiva no seio do FMI beneficia os EUA e seus aliados vitoriosos à saída da Segunda Guerra Mundial. Profundamente desigual, esta repartição do poder, que assenta na regra «1 dólar = 1 voto», tem sido cada vez mais contestada pelos países emergentes que queriam uma fatia do bolo. Para tentar dar um ar de democracia e satisfazer as exigências dos países em expansão, foi introduzida uma reforma, para aumentar as quota-partes [12] e a transferência de direitos de voto, que entrou em vigor no início de 2016.

Nunca houve intenção de adoptar um sistema que permitisse a todos os países membros terem voz na matéria, mas sim contentar os «países emergentes» cujo peso econômico se tinha tornado demasiado grande para ser ignorado
Na realidade nunca houve intenção de adoptar um sistema que permitisse a todos os países membros terem voz na matéria, mas sim contentar os «países emergentes» cujo peso económico se tinha tornado demasiado grande para ser ignorado. Se por um lado os 6 % de direitos de voto repartidos de novo foram para os BRICS BRICS O termo BRICS (acrónimo de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) foi utilizado pela primeira vez em 2001 por Jim O’Neill, na altura economista da Goldman Sachs. O forte crescimento económico destes países, combinado com a sua importante posição geopolítica (estes 5 países reúnem quase metade da população mundial em 4 continentes e quase um quarto do PIB mundial), fazem dos BRICS actores importantes nas actividades económicas e financeiras internacionais. (não incluindo a África do Sul), por outro lado, não surpreende que essa operação tenha sido feita à custa dos países mais pobres, perante os quais o FMI se comprometeu, não sem boa dose de cinismo, a «preservar» [13] os seus direitos de voto. O Bangladesh sentiu sem dúvida reforçado o seu poder de acção, pois dispõe agora de 0,24 % de direitos de voto para defender os interesses dos seus 155 milhões de habitantes!

Por seu lado, os EUA saíram duplamente vencedores desta operação. Não só mantiveram o domínio da estrutura – pois apesar de cederem 0,3 % dos seus direitos de voto [14], conservam o direito de veto –, como continuam a ser os timoneiros de um navio ainda maior, uma vez que a reforma também consistiu em quase duplicar os recursos do Fundo, elevando-os a 660 mil milhões de $US.

«Estas reformas vão reforçar a posição dominante dos Estados Unidos nesta instituição crucial, ao mesmo tempo que fornecem ao Fundo uma sólida base financeira.»Jacob Lew, secretário do Tesouro americano, 2015

Para o Banco Mundial, a última grande reforma deste tipo ocorreu em abril de 2010, sob a presidência do controverso Robert Zoellick. Além de um aumento de $US 86,2 mil milhões de $US no capital do BIRD, os países do Sul viram os seus direitos de voto aumentados em 3,13 pontos percentuais, ou 47,19 % do total de votos. Em comparação com os 15,44 % dos Estados Unidos, isto é muito pouco para estes 135 países que abrigam cerca de 85 % da população mundial [15].


«DSRP», «Doing business», «EBA» … nomes novos, velhas políticas!

A partir de finais da década de 1990 abateu-se uma chuva de críticas sobre o Banco Mundial. A tal ponto que se tornou cada vez mais difícil à instituição promover as PAE, que estavam no centro da polémica. Face a esta crise de legitimidade, o Banco vai-se desdobrar em piruetas semânticas, sem tocar na lógica neoliberal inscrita no seu ADN.

Entre os seus subterfúgios encontramos nomeadamente a iniciativa dos Países Pobres Muito Endividados (PPME), que, por via de um alívio de dívida limitado e controlado pelas IFI, permite – ainda hoje – impor aos países mais pobres políticas semelhantes aos planos de ajustamento estrutural e mantê-los na espiral da dívida. Por outro lado, em 2002, muito pouco tempo depois do Banco anunciar o fim das PAE, um novo instrumento chamado Doing Business («fazer negócio») vê a luz do dia … O acaso tem destas coisas!

Os governos dos países do Sul entregam-se então a uma concorrência desenfreada entre si, a fim de oferecerem ao sector privado as condições mais atractivas, conscientes de que o Banco Mundial e os credores bilaterais orientam as suas linhas de crédito em função dos resultados obtidos nessa classificação
Num relatório anual, surge a proposta de classificar os 189 países membros do Banco Mundial segundo a sua capacidade de manter um bom «clima de negócios» para os investidores, em função de vários critérios: desregulamentação máxima, fiscalidade amiga do sector privado, legislação mínima para protecção dos direitos dos trabalhadores e colocando-os em concorrência uns contra os outros.

Os governos dos países do Sul entregam-se então a uma concorrência desenfreada entre si, a fim de oferecerem ao sector privado as condições mais atractivas, conscientes de que o Banco Mundial e os credores bilaterais orientam as suas linhas de crédito em função dos resultados obtidos nessa classificação. E o Banco Mundial rejubila! Em 2014 felicita-se pelo facto de o Doing Business ter inspirado mais de um quarto das 2100 reformas registadas após a sua criação. [16]

E o Banco não fica por aí! A pedido expresso do G8, que convidou em 2012 a «elaborar um índice para classificar os países quanto ao clima de negócios no sector agrícola» [17], o Banco desenvolveu o instrumento Enabling the Business of Agriculture (EBA) [18]. Financiado pela fundação de Bill e Melinda Gates, assim como pelos governos estado-unidense, inglês, dinamarquês e holandês, o EBA decalcou do Doing Business a sua metodologia.

Ao valorizar o acesso ao consumo de produtos não orgânicos e ao pressionar para uma agricultura sob contrato, o EBA permite às grandes multinacionais do agronegócio levar ainda mais longe a sua influência. [19] A lógica defendida pelo Banco Mundial entra em total colisão com a realidade e os interesses da agricultura familiar, que ocupava 80 % das explorações agrícolas nos países do Sul.

Limitado no início a um projecto piloto que abrangia 10 países voluntários, o relatório de 2016 já se tinha esticado a 40 países e ambicionava cobrir o máximo de países em tempo recorde.

Tendo em conta todos estes dispositivos, é difícil perceber em que medida o Banco Mundial se teria tornado, como ele próprio proclama, uma organização de luta contra a pobreza.


As controvérsias em torno do Doing Business

Mas, mais uma vez, a realidade rapidamente abalou a instituição. Além de múltiplas acusações de movimentos sociais, sindicatos e professores universitários, Paul Romer, então economista-chefe do Banco Mundial, [20] fez uma série de outras acusações, apontando, entre outras coisas, a queda de 23 posições na classificação do Chile, então presidido pela «socialista» Michelle Bachelet, e o viés ideológico (abertamente neoliberal) na metodologia e elaboração do relatório. Após ter sido chamado à ordem pelo Presidente Jim Yong Kim, Paul Romer apresentou a demissão em janeiro de 2018. Em agosto de 2020, o próprio Banco Mundial anunciou, a contragosto, a suspensão da publicação do relatório 2020, após terem sido comunicadas «uma série de irregularidades relativas a mudanças nos dados de Doing Business 2018 e Doing Business 2020, [...] publicados em 2017 e 2019, respectivamente». [21] Estas mudanças não eram consistentes com a metodologia Doing Business.


«O Banco Mundial espezinha os direitos humanos!»

Seria razoável esperar que uma organização que pretende lutar contra a pobreza integrasse o respeito pelos direitos humanos como um dos seus critérios fundamentais de acção. No entanto, e apesar de o Banco ter a obrigação oficial de respeitar as regras do direito internacional [22], há mais de 76 anos que esses princípios não saem dos confortáveis gabinetes de Washington.

«O Banco Mundial despreza os direitos humanos. Encara-os mais como uma doença infecciosa, do que como valores e obrigações universais.» [23]
Philip Alston, relator especial da ONU sobre a pobreza extrema e os direitos humanos, 2015

Para «justificar» esta atitude, o Banco Mundial esconde-se atrás da sua missão, que, limitando-se a considerações económicas, o impediria de abordar noções demasiado políticas. É difícil compreender de que modo essa missão pretensamente técnica o pode colocar acima do direito internacional. De resto, o Banco Mundial não viu qualquer problema em arquitectar justificações quando se tratou de integrar questões como a corrupção, o branqueamento de capitais, o financiamento do terrorismo ou a governança, que inicialmente não faziam parte das suas prerrogativas.


O Banco Mundial como zona sem lei

Colocando-se acima das leis, o Banco Mundial não se cansa de esbofetear os direitos humanos fundamentais dos povos do Sul. Entre inúmeros exemplos, citemos o inquérito de campo realizado em 14 países pelo Consórcio Internacional dos Jornalistas de Investigação (ICIJ), [24] que revela que os projectos financiados pelo Banco obrigaram cerca de 3,4 milhões de pessoas a abandonar os seus domicílios desde 2004, por vezes com recurso a forças policiais armadas encarregadas de as expulsar. Não se trata de casos isolados, pois as instâncias da ONU e as comissões de peritos independentes não se páram de confirmar que vários projectos financiados pela Sociedade Financeira Internacional (SFI), que é uma das instâncias do Banco Mundial, resultaram em graves infracções aos direitos humanos: açambarcamento de terras, repressão, prisões arbitrárias ou assassínios, a fim de fazer calar os movimentos de protesto contra certos projectos financiados pelo Banco Mundial.


O escandaloso fiasco dos «pandemic bonds» do Banco Mundial

Em julho de 2020, o Banco Mundial renunciou de colocar nos mercados financeiros uma nova emissão de títulos«pandémicos» [25] (pandemic bonds no jargão dos fundos de investimento e da imprensa financeira) depois de ter sido criticado pela sua lentidão na entrega de ajuda às nações pobres que sofriam de epidemias graves. [26]

Os fundos de investimento e os bancos privados que compraram estes títulos em 2017 obtiveram lucros suculentos, num total de quase US$ 100 milhões no final de fevereiro de 2020 !
O Banco Mundial lançou o programa «panemic bonds» em 2017, no rastro da epidemia de Ebola de 2014 em África. Para que um país tivesse acesso a este programa para responder a uma epidemia, tinha de demonstrar que a epidemia tinha causado pelo menos 2.500 mortes. Em 2018, a República Democrática do Congo teve então que esperar até que a epidemia causasse bastantes estragos para poder receber assistência. Isto havia provocado fortes críticas.

O Banco Mundial emitiu esses títulos em 2017 por um montante de $US 320 milhões, oficialmente destinados a ajudar os países em desenvolvimento a lidar com um grave surto de doença infecciosa [27].

Os fundos de investimento e os bancos privados que compraram estes títulos em 2017 obtiveram lucros suculentos porque o Banco lhes garantiu um retorno de dois dígitos, ou seja, bem mais de 10 %. Os detentores desses títulos, incluindo o Baillie Gifford, um fundo de investimento escocês, Amundi (propriedade do banco francês Crédit Agricole) e Stone Ridge Asset Management, uma empresa financeira com sede em Nova Iorque, receberam pagamentos de juros que totalizaram quase US$ 100 milhões no final de fevereiro de 2020 !

Em meados de abril de 2020, mais de dois meses depois de o vírus ter começado a espalhar-se no mundo, as condições para o pagamento de quase 200 milhões de dólares foram finalmente cumpridas. Os 64 países que terão que dividir os escassos US$ 195 milhões terão direito entre US$ 1 milhão e US$ 15 milhões, dependendo de seu tamanho. A maior quantia disponível, US$ 15 milhões, foi alocada à Nigéria e ao Paquistão.

Uma segunda versão do Pandemic Emergency Financing Facility (PEF) – assim chama o banco os «títulos pandémicos» – seria lançada este ano após o Banco Mundial ter declarado no início de 2019 que estava fazendo ajustes estruturais antes de comercializar o novo produto em ou por volta de maio de 2020. Finalmente, diante de críticas crescentes, o Banco Mundial decidiu não passar para a Fase 2.


BM/FMI e a crise de 2020 no contexto da pandemia de coronavírus

Governos e grandes instituições multilaterais como o Banco Mundial, o FMI e bancos regionais de desenvolvimento têm usado o pagamento da dívida pública como uma ferramenta para implementar políticas que deterioraram os sistemas de saúde pública: eliminação de postos no sector de saúde, precarização dos contratos de trabalho, supressão de leitos hospitalares, encerramento de postos de saúde, aumento do custo da saúde tanto em relação aos cuidados como aos medicamentos, subinvestimento em infraestrutura e equipamentos, privatização de vários sectores de saúde, subinvestimento no sector público de pesquisa e desenvolvimento de tratamentos, em benefício dos interesses dos grandes grupos farmacêuticos privados...

Mesmo antes do surto da epidemia de Covid-19, estas políticas já haviam resultado em enormes perdas de vidas e os trabalhadores da saúde tinham organizados protestos no mundo inteiro.

Se quisermos ter os meios para combater o coronavírus e, além disso, melhorar a saúde e as condições de vida das populações, são necessárias acções de emergência; a suspensão imediata do pagamento da dívida e, melhor ainda, o seu cancelamento deve ser uma prioridade.

Nem o Banco Mundial nem o FMI cancelaram dívidas desde o início da pandemia do coronavírus. Estas duas instituições fizeram numerosas declarações com o objetivo de dar a impressão de que estão a tomar medidas muito fortes. Isto é completamente falso
Acontece que nem o Banco Mundial nem o FMI cancelaram dívidas desde o início da pandemia do coronavírus [28]. Estas duas instituições fizeram numerosas declarações com o objetivo de dar a impressão de que estão a tomar medidas muito fortes. Isto é completamente falso. O mecanismo estabelecido pelo FMI, o BM e o G20 é muito semelhante ao mecanismo estabelecido após o tsunami que atingiu a Índia, Sri Lanka, Bangladesh e Indonésia em dezembro de 2004. [29] Ao invés de cancelamento, os credores públicos estão simplesmente a adiar as datas de vencimento. Quanto ao FMI, ele não interrompe o reembolso, nem mesmo o suspende. Criou um fundo especial que é alimentado pelos países ricos e do qual o FMI retira para se reembolsar a si mesmo.

Pior ainda, desde março de 2020, o FMI prorrogou acordos de empréstimo que implicam a continuação das medidas estruturais listadas acima.

Quanto ao Banco Mundial, desde março de 2020, tem recebido mais reembolsos dos países em desenvolvimento do que concedeu sob a forma de doações ou empréstimos.

Tradução de Alain Geffrouais. Revisão e edição de Rui Viana Pereira.


Notas

[1Joseph E. Stiglitz, La Grande Désillusion, Fayard, julho/2002.

[2Declarações prestadas ao canal France 2, 20/02/2011. Citado no artigo de Christian Chavagneux, «Le FMI a-t-il vraiment changé?», Alternatives Économiques, n° 301, abril/2011.

[3Este capítulo inclui uma versão actualizada e ampliada de Emilie Paumard, «Será que o FMI e o Banco Mundial Aprenderam com Seus Erros?», 13/10/2017, https://www.cadtm.org/Le-FMI-et-la-Banque-mondiale-ont-ils-appris-de-leurs-erreurs. Milan Rivié contribuiu para a actualização do texto e Éric Toussaint realizou pesquisas adicionais e a edição final. Agradecimentos a Claude Quémar pela revisão.

[5Isabel Ortiz e Matthew Cummins, «The Age of Austerity», http://www.cadtm.org/L-Ere-de-l-Austerite.

[6No momento em que foi feito o estudo de Mohammed Mossallem, ainda não fora concluído o acordo de empréstimo com o Egipto. Por fim o FMI validou um acordo de empréstimo de 12 mil milhões de dólares em novembro de 2016.

[7Hubert Huertas, «Extraordinaire: l’austérité est une erreur mathématique!», France Culture, 9/01/2013.

[9Jonathan D. Ostry, Prakash Loungani, & Davide Furceri, «Neoliberalism: Oversold?», FMI, junho/2006.

[10Éric Toussaint, «Secret IMF Documents on Greece commented by Eric Toussaint (CADTM)», https://www.cadtm.org/Secret-IMF-Documents-on-Greece.

[11FMI, «Greece: Ex Post Evaluation of Exceptional Access under the 2010 Stand-By Arrangement», IMF Country Report n.º 13/156, junho/2013.

[12A quota-parte de um país membro determina o seu envolvimento financeiro máximo no FMI, assim como o seu poder de voto. Em março de 2016 o total de quotas-partes ficou estabelecido em 204,1 mil milhões de direito de saque especial (DSE), o que equivale a 285 mil milhões de $US.

[15«Banco Mundial Reforma o Poder de Voto, Recebe Injeção de US$ 86 Bilhões’, 25 de abril de 2010, https://www.worldbank.org/pt/news/press-release/2010/04/25/world-bank-reforms-voting-power-gets-86-billion-boost.

[16World Bank Group, «Doing Business 2014 - Understanding Regulations for Small and Medium-Size Enterprises», 2013.

[17«Fact sheet: G-8 action on Food Security and Nutrition». Comunicado de imprensa, The White House, 18 maio 2012, citado em The Oakland Institute, «Les Mythes de la Banque mondiale sur l’Agriculture et le Développement», 2014, p. 5.

[18World Bank Group, «Améliorer le climat des Affaires dans l’Agriculture, Rapport d’Etape», 2015, p. V.

[19Rémi Vilain, « La nouvelle révolution verte en Afrique subsaharienne », CADTM, dezembro/2015.

[20«Paul Romer, le très polémique économiste en chef de la Banque mondiale, démissionne», 25/01/2018, https://www.lemonde.fr/economie/article/2018/01/25/paul-romer-le-tres-polemique-economiste-en-chef-de-la-banque-mondiale-demissionne_5246801_3234.html.

[21Banco Mundial, «Doing Business – Irregularidades nos Dados», 27/08/2020, https://www.worldbank.org/pt/news/statement/2020/08/27/doing-business---data-irregularities-statement.

[22A Comissão da ONU para os Direitos Humanos, Sociais e Culturais chamou a atenção, numa declaração oficial datada de 24/junho/2016, que o Banco Mundial, como qualquer outra organização internacional, tem imperativamente de respeitar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os princípios gerais do direito internacional e os Pactos de 1966 sobre os direitos humanos. Ver: E/C.12/2016/1 «Public debt, austerity measures and the International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights». Statement by the Committee on Economic, Social and Cultural Rights.

[23Philip Alston, «Report of the Special Rapporteur on extreme poverty and human rights», A/70/274, 4/agosto/2015.

[24Xavier Counasse, «Enquête internationale: 3,4 millions de personnes expulsées par la Banque mondiale», Le Soir, 16/abril/2015.

[25«World Bank Abandons Pandemic Bond Instrument After Disastrous Covid-19 Response», Bretton Woods Project, https://www.brettonwoodsproject.org/2020/10/world-bank-abandons-pandemic-bond-instrument-after-disastrous-covid-19-response/.

[26Financial Times, «World Bank Ditches Second Round of Pandemic Bonds», 5/07/2020, https://www.ft.com/content/949adc20-5303-494b-9cf1-4eb4c8b6aa6b (acesso pago).

[27Aqui está o que pode ser encontrado no sítio do Banco Mundial: «com subscrição em julho de 2017, o seguro incluía duas classes de activos, cada uma consistindo de títulos e swaps. A Classe A consistia de $ 225 milhões em títulos e $ 50 milhões em swaps, e a Classe B consistia de $ 95 milhões em títulos e $ 55 milhões em swaps. Os títulos foram emitidos ao abrigo do Global Bond Issuance Facility do BIRD, parte do programa de títulos com capital de risco criado em 2014, em parte para repassar o risco de desastres aos mercados de capitais». Fonte: https://www.bancomundial.org/es/topic/pandemics/brief/fact-sheet-pandemic-emergency-financing-facility.

[28Milan Rivié, «6 mois après les annonces officielles d’annulation de la dette des pays du Sud: Où en est-on?», 17/092020. Disponivel em: 18943.

[29Ver Èric Toussaint e Damien Millet, Les Tsunamis de la dette, Éditions Syllepse et CADTM, Paris-Liège, 2005. 1280.

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