O grito argelino por uma transição democrática

1 de Julho de 2019 por Jérôme Duval


Manifestante transporta cartaz com uma citação de Matoub Lounès durante a marcha em Argel a 12 de abril de 2019. Foto de Jérôme Duval

Na Argélia, a palavra de ordem Yatnakaw ga’, “vão-se embora todos”, resume bem a vontade popular, amplamente difundida, de pôr fim ao “sistema Bouteflika”. Trata-se de desencadear um processo de transição para uma Segunda República.



Em homenagem a Ramzi Yettou: vítima da repressão, morto aos 23 anos, na sexta-feira 19 de abril, em consequência de uma hemorragia interna e de ferimentos na cabeça, após ter recebido golpes da polícia, durante a Grande Marcha, na sexta dia 12 de abril [1]. É o segundo mártir desde o começo do movimento em 22 de fevereiro, depois de Hassan Benkhedda, filho de Youcef Benkhedda grande figura do nacionalismo e da revolução argelina anticolonial, ter sido morto a 1º de março, também numa manifestação em Argel, sob circunstâncias ainda não esclarecidas. O site TSA (Tout Sur l’Algérie) lembra-nos que “Hassan Benkhedda era também sobrinho do mártir Mohamed Al Ghazali Al Hafaf, o primeiro a erguer a bandeira argelina, em 1 de maio de 1945, antes de ser brutalmente assassinado pelo exército francês" [2].

Em eco, as palavras do cantor, músico, autor-compositor-intérprete e poeta Kabyle Lounes Matoub [3], assassinado em 25 de junho de 1998, ressoam noutro dia, desde a insurreição das consciências na Argélia: "Não espero nada de um poder corrupto. E eu não espero nada da alternativa fundamentalista. Eu não espero nada de um poder desacreditado por toda a população. A maturidade popular ultrapassa a maturidade governamental no nosso país. Os assassinos devem comparecer perante os tribunais. Eu, eu sou apenas um poeta que é uma testemunha do meu tempo.”


Os mandatos da vergonha

Em numerosos países de África, os Chefes de Estado beneficiam do apoio consistente do sistema, que criaram para se manterem no poder, custe o que custar, até mesmo para modificar a constituição para lançar os seus novos mandatos – uma barreira democrática que se rasga ao longo do tempo.

No Egito, o presidente Abdel Fattah al-Sissi, eleito em 2014 num simulacro de eleição democrática, sob o regime dos militares – brutalmente reinstaurado pelo próprio no verão de 2013 –, modifica a Constituição a fim de passar o seu segundo mandato de quatro para seis anos, estendendo o seu termo para 2024, o que lhe possibilitará disputar um terceiro mandato... até 2030.

No Uganda, a 18 de abril, o Supremo Tribunal valida uma medida removendo o limite de idade de 75 anos para ser candidato à presidência, uma decisão contestada, mas aprovada no final de 2017, que permitirá ao presidente Yoweri Museveni, no poder desde 1986, apresentar-se em 2021 para um sexto mandato. A Constituição já tinha sido alterada em 2005, o que lhe permitiu concorrer aos 3º, 4º e 5º mandatos à frente do país [4].

Na Argélia, o povo repentinamente passou por cima das reivindicações setoriais, que se levantavam até aqui, para contestar, de maneira coordenada e massiva desde 22 de abril, o quinto mandato pretendido pelo chefe de Estado Abdelaziz Bouteflika [5]. O maior levantamento desde a Independência – em 1962 – foi de tal intensidade que Bouteflika teve que renunciar, na terça-feira 2 de abril, sob pressão das ruas e do exército.

De facto, o vice-ministro da Defesa representante do alto comando militar, Gaid Salah, partidário do quinto mandato de Bouteflika antes de recuar sob a pressão popular, aproveitou a oportunidade para incitar a saída deste, a fim de preservar o regime em vigor.

Bouteflika vem assim juntar-se à lista de presidentes ditadores expulsos do poder pela insurreição popular: de Ben Ali, que ficou no poder 23 anos na Tunísia, e Moubarak, quase 30 anos à frente do Egito, ambos derrubados em 2011, a Blaise Compaore, durante 27 anos presidente do Burkina Faso, tendo que fugir com a ajuda da França em 2014, ou bem recentemente Omar el-Bechir, que permaneceu no poder durante 30 anos no Sudão... estes nomes tiveram todo o tempo para moldar o sistema de acordo com os seus propósitos, o que é difícil de ser desconstruído.

A insurreição popular conseguiu, deste modo, derrubar Bouteflika. Uma primeira vitória, certamente, mas não suficiente para o “Hirak” [6] que reivindica a saída dos “3B” ou “4B” – em referência ao presidente Abdelkader Bensalah interino desde 9 de abril; ao primeiro-ministro Noureddine Bedoui; a Tayeb Belaiz, que acabou por se demitir da presidência do Conselho Constitucional, em 16 de abril, sob pressão do movimento popular; ao presidente da Assembleia popular nacional (APN, a câmara baixa do parlamento) Mouab Bouchareb.

A palavra de ordem Yatnakaw ga’, “vão-se embora todos”, resume bem a vontade popular amplamente difundida de pôr fim ao “sistema Bouteflika”, gangrenado pela corrupção e pelo clientelismo. Observa-se igualmente uma recusa categórica em deixar que os nomes do regime organizem as eleições presidenciais, marcadas para 4 de julho pelo governo de Abdelkader Bensalah – fiel ao clã de Bouteflika –, partidário fervoroso da sua candidatura ao quinto mandato, representando um sistema em que, nos últimos 20 anos, as eleições “pluralistas” (reintroduzidas depois de décadas de partido único desde 1965 e da guerra civil nos anos 90) foram marcadas por maciças fraudes eleitorais.

Manifestação em Argel, 5 de abril de 2019. Foto de Jérôme Duval

Trata-se de pôr em curso um processo de transição democrática, fora das instituições herdadas do sistema Bouteflika, para avançar na direção de uma Segunda República. O exército, ou mais precisamente o alto comando militar, é claramente um grande obstáculo, em particular porque todos se lembram do fracasso, na revolução no Egito, em superarar essa barreira na transição pós-Mubarak.


Repercussão na diplomacia e papel dos media

Enquanto a 30ª Cimeira da Liga dos Estados Árabes terminava em 31 de março em Tunes, a diplomacia árabe não emitiu nenhuma declaração oficial, desde o anúncio da renúncia de Bouteflika. No Egito, o presidente Abdel Fattah al-Sissi, que chegou ao poder por meio de um golpe militar – que sufocou o grande movimento popular em 2013 –, acusou os movimentos de protesto, em vários Estados da região, de levarem “estes países” à sua perda: “Atualmente, em todos os estados de nossa região, as pessoas falam da situação económica e das condições de vida difíceis. Assim, elas só enfraquecem os seus países e os levam à derrota”, declarou num discurso televisionado.

Na imprensa egípcia, controlada ou amordaçada pelo poder, a renúncia de Bouteflika e as manifestações que sacodem a Algéria permanecem relativamente pouco mencionadas [7]. Por seu lado, a imprensa francesa limita-se a relatar os acontecimentos mais significativos, sem referir a conivência do Estado francês – que colonizou a Argélia por mais de um século – com o regime ou as reivindicações de uma “segunda independência”, pois a primeira permanece inacabada...

De facto, é somente na independência, a 5 de julho de 1962, que a Argélia põe fim aos 132 anos de colonialismo francês. Mas esta independência demasiadamente protocolar deixa um gosto amargo e muitos reivindicam uma segunda independência, uma verdadeira soberania que ponha fim a qualquer ingerência estrangeira, ao saque do país e dos seus recursos pelas elites, especialmente no Saara, rico em gás e petróleo, onde uma forte resistência contra a exploração do gás de xisto surgiu em 2015. Um discurso que o regime não gosta de ouvir.

Esta intervenção estrangeira é mais direcionada para as entranhas do subsolo argelino, para extrair os recursos, que para tentativas de desestabilização da insurreição em curso, como alegou o regime argelino, para desacreditar esta última. Pelo contrário, a fim de preservar sua interferência económica, a França tem todo o interesse num rápido “retorno à calma” e a uma situação política estável. Não podendo colocar-se abertamente contra um movimento popular massivo e pacífico, a antiga potência colonial permanece cautelosa nas suas declarações oficiais.

Antes de se tornar presidente da República Francesa, por ocasião de uma viagem à Argélia em 5 de fevereiro de 2017, Emmanuel Macron disse que «a colonização é um crime contra a humanidade». Quando questionado pela Mediapart a 5 de maio, ele respondeu: "Vou tomar uma ação forte. Em 8 de maio de 2019, triste aniversário da repressão sangrenta das manifestações anticoloniais de Setif, Guelma e Kherrata que causaram entre 15 e 45.000 mortos nos argelinos, é essencial finalmente passar dos palavras aos atos, [8] começando pela menção correta desses eventos em livros didáticos e programas de história.


Tradução de Eleonora Vicente. Revisão de Rui Viana Pereira e Carlos Santos para esquerda.net.

Notas

[1Akram Kharie, “Ramzi Yettou: le martyr inutile d’un pouvoir obscène et obstiné” (Ramzi Yettou: o mártir inútil de um poder obsceno e obstinado), Algeria Watch, 20 abril 2019. https://algeria-watch.org/?p=71884

[2Makhlouf Mehenni, “La mort symbolique du fils de Benkhedda” (“A morte simbólica do filho de Benkhedda”, TSA, 02 Mars 2019. https://www.tsa-algerie.com/la-mort-symbolique-du-fils-de-benkhedda/

[3Ler a autobiografia de Lounès Matoub, Rebelle, Stock, 1995.

[4“Ouganda: confirmation de la suppression de la limite d’âge pour la présidence” (“Uganda: conformação da supressão do limite de idade para a presidência”), RFI, 19 de abril de 2019. http://www.rfi.fr/afrique/20190419-ouganda-cour-supreme-supprime-limite-age-presidence-museveni

[6Hirak é uma palavra árabe que significa “movimento” também utilizada para designar o movimento de protesto popular que sacudiu o Rif em Marrocos em 2016-2017, por exemplo. Este movimento foi brutalmente reprimido. Nasser Zefzafi, de 39 anos, e três outros militantes que formavam o núcleo duro da contestação foram condenados a 20 anos de prisão.

[7Arianna Poletti e Wided Nasraoui, “Démission de Bouteflika: entre réactions occidentales et silence arabe” (“Demissão de Bouteflika: entre as reações ocidentais e o silêncio árabe”), Jeune Afrique, 4 de abril de 2019. https://www.jeuneafrique.com/758072/politique/demission-de-bouteflika-entre-reactions-occidentales-et-silence-arabe/

[8“L’autre 8 mai 1945” (“O outro 8 de maio de 1945”), Ligue des droits de l’Homme - France, 26 avril 2019. https://www.ldh-france.org/lautre-8-mai-1945-3/

Jérôme Duval

membro do CADTM (www.cadtm.org) e da PACD (Plataforma de auditoria cidadã da dívida em Espanha, http://auditoriaciudadana.net/). Autor, com Fátima Martín, do livro Construcción europea al servicio de los mercados financieros, Icaria Editorial 2016; é também co-autor da obra La Dette ou la Vie (Aden-CADTM, 2011), livro colectivo coordenado por Damien Millet e Eric Toussaint que recebeu o Prémio do Livro Político na Feira do Livro Político de Liège em 2011.

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