Plano do DiEM25 para fazer face à crise do Covid-19 na Europa

26 de Maio de 2020 por Eric Toussaint , Olivier Bonfond , Eva Betavatzi


Reforçar a União Europeia e as suas instituições, incluindo o BCE, aumentar ao máximo a dívida pública para salvar o sector privado, não questionar a legitimidade dessa dívida, depositar 2000 euros na conta bancária de cada cidadão/ã europeia, seja ele/ela rica ou absolutamente necessitada, lamentar que a capacidade da UE para competir com a China e os Estados Unidos nas tecnologias do futuro tenha sido diminuída, estas são as observações e propostas de um partido neoliberal, dirão vocês. Não, são em grande parte do DiEM25 (ver: https://diem25.org/diem25-presente-son-plan-en-trois-etapes-pour-eviter-une-depression-economique-liee-au-covid-19/)

Contudo, o DiEM25 é um movimento da esquerda europeia que apoia muitas lutas, como a da libertação de Julian Assange, e faz regularmente propostas que merecem ser discutidas. No entanto, se o seu último plano em 4 constatações e 3 propostas «para proteger todos os residentes europeus, evitar uma depressão económica e evitar o colapso da União» fosse posto em prática, a sociedade pós-covid-19 seria muito semelhante à que existia antes da actual crise.



 Prevenir o colapso da União?

A proposta do DiEM25 visa «evitar o colapso da União» (sic). Este objectivo é altamente problemático. Não é a mesma União que há décadas impõe aos estados-membros políticas de redução dos salários e das pensões, de desmantelamento dos direitos laborais e sociais, de privatização dos serviços públicos, etc.? Não será esta a mesma União que, entre 2011 e 2018, recomendou 63 vezes aos Estados-Membros da UE que privatizassem partes do sector da saúde ou que reduzissem as despesas públicas com a saúde? Não foi a mesma União que impediu o povo grego de escapar à lógica mortífera da austeridade em 2015? Não foi a mesma União que tudo fez para que outros povos renunciassem à sua libertação do neoliberalismo? A mesma União que não faz nenhuma despesa comum para fazer face à crise sanitária, [1] enquanto gasta fortunas para impedir a entrada de seres humanos no seu território e os proíbe de exercer o direito de asilo ou o direito de residência? (ver: «Poner fin a las políticas migratorias inhumanas de la Europa Fortaleza»).

 A dívida pública vai, e deve, aumentar?

Porque é que o DiEM25 não questiona a actual dívida pública Dívida pública Conjunto dos empréstimos contraídos pelo Estado, autarquias e empresas públicas e organizações de segurança social. , quando sabemos que uma grande parte da dívida pública foi contraída de forma ilegítima, ilegal e por vezes odiosa, isto é, contra os interesses da população e sem consideração pelas suas necessidades?

Esta é a primeira observação que o DiEM25 faz: «A dívida pública vai, e deve, aumentar». Para nós, é fundamental começar por perguntar para que servem estas novas dívidas. Para salvar grandes empresas e bancos, ou para investir maciçamente na transição social e ecológica?

Para o CADTM, antes de afirmarmos que a dívida deve aumentar a fim de obter os recursos necessários para combater a crise, devemos primeiro propor a suspensão do pagamento da dívida pública, a fim de libertar recursos financeiros imediatos e ter tempo para realizar uma auditoria com a participação dos cidadãos para identificar dívidas ilegítimas, odiosas, ilegais ou insustentáveis.

Além disso, embora o plano DiEM25 seja omisso sobre o assunto, é essencial mostrar que é possível libertar novos recursos que não geram dívida: a luta contra a grande evasão fiscal; um imposto excepcional sobre os grandes activos acumulados e sobre os rendimentos dos mais ricos; impostos específicos sobre as grandes empresas que se têm empanturrado durante a pandemia (supermercados, GAFAM, grandes farmacêuticas, …); impostos permanentes para os mais ricos, permitindo uma redistribuição da riqueza a favor da maioria da população e no interesse geral; um imposto avultado sobre os combustíveis, ... Todos estes impostos podem ser decididos por um governo nacional, porque os impostos e taxas são da competência dos Estados e não da UE.

Por último, porque é que o DiEM25 não questiona a actual dívida pública, quando sabemos que uma grande parte da dívida pública foi contraída de forma ilegítima, ilegal e por vezes odiosa, isto é, contra os interesses da população e sem consideração pelas suas necessidades?

 Emissão de euro-obrigações através do BCE

Para o CADTM, é essencial propor soluções que permitam uma ruptura radical com a lógica do endividamento e da austeridade

O DiEM25 propõe que o BCE Banco central europeu
BCE
O Banco Central Europeu é uma instituição europeia sediada em Francoforte e criada em 1998. Os países da zona euro transferiram para o BCE as suas competências em matéria monetária e o seu papel oficial de assegurar a estabilidade dos preços (lutar contra a inflação) em toda a zona. Os seus três órgãos de decisão (o conselho de governadores, o directório e o conselho geral) são todos eles compostos por governadores dos bancos centrais dos países membros ou por especialistas «reconhecidos». Segundo os estatutos, pretende ser «independente» politicamente, mas é directamente influenciado pelo mundo financeiro.
emita euro-obrigações Obrigações Parte de um empréstimo emitido por uma sociedade ou uma coletividade pública. O detentor da obrigação, ou obrigacionista, tem direito a um juro* e ao reembolso do montante subscrito. Obrigações também podem serem negociadas no mercado secundário. até 1 bilião de euros 1 trilhão na terminologia brasileira. Em primeiro lugar, recordemos aquilo em que consiste a euro-obrigação defendida pelo DiEM25 e outros. Contrariamente às declarações dos dirigentes da Alemanha, da Áustria ou dos Países Baixos, não se trata, de forma alguma, de pedir aos países «ricos» que paguem as dívidas dos países «pobres». Trata-se de títulos de dívida que seriam emitidos não em nome de um Estado, mas em nome da UE no seu conjunto, a fim de permitir a cada Estado contrair empréstimos a taxas muito baixas. É verdade que é escandaloso que alguns Estados europeus (Itália, Portugal, Irlanda, Grécia) contraiam empréstimos a taxas muito superiores às dos países «centrais» dominantes (Alemanha, Bélgica, Áustria, França, Países Baixos, Finlândia), quando sofrem tanto, senão mais, as consequências da crise sanitária e económica.

O CADTM considera que a emissão de obrigações colectivas europeias no actual contexto político da UE, nomeadamente uma esmagadora maioria de governos 100 % neoliberais, acarreta perigos inaceitáveis, porque aumentará a dependência e a submissão dos países às instituições europeias, que, como demonstraram suficientemente nos últimos anos, impõem políticas anti-sociais e neoliberais ao serviço dos interesses não dos povos, mas do grande capital europeu. Que estas euro-obrigações sejam emitidas pelo BCE ou por outra estrutura da UE, pouca diferença fará.

Para o DiEM25, trata-se portanto de «partilhar o ónus da dívida» (observação n.º 2). Será este realmente o objectivo da DiEM25: assegurar que o peso da dívida seja suportado pelos povos de uma forma mais equitativa? Para o CADTM, é um erro grave querer apenas modificar as condições de empréstimo e de reembolso. Mesmo que estas novas dívidas fossem reembolsadas de uma forma um pouco mais solidária, quem acabará por ter de suportar o ónus do seu reembolso através de novas medidas de austeridade? Os grandes capitalistas ou novamente o povo, como foi o caso em 2008? É evidente que a UE vai querer que os povos paguem a dívida, a fim de proteger os interesses dos grandes capitalistas. Para o CADTM, é essencial propor soluções que permitam uma ruptura radical com a lógica do endividamento e da austeridade (ver: «Não pagaremos as crises deles!»).

 O DiEM25 propõe dar 2000 euros a todos os residentes europeus

Em vez de oferecer um pouco de dinheiro a todos sem questionar realmente a lógica económica que causou e reforçou a crise, esta crise deve ser o momento de todas as forças da esquerda recordarem que os direitos sociais, económicos e culturais são inalienáveis

Esta proposta, também conhecida como «dinheiro caído do céu» (helicopter money no original), coloca também vários problemas. Em primeiro lugar, para o DiEM25, esta distribuição de dinheiro seria destinada a todos os residentes, ricos ou pobres. A sério? Em segundo lugar, mesmo que seja necessário ajudar as pessoas que viram os seus rendimentos diminuir ou mesmo desaparecer, ou que simplesmente não têm qualquer rendimento, esta proposta faz parte de uma lógica liberal e individualista, em que cada indivíduo é suposto ser igual aos outros, ao passo que a crise pôs em evidência as terríveis desigualdades que caracterizam a sociedade. Para o CADTM, os salários, as pensões, os subsídios diversos e as prestações sociais devem ser aumentados. Trata-se de aumentar os rendimentos reais das classes trabalhadoras e de contribuir para o sistema público e colectivo de segurança social. É igualmente necessário aumentar a despesa pública em serviços públicos essenciais, a começar pelo sistema público de saúde e pelo serviço público de educação. A crise sanitária revelou algo essencial: são os instrumentos colectivos, nomeadamente a segurança social e os serviços públicos, que são os mais eficazes para ultrapassar as crises e combater as desigualdades. Se o BCE decidisse libertar «dinheiro à borla», consideramos que ele deveria servir prioritariamente para reforçar estes instrumentos colectivos.

Os migrantes sem documentos devem também ser regularizados e ter acesso à assistência social ou a um emprego digno com um contrato de trabalho adequado.

O DiEM25 propõe também a utilização dos bancos para enviar aos residentes europeus os 2000 euros que seriam doados pelo BCE. Isto significa que o BCE fornecerá primeiro este dinheiro aos bancos, que o colocarão depois à disposição do público. Em todos os países da UE, no entanto, são os grandes bancos privados que dominam. Assim, esta proposta reforçaria ainda mais os bancos privados, ao passo que nós defendemos a socialização dos bancos, sobre a qual o DiEM25 não diz uma palavra. O DiEM25 não apresenta quaisquer propostas positivas para pôr termo ao domínio dos bancos privados nas finanças domésticas e estatais.

Em vez de oferecer um pouco de dinheiro a todos sem questionar realmente a lógica económica que causou e reforçou a crise, esta crise deve ser o momento de todas as forças da esquerda recordarem que os direitos sociais, económicos e culturais são inalienáveis e que se trata, portanto, de fazer uma série de exigências fortes, tais como: exigir habitação para toda a gente, garantir o acesso aos cuidados de saúde para toda a gente, libertar os migrantes sem documentos colocados em centros de detenção, garantir benefícios sociais que permitam a todos viver com dignidade, assegurar que serviços públicos como a saúde e a educação e todos os serviços públicos relacionados com a ajuda a pessoas dependentes e serviços comunitários sejam verdadeiramente gratuitos.

 O DiEM25 propõe a criação de um Programa Europeu de Investimento para a Recuperação Verde

A proposta do DiEM25 é lapidar. Há coisas boas (reforço do financiamento dos serviços e bens públicos) e coisas más no preâmbulo da sua proposta, onde lamenta que a UE tenha assistido a uma redução da «sua capacidade de competir com a China e os Estados Unidos no domínio das tecnologias do futuro».

No que se refere ao investimento verde, já tínhamos escrito num artigo sobre as propostas do DiEM25 para as eleições europeias («Varoufakis’ Dream») que não queríamos de todo um acordo, nem com os banqueiros, nem com os responsáveis pela destruição do planeta.

 Conclusão

Para o CADTM, a situação actual é extremamente grave e os movimentos de esquerda não podem dar-se ao luxo de fazer propostas que não questionem fundamentalmente a lógica económica que conduziu a esta situação

Para o CADTM, a situação actual é extremamente grave e os movimentos de esquerda não podem dar-se ao luxo de fazer propostas que não questionem fundamentalmente a lógica económica que conduziu a esta situação.

Para o CADTM, se o equilíbrio de poder não for alterado, estes milhares de milhões de euros de nova dívida não só não servirão os interesses de 99 % da população, como também os «esmagarão» ainda mais.

A fim de alterar o equilíbrio de poder a favor dos povos, devemos, pelo contrário, unir-nos todos para exigir a suspensão imediata do pagamento das dívidas públicas e a anulação de todas as dívidas ilegais, ilegítimas e odiosas, a fim de libertar uma nova margem de manobra financeira que dê finalmente prioridade absoluta à saúde e aos direitos humanos (ver: «Para Combater o Covid-19: Porquê e Como Suspender de Imediato o Pagamento da Dívida»).


Tradução de Rui Viana Pereira



Notas

[1Com efeito, o plano de 750 mil milhões de euros do BCE não diz respeito à saúde, tudo passa pelos bancos privados e pelas grandes empresas a quem o BCE compra de volta as dívidas públicas e privadas. Ver Éric Toussaint, «As Próximas Crises Financeiras Prováveis» e «Covid-19: Balance de las diferentes etapas de la crisis multidimensional y pistas alternativas».

Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

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Olivier Bonfond

Ele é membro dos [Comissão para a Verdade sobre a dívida pública> 11511].

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Eva Betavatzi

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