Por uma Europa dos povos, contra a UE fortaleza do capitalismo

21 de Março de 2024 por Eric Toussaint


A União Europeia teve origem na Comunidade Económica do Carvão e do Aço (CECA), o «mercado comum». A construção europeia baseou-se no primado do mercado capitalista, na produção industrial em função dos interesses do grande patronato, e não dos trabalhadores/as, nem dos povos que constituem a Europa.



A lógica da UE consiste em ser competitiva no mercado mundial, por exemplo em relação à China, com os seus baixos salários, o que implica empurrar para baixo os salários europeus e os direitos sociais conquistados na luta

A União Europeia é uma estrutura antes de tudo económica, que visa alargar tanto quanto possível um mercado comum onde as empresas possam vender os seus produtos… assim como explorar e pôr em concorrência os trabalhadores/as, tirando partido das diferenças salariais (o salário mínimo legal bruto búlgaro é de 330 euros, ou seja seis vezes menos que na Bélgica ou na França, onde ronda os 2000 euros) e dos estatutos sociais, as conquistas sociais. A lógica da UE consiste em ser competitiva no mercado mundial, por exemplo em relação à China, com os seus baixos salários, o que implica empurrar para baixo os salários europeus e os direitos sociais conquistados na luta.

Além disso, as empresas podem empregar em Itália trabalhadores/as búlgaros ou polacos, pelo salário mínimo desses países. As diferenças salariais, as diferenças dos sistemas de protecção social e as diferenças fiscais (impostos e taxas) permitem aos patrões exercer pressão sobre os trabalhadores/as, ameaçando-os/as com deslocalizações e importando produtos que fazem concorrência e dumping aos produtos locais.

A UE impõe constrangimentos não só à «livre concorrência» mas também à dívida pública Dívida pública Conjunto dos empréstimos contraídos pelo Estado, autarquias e empresas públicas e organizações de segurança social. . Neste capo podemos mencionar a famosa regra de limitar a 3 % o défice público e a 60 % a relação entre a dívida pública de um estado e o seu PIB PIB
Produto interno bruto
O produto interno bruto é um agregado económico que mede a produção total num determinado território, calculado pela soma dos valores acrescentados. Esta fórmula de medida é notoriamente incompleta; não leva em conta, por exemplo, todas as actividades que não são objecto de trocas mercantis. O PIB contabiliza tanto a produção de bens como a de serviços. Chama-se crescimento económico à variação do PIB entre dois períodos.
. Estas regras dão aos governos dos diversos países os meios para impor a austeridade, a desregulamentação, a privatização dos serviços públicos e os atentados contra os direitos e conquistas sociais.

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Entre 6 e 9 de junho de 2024 haverá eleições para o Parlamento Europeu nos 27 estados membros da UE. É importante participar nas eleições europeias e estudar os programas propostos pelos diversos partidos. Mas também é claro que o parlamento europeu não é equivalente a um parlamento nacional: tem muito menos poder; quem elabora os tratados e as regras de funcionamento é a Comissão e o Conselho europeus.

Os lobbies exercem uma grande pressão sobre a Comissão Europeia, sobre os/as comissários e sobre os/as deputados europeus

Outro factor político a acrescentar é o peso dos lobbies que representam as grandes empresas transnacionais, além das europeias. Esses lobbies exercem uma grande pressão sobre a Comissão Europeia, sobre os/as comissários e sobre os/as deputados europeus, como ficou demonstrado no escândalo do «Qatargate», no qual estiveram implicados os deputados belgas, gregos e italianos. Ficou patente até que ponto os estados e as empresas privadas procuram comprar, corromper e influenciar as decisões, para obterem favorecimentos.

Podemos citar a título de exemplo as «Big Pharma», que pesaram nas decisões tomadas pela UE sobre a vacina contra o covid-19. Vemos a mesma coisa acontecer em relação aos pesticidas e herbicidas perigosos para a saúde pública: Ursula von der Leyen decidiu não aplicar as medidas previstas, já de si insuficientes. É uma vitória para as grandes firmas como a Monsanto, Syngenta, etc. Ela usou como pretexto as reivindicações dos agricultores/as, quando na realidade o que contou foram os interesses das multinacionais privadas.

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No que diz respeito à UE como «potência», na política internacional a UE mostra-se incapaz ou recusa agir de forma positiva nos conflitos extremamente graves, seja no território europeu, seja nas proximidades da Europa. Em relação ao conflito extremamente grave na Ucrânia, invadida pela Federação Russa, o peso da UE é muito fraco, pois tudo é determinado pela situação subordinada da Europa no seio da OTAN. Nesta aliança são os EUA quem toma a maioria das decisões sobre o curso da guerra e a existência ou não de negociações para lhe pôr fim. O certo é que os/as dirigentes europeus aproveitam a guerra para encorajar o aumento das despesas militares e para reforçar o complexo militar-industrial europeu. Na Palestina são também os EUA que apoiam directamente Israel e a UE vai a reboque – deixa Israel prosseguir uma política genocida contra o povo da faixa de Gaza, reforçar os colonatos ilegais e tomar medidas brutais contra o povo palestiniano. A UE recusa suspender os acordos comerciais e culturais com esse país que pratica o apartheid e esmaga o povo palestiniano.

Na Palestina, os EUA apoiam directamente Israel e a UE vai a reboque

No entanto, a UE exerce um poder forte quando se trata de comportar-se como uma Europa-fortaleza: aí, emprega grandes meios e fornece um orçamento elevado à Frontex, não regateando helicópteros, aviões, navios e pessoal para evitar os/as candidatos a refugiados e os migrantes em geral a alcançarem território europeu.

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Além disso a UE assina acordos de parceria económica com países e regiões económicas: a comunidade da África Ocidental (CEDEAO), a comunidade andina, o MERCOSUR (Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai), actualmente em negociações. Esses acordos impõem geralmente aos países ou regiões económicas a abertura aos interesses económicos das empresas europeias. Em troca, a UE abre a sua economia a países onde as regras fitossanitárias nem de perto nem de longe se parecem com as europeias, como sucede na Argentina e no Brasil, principais produtores de soja transgénica para alimentar o gado. Esta realidade é justamente denunciada, por exemplo, pelos/as agricultores actualmente em luta, cujos produtos estão «em concorrência» com os produtos dos grandes exportadores do poderoso agronegócio, no âmbito dos acordos com o MERCOSUR. Tais acordos são favoráveis aos interesses dos grandes importadores europeus, mas desfavoráveis aos pequenos produtores locais, tanto dos países do Sul Global, como da Europa.

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No início da crise do covid-19, Mario Draghi, que tinha acabado o seu mandato à cabeça do Banco Central Banco central Estabelecimento que, num Estado, tem a seu cargo em geral a emissão de papel-moeda e o controlo do volume de dinheiro e de crédito. Em Portugal, como em vários outros países da zona euro, é o banco central que assume esse papel, sob controlo do Banco Central Europeu (BCE). Europeu (BCE Banco central europeu
BCE
O Banco Central Europeu é uma instituição europeia sediada em Francoforte e criada em 1998. Os países da zona euro transferiram para o BCE as suas competências em matéria monetária e o seu papel oficial de assegurar a estabilidade dos preços (lutar contra a inflação) em toda a zona. Os seus três órgãos de decisão (o conselho de governadores, o directório e o conselho geral) são todos eles compostos por governadores dos bancos centrais dos países membros ou por especialistas «reconhecidos». Segundo os estatutos, pretende ser «independente» politicamente, mas é directamente influenciado pelo mundo financeiro.
) em finais de 2019, declarou, juntamente com a sua sucessora Christine Lagarde, que era preciso aumentar a dívida pública para enfrentar a pandemia. Escusou-se à proposta de fazer pagar o custo da luta contra a pandemia e seus efeitos múltiplos às grandes empresas privadas que tiram proveito da crise: as Big Pharma, as GAFAM, as cadeias de distribuição. Para convencer a opinião pública a não levantar questões sobre o financiamento da luta contra a pandemia, os/as dirigentes europeus aliviaram temporariamente as regras orçamentais. Agora que a dívida aumentou fortemente e o custo do seu refinanciamento explodiu, por causa do aumento das taxas de juro Juro Quantia paga em retribuição de um investimento ou um empréstimo. O juro é calculado em função do montante do capital investido ou emprestado, da duração da operação e de uma taxa acordada. , os/as mesmos dirigentes anunciam o aprofundamento das medidas de austeridade, afirmando que a dívida pública atingiu um nível insustentável. É preciso, mais do que nunca, denunciar as políticas austeritárias, lutar pela anulação das dívidas públicas ilegítimas.

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É preciso reflectirmos sobre uma refundação da Europa. Evidentemente temos necessidade de uma estrutura europeia, mas não esta da UE, da zona euro Zona euro Zona composta por 18 países que utilizam o euro como moeda: Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Espanha, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Irlanda, Itália, Letónia (a partir da 1-01-2014), Luxemburgo, Malta, Países Baixos, Portugal, Eslováquia e Eslovénia. Os 10 países membros da União Europeia que não participam na zona euro são: Bulgária, Croácia, Dinamarca, Hungria, Lituânia, Polónia, República Checa, Roménia, Reino Unido e Suécia. , etc. Temos de desintegrar esta Europa do Grande Capital e substituí-la por uma outra Europa ao serviço dos povos. É preciso um processo constituinte autenticamente democrático e que parta das bases. Isto passaria também por eleições democráticas em sufrágio universal, para eleger delegados/as a uma Constituinte europeia. Esses/as parlamentares teriam o poder de elaborar uma nova constituição da UE e dotá-la de estruturas realmente democráticas, com um verdadeiro parlamento dotado de poderes legislativos. A proposta de um novo tratado constituinte deveria ser sujeita a um grande debate e em seguida a um referendo de sufrágio universal em cada país, antes de ser considerada aprovada. A nova Europa dos povos deveria ser verdadeiramente solidária em relação aos povos do Sul Global e pagar indemnizações pela pilhagem económica, pelas violações dos direitos humanos provocadas pelos governantes e grandes empresas europeus desde há séculos até hoje, pelos estragos ecológicos desastrosos causados por políticas encorajadas pela UE… Precisamos de uma Europa feminista, ecológica, socialista, internacionalista e pacífica.


Tradução: Rui Viana Pereira

Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

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