«Precisamos de um plano B para a Europa» – entrevista com Éric Toussaint

10 de Março de 2016 por Eric Toussaint , Gokhan Terzioglu , Steve Knauss , Antoine Dolcerocca


A revista Potemkin falou com Éric Toussaint, membro fundador e porta-voz da rede internacional do Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM). Autor de mais de uma dezena de livros sobre a economia política da mundialização neoliberal e sobre o combate por políticas alternativas, desempenhou além disso o cargo de conselheiro para as questões da anulação das dívidas ilegítimas e a instalação de comissões de auditoria da dívida no Equador, no Paraguai, na Argentina, em Timor Oriental. Mais recentemente, assegurou a coordenação científica da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública grega, criada em 2015 pela então presidente do Parlamento grego, Zoé Konstantopoulou. Éric Toussaint deu a seguinte entrevista à Potemkin Review.



Como sabemos, a socialização da dívida privada dos bancos e de outras instituições financeiras através de resgates é o principal mecanismo para transformar uma crise financeira em crise da dívida soberana Dívida soberana Dívida de um Estado ou garantida por um Estado. . Uma vez que o sector financeiro assenta no sistema de crédito e de pagamento do conjunto da economia, encontra-se na posição ideal para exercer chantagem, ameaçando arrastar todo o sistema na sua própria queda, se as suas perdas não forem suportadas pelo conjunto da sociedade. De facto, na maioria dos casos, os governos veem demasiados riscos em deixar cair esses actores principais e acabam por lhes injectar dinheiro público financiado à custa de obrigações Obrigações Parte de um empréstimo emitido por uma sociedade ou uma coletividade pública. O detentor da obrigação, ou obrigacionista, tem direito a um juro* e ao reembolso do montante subscrito. Obrigações também podem serem negociadas no mercado secundário. do Estado, que se juntam às dívidas soberanas. Este facto faz do repúdio das dívidas contraídas desta forma e da nacionalização do sector de crédito e da finança duas prioridades no combate contra a subordinação de populações inteiras ao capital da finança.

Sabemos que a nacionalização deste sector chave é possível, como demonstram os precedentes em numerosos países capitalistas avançados, como a França pós-guerra. No entanto, quando François Mitterrand tentou em 1981 renacionalizar certos sectores da economia, entre os quais a finança (não tanto para combater o capital mundial, mais para relançar a economia francesa), esse esforço descambou em capitulação alguns anos mais tarde, com o recuo do seu governo. Acha que, no regime de mundialização neoliberal, os países têm menos margem de manobra para seguir essa via? O que pensa da complementaridade das medidas unilaterais, como sejam o controlo de capitais, a recusa de pagar a dívida ilegítima e a nacionalização dos bancos? Qual deveria ser a ordem de implementação dessas medidas para maximizar as hipóteses de sucesso?

Estou plenamente convencido de que, para uma série de países europeus, como a Grécia, Portugal, o Estado espanhol, a Irlanda e o Chipre, mas também noutros países, é preciso adoptar medidas fundamentais para mudar a orientação política e romper com a austeridade. Porque é muito claro que em diversos países – como Portugal, como se viu nos últimos meses, mas também na Grécia, e veremos em breve o mesmo no Estado espanhol, como já se vê em Itália – a crise bancária não está resolvida de todo. A deterioração da situação económica internacional torna o balanço dos bancos muito frágil (por exemplo, com a explosão dos créditos Créditos Montante de dinheiro que uma pessoa (o credor) tem direito de exigir a outra pessoa (o devedor). malparados). Assistimos hoje a uma queda acentuada nos mercados bolsistas, o que implica a fragilização dos bancos. Por isso uma das primeiras medidas deve ser o controlo efectivo dos bancos. Em certos casos (por exemplo na Grécia) será necessário declarar a falência desses bancos para os sujeitar ao controlo. É claro que teríamos de pô-los rapidamente a funcionar, mas começar por declará-los em falência permitiria fazer pagar os custos da crise aos responsáveis. No caso grego estou convencido que é exactamente isso que devia ter sido feito.

Você falou de Mitterrand, que deu um passo em direcção à nacionalização dos bancos antes de capitular. Quando Mitterrand ainda propunha a nacionalização, de certa maneira não estava sob pressão para resolver uma crise bancária, enquanto hoje em dia todos os governos potenciais de esquerda na Europa têm a obrigação de adquirir o controlo dos bancos. Se não o fizerem, as finanças públicas não serão capazes de suportar os custos duma resolução da crise do sector bancário, e o Banco Central Banco central Estabelecimento que, num Estado, tem a seu cargo em geral a emissão de papel-moeda e o controlo do volume de dinheiro e de crédito. Em Portugal, como em vários outros países da zona euro, é o banco central que assume esse papel, sob controlo do Banco Central Europeu (BCE). Europeu (BCE Banco central europeu
BCE
O Banco Central Europeu é uma instituição europeia sediada em Francoforte e criada em 1998. Os países da zona euro transferiram para o BCE as suas competências em matéria monetária e o seu papel oficial de assegurar a estabilidade dos preços (lutar contra a inflação) em toda a zona. Os seus três órgãos de decisão (o conselho de governadores, o directório e o conselho geral) são todos eles compostos por governadores dos bancos centrais dos países membros ou por especialistas «reconhecidos». Segundo os estatutos, pretende ser «independente» politicamente, mas é directamente influenciado pelo mundo financeiro.
) exercerá uma pressão permanente sobre a liquidez dos bancos e asfixiará o sistema bancário, como fez na Grécia. Por todas estas razões concordo que a margem de manobra é mais estreita do que aquela de que dispunha Mitterrand, porque estamos hoje na zona euro Zona euro Zona composta por 18 países que utilizam o euro como moeda: Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Espanha, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Irlanda, Itália, Letónia (a partir da 1-01-2014), Luxemburgo, Malta, Países Baixos, Portugal, Eslováquia e Eslovénia. Os 10 países membros da União Europeia que não participam na zona euro são: Bulgária, Croácia, Dinamarca, Hungria, Lituânia, Polónia, República Checa, Roménia, Reino Unido e Suécia. e na União Europeia. No entanto existe uma obrigação prática e política de entrar em conflito com as instituições europeias e o BCE. Refiro-me a medidas unilaterais no caso de um país que enfrente uma crise do sistema bancário. Acrescento que no que se refere à auditoria da dívida, as medidas unilaterais a tomar baseiam-se no regulamento europeu de 21-maio-2013 [1] que visa a auditoria e permite a qualquer Estado da zona euro aplicar o regulamento. Parece-me que isto confere base legal aos governos que pretendam fazer a auditoria. No entanto, no caso da Grécia e provavelmente de outros países sujeitos à pressão dos credores, eu acrescentaria que é preciso decretar a suspensão unilateral do pagamento da dívida durante todo o tempo que levar a fazer a auditoria. É evidente que esta medida não será aceite e desembocará num conflito, mas existem no direito internacional argumentos no sentido dessas acções unilaterais, que são vistas como medidas de autodefesa. Não há dúvida de que todas essas medidas estão directamente ligadas a uma medida chave que deve ser imediatamente adoptada: o controlo de capitais. É claro que existe um elo imediato com a situação política: para alcançar tudo isto, é preciso ter uma legitimidade popular e organizar a mobilização e, ao mesmo tempo, a solidariedade internacional.


Afastemo-nos do quadro geral para abordarmos um caso mais concreto, que todos temos presente no espírito: falemos da sua experiência na Grécia. Foi o coordenador científico da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública Dívida pública Conjunto dos empréstimos contraídos pelo Estado, autarquias e empresas públicas e organizações de segurança social. grega criada em abril-2015 pela então presidente do Parlamento grego, Zoé Konstantopoulou. A Comissão publicou um relatório preliminar, em 17-junho-2015, pouco antes de expirar o prazo previsto de 30-junho para a extensão por quatro meses do programa de assistência financeira, que o Syriza tinha obtido por acordo assinado com a Troika Troika A Troika é uma expressão de apodo popular que designa a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional. em 20-fevereiro-2015. Num momento tão importante politicamente, a Comissão procurou demonstrar que, contrariamente à convicção geral, o aumento da dívida não se devia a despesas públicas excessivas por parte do Estado-providência helénico, mas sim a outros factores, como a recapitalização Recapitalização Reconstituição ou aumento de capital duma sociedade para reforçar os fundos próprios, postos em cheque por perdas. No quadro do resgate dos bancos nos Estados europeus, o mais frequente, os Estados recapitalizaram os bancos sem impor condições e sem exercer o poder de decisão que lhes confere a participação no capital bancário. dos bancos privados à custa do Estado, o pagamento de taxas de juro Juro Quantia paga em retribuição de um investimento ou um empréstimo. O juro é calculado em função do montante do capital investido ou emprestado, da duração da operação e de uma taxa acordada. extremamente elevadas aos credores, as pesadas despesas no domínio da defesa, etc. O relatório deixou claro que o objectivo dos acordos de empréstimo à Grécia era salvar os bancos privados gregos e europeus e que a maioria dos fundos assim emprestados era directamente transferida para as instituições financeiras. A Comissão também expôs as provas da existência de dívidas ilegais, ilegítimas e odiosas contraídas com cada um dos credores (FMI, BCE, FEEF, empréstimos bilaterais, credores privados) e apresentou argumentos jurídicos que permitem à Grécia repudiar essas dívidas unilateralmente. Entretanto, apesar das conclusões desse relatório, o governo de Tsipras preferiu no início de julho-2015 não adoptar essas medidas e, como sabemos, capitulou face às instituições europeias. Perante o recuo, que plano de acção Acção Valor mobiliário emitido por uma sociedade em parcelas. Este título representa uma fracção do capital social. Dá ao titular (o accionista) o direito, designadamente, de receber uma parte dos lucros distribuídos (os dividendos) e participar nas assembleias gerais. poderia ter sido adoptado, no momento da publicação do relatório ou mesmo antes, para impedir esta capitulação?

Antes de tudo, desde 20-fevereiro-2015, penso que o governo de Tsipras e o seu ministro das finanças Varoufakis poderiam ter tomado as medidas que mencionei anteriormente. Ou seja, eles deviam ter dito logo à partida: «Vamos realizar uma auditoria da dívida, ao abrigo do artigo 7 do Regulamento 472, como medida de defesa contra vocês, os credores, por não terem querido encetar uma única via séria de negociação durante as nossas primeiras três semanas de governação. Durante a realização da auditoria suspendemos o pagamento da dívida.» Nada disto foi feito e é por isso que eu penso que o acordo de 20-fevereiro constituiu um recuo por parte do governo Syriza-Anel [2]. O que é importante notar aqui, e que ninguém reparou, é que a 20-fevereiro apenas Varoufakis assinou o acordo pelo governo Syriza-Anel; o documento não foi submetido ao voto do Parlamento grego. Ora, a presidente do Parlamento, Zoé Konstantopoulou, tinha anunciado a Tsipras que nunca aceitaria tal acordo e que uma forte oposição ao acordo se exprimiria no seio do Parlamento, em particular no seio do grupo parlamentar do Syriza. Até à noite de 15 ou 16 de julho-2015, o Parlamento grego não aprovou qualquer acordo com o Eurogrupo ou outros representantes dos credores.

Assim, penso que no dia 20-fevereiro o Governo teria podido adoptar um plano B, que consistiria em aplicar o controlo de capitais, uma auditoria da dívida grega acompanhada de suspensão do pagamento, a mudança de estatuto das fracções detidas pelo Estado grego nos bancos gregos. Uma vez que o Estado grego é o principal accionista, poderia ter transformado as suas acções subordinadas em acções privilegiadas, a fim de exercer um controlo directo sobre os bancos e organizar a sua declaração de falência e, ao mesmo tempo, proteger os depósitos. Penso também que se deveria ter lançado rapidamente uma moeda paralela, não conversível, que apenas seria utilizada para uma série de operações internas mas que facilitaria, por exemplo, o aumento dos salários e das reformas, o pagamento de impostos e de uma série de facturas (água, electricidade, transportes públicos, etc.). Também se poderia tentar utilizar a moeda paralela nas trocas comerciais ao nível da economia local, como meio de estimular a actividade económica e o consumo. Esta moeda paralela oficial seria complementar do euro oficial.


Na sua opinião, porque é que Tsipras e os seus colaboradores mais próximos parecem nunca ter levado a sério a preparação de um plano B que incluísse essas medidas? Por exemplo, o repúdio unilateral da dívida ou a nacionalização dos bancos fizeram parte das opções do governo Syriza ou de uma parte da coligação? Qual lhe parece ter sido a importância da questão da saída da zona euro no que diz respeito à viabilidade de um programa alternativo desse tipo?

Penso que as acções unilaterais foram defendidas por Lafazanis, que era ministro da reestruturação da produção, do meio ambiente e da energia, e por ministros membros da plataforma de esquerda dentro do Syriza, ou seja, vários ministros e ministros-delegados, como Panagiotis Lafazanis, Kostas Isychos (vice-ministro da defesa), Nadia Valavani (vice-ministra das finanças), Dimitris Stratoulis (vice-ministro encarregue das pensões de reforma), Nikolaos Chountis (vice-ministro encarregue das relações com as instituições europeias). Em suma, vários ministros e ministros-delegados eram favoráveis àquelas acções unilaterais. Penso que a partir de dado momento eles deviam ter começado a comunicar as suas posições e a dizer que era necessário um plano B. Infelizmente nunca tornaram suficientemente públicas as suas posições, por estarem submetidos à disciplina governamental. Mas é muito claro que, no seio do governo, Lafazanis recusou colaborar com Varoufakis quando este deu parte das exigências do Eurogrupo.

Por isso podemos afirmar que a partir de 20 de fevereiro o governo de Tsipras tornou-se um «governo em disputa», como se diz em Espanha. Quer isto dizer que havia uma contradição no seio do Governo entre aqueles que continuavam a defender o plano A (baseado na ideia de que era possível convencer os credores e as instituições europeias a respeitarem a escolha democrática do povo) e a esquerda que era favorável a um plano B. Embora o plano B que mencionei não tenha sido aplicado no seguimento de 20-fevereiro, creio que poderia ter sido aplicado em julho, para evitar a capitulação [3].

Quero sublinhar que as medidas que apresentei como necessárias para a aplicação de um plano B não implicavam a saída da zona euro como etapa imediata, até porque o Syriza tinha feito a sua campanha eleitoral com base na permanência na zona euro e não dispunha de um mandato para sair dela. É claro que o Syriza poderia ter feito uma escolha diferente em 2012 e 2013 e ter abordado a questão da saída a fim de preparar a população. Mas uma vez que o partido não o fez, não podia incluir a saída da zona euro no plano B. No entanto, penso que as medidas de que falei poderiam ser compreendidas e apoiadas pela população grega e que teria sido possível fazer uma campanha internacional de apoio à Grécia. E isso levaria as autoridades europeias a empurrar a Grécia para fora da zona euro. A expulsão não está prevista legalmente, mas ao asfixiar o sistema bancário e ao aplicar outros meios de pressão, as autoridades europeias podiam empurrar o país para fora da zona euro. Isto permitiria a Tsipras dizer: «Não somos nós que queremos sair, mas uma vez que nos empurram para fora, nós saímos.»


No seguimento dos resultados eleitorais de 20-dezembro, uma grande parte da discussão deslocou-se da Grécia para o Estado espanhol. Parece-lhe que as forças internas do Podemos vão reagrupar-se à volta das mesmas clivagens internas e extrair as lições dos fracassos da experiência Syriza?

Tenho a certeza de que este debate existe dentro do Podemos e é necessário estudar as lições que há a tirar da experiência grega. Na minha opinião, é preciso ter um plano A e um plano B. Como já referi, o plano A assenta na ideia de convencer os credores e as instituições europeias. Mas, perante a impossibilidade de obter concessões razoáveis da parte das instituições europeias, é preciso passar ao plano B, que deveria ser tornado público, a meu ver. Penso que um partido como o Podemos deveria dizer ao público: «Eis aqui as nossas propostas razoáveis, que são o nosso plano A, mas se as instituições europeias e o BCE negarem o direito do Estado espanhol e respectiva população a exercer um mínimo de soberania, temos aqui um plano B.» É um elemento crucial. Quanto a mim, num plano B existe outro aspecto muito importante no plano económico: é preciso afirmar que, enquanto movimento de esquerda, é impossível manter um orçamento equilibrado ou produzir um excedente primário orçamental. Penso que tanto o Podemos como o Bloco de Esquerda em Portugal ou Jeremy Corbyn no Reino Unido têm de fazer esta afirmação. Porque, embora seja absolutamente verdade que a reactivação da economia e as reformas fiscais criarão receitas suplementares, isso levará dois ou três anos a acontecer. Por isso é preciso afirmar: «Não respeitaremos a disciplina europeia.» Os partidos de esquerda deveriam fazer as suas campanhas eleitorais declarando publicamente que essa disciplina é uma ilusão e que é inaceitável que nos imponham o equilíbrio orçamental.


Saiamos do contexto europeu actual. Em 2001, a Argentina entrou em incumprimento da sua dívida e continua a ver-se confrontada com os fundos abutre que, apoiados pelo sistema jurídico dos EUA, procuram reaver 100 % do valor nominal dos títulos de dívida que detêm. Depois do incumprimento do pagamento, dois desses fundos, o NML Capital e o Aurelius Capital Management, recusaram duas propostas de reembolso dos seus títulos a um preço reduzido de 70 % (30 cêntimos em vez de um dólar), que 93 % dos credores tinham aceite. Em outubro-2014, a Argentina juntou-se ao grupo de países que aprovaram legislação no sentido de montarem uma comissão de auditoria da dívida, nomeadamente para analisar a dívida contraída após a época da ditadura (1976-1983) até 2014.

O Equador também deu um exemplo importante, mostrando que até um pequeno país consegue desafiar a finança mundial, desde que exista vontade política. Fez parte da comissão de auditoria do Equador após a eleição do presidente Rafael Correa em dezembro-2006 e também esteve envolvido nos debates da Argentina. Que lições podemos extrair desses casos específicos?

Para mim, a lição a tirar é que é perfeitamente possível adoptar medidas unilaterais como a suspensão do pagamento da dívida ou a realização de uma auditoria. Contrariamente ao que afirma a maioria dos economistas e dos comentadores, eu afirmo que essas acções não produzem qualquer caos económico nem recessão prolongada. Além disso, é do conhecimento geral que vários economistas, que nem sequer são conotados à esquerda, como Joseph Stiglitz [4], ou Eduardo Levy e Ugo Panizza [5], publicaram estudos reconhecendo que a suspensão do pagamento da dívida é o primeiro passo para a recuperação económica. É preciso acrescentar que o mesmo afirmam economistas como Christoph Trebesch, que redigiu vários documentos para o FMI e realizou recentemente um trabalho em conjunto com a economista neoliberal Carmen Reinhardt, onde demonstram com toda a clareza que a suspensão do pagamento da dívida permite geralmente a retoma económica num período de tempo razoável (seis meses, um ano, ou ano e meio no pior dos casos) [6]. Isto mostra que o regresso aos mercados a seguir ao anúncio da suspensão é rápido. Pessoalmente, penso que é melhor um governo ter a possibilidade de não regressar aos mercados financeiros. Se os rendimentos do petróleo, ou outro tipo de rendimentos, permitirem manter uma actividade económica capaz de manter um nível suficiente de cobrança fiscal, que razão haverá para ir buscar financiamento aos mercados financeiros? Debati com alguns membros do partido de Cristina Kirchner na Argentina, porque eles tinham uma obsessão pelo regresso aos mercados e pela negociação com o Clube de Paris. Perguntei-lhes: «Porquê? Vocês já demonstraram há mais de sete anos que são capazes de fazer incumprimento face ao Clube de Paris e de ter um crescimento económico sem ir aos mercados financeiros.» Acho que esse dogma do financiamento através dos mercados financeiros é muito perigoso; é preciso afirmar que isso pode ser evitado e que existem alternativas.


A dívida imobiliária das famílias continua em níveis insuportáveis em numerosos países, depois de ter causado razias em 2007-2008 e dado origem a penhoras generalizadas. Nos EUA, a dívida dos estudantes já ultrapassou o bilião de dólares. Que se pode fazer contra o enorme aumento das dívidas privadas?

Penso que os movimentos que lutam contra a dívida pública têm realmente de integrar a questão das dívidas privadas ilegítimas na sua abordagem política [7]. Entendo por dívidas privadas ilegítimas, entre outras coisas, uma grande parte da dívida dos estudantes, uma grande parte da dívida imobiliária, a dívida dos camponeses como na Índia, a dívida do microcrédito em diversos países como Marrocos, Bangladeche, etc. Um governo de esquerda poderia decidir a anulação dessas dívidas por meios legais. Na época em que o Syriza estava na oposição, Zoé Konstantopoulou fez uma proposta de lei que merecia ser traduzida em várias línguas, porque ela propunha que a dívida das famílias com rendimentos inferiores a um certo limiar fosse anulada legalmente. Poder-se-ia acrescentar vários critérios. É muito importante que um governo aplique esta lei igualmente por via parlamentar, a fim de evitar uma situação semelhante à dos EUA, por exemplo, onde como sabem estão em curso mais de 10.000 processos relativos a dívidas privadas, ao passo que esses processos seriam desnecessários se o governo regulamentasse a situação passando pelo Congresso. Enquanto governo, podemos resolver os problemas de forma simples, legal.

Por isso penso, por exemplo, que se Jeremy Corbyn vier a ser primeiro-ministro no Reino Unido, terá de alterar completamente o que David Cameron fez para endividar sistematicamente os estudantes [8]. Na situação actual, alguns estudantes terão de trabalhar 30 anos para reembolsar a dívida que contraíram para prosseguir os seus estudos. Isto tem de mudar por via legal, tanto nos EUA como no Reino Unido. No Estado espanhol, o Podemos está directamente envolvido: o partido deveria comprometer-se a resolver legalmente o problema da dívida imobiliária e mudar a lei draconiana – proveniente da época franquista – para as penhoras e despejos. Esta lei deriva de um decreto do ditador Franco em 1946 e foi confirmada pelos socialistas durante a transição.


No passado escreveu muito sobre a crise da dívida no Terceiro Mundo. Embora esse assunto já não ocupe os grandes títulos actualmente, as dificuldades não estão menos longe de serem resolvidas. Pode dar-nos uma última palavra sobre os problemas da dívida do Sul?

É evidente que assistimos hoje em dia a uma nova crise da dívida nos países emergentes. Na realidade, essa crise já começou. Atacou frontalmente os grandes países exportadores de petróleo, como a Venezuela e a Nigéria, que têm maior capacidade de refinanciar a sua dívida a taxas de juro razoáveis. Aceitaram taxas acrescidas, mas agora que as receitas do petróleo diminuíram, é claro que assistiremos em breve a situações de incumprimento do pagamento das dívidas. Imagino que isto venha a acontecer no máximo dentro de dois anos, um ano, talvez mesmo seis meses.

Traduzido para português por Rui Viana Pereira. Revisto por Maria da Liberdade.


Notas

[1«Os Estados-Membros sujeitos a programas de ajustamento macroeconómico devem realizar uma auditoria exaustiva às suas finanças públicas, a fim de, designadamente, avaliar os motivos que levaram à acumulação de níveis excessivos de dívida e detetar eventuais irregularidades.» – http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:32013R0472

[2Ver a declaração do Eurogrupo (em inglês) tornada pública em 20-fevereiro-2015: «The Greek authorities reiterate their unequivocal commitment to honour their financial obligations to all their creditors fully and timely.
 The Greek authorities have also committed to ensure the appropriate primary fiscal surpluses or financing proceeds required to guarantee debt sustainability in line with the November 2012 Eurogroup statement. The institutions will, for the 2015 primary surplus target, take the economic circumstances in 2015 into account.»http://www.consilium.europa.eu/en/press/press-releases/2015/02/150220-eurogroup-statement-greece/

[5Eduardo Levy Yeyati e Ugo Panizza, «The Elusive Costs of Sovereign Defaults», Inter-American Development Bank - Banco Interamericano de Desarrollo (BID), Research Department - Departamento de Investigación, Working Paper #581

[6Carmen M. Reinhart e Christoph Trebesch, «A Distant Mirror Of Debt, Default, And Relief», Working Paper 20577

Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

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