No cerne do ciclone: a crise da dívida na União Europeia (5/7)
5 de Outubro de 2011 por Eric Toussaint
CADTM: Ainda não falaste dos Credit Default Swaps (CDS)…
Eric Toussaint: Os CDS são um produto financeiro que não está sujeito a qualquer controlo público. Foi criado na primeira metade dos anos 1990, em pleno período de desregulamentação. “Credit Default Swap” significa literalmente permuta de pagamentos em falta. Normalmente deveria permitir ao detentor dum crédito obter uma indemnização paga pelo vendedor do CDS quando o emissor duma obrigação entra em falência, quer se trate dum poder público quer duma empresa privada. O condicional é de rigor por duas razões principais. Primeiro, porque é possível comprarmos um CDS para nos protegermos dum risco de não reembolso duma obrigação que não temos. É a mesma coisa que fazer um seguro contra risco de incêndio da casa do vizinho, na esperança de que a casa seja destruída pelas chamas, a fim de receber o prémio. Em segundo lugar, os vendedores de CDS não reuniram previamente os meios financeiros suficientes para indemnizar as vítimas de não reembolso das dívidas. Em caso de falência em cadeia das empresas privadas que emitiram obrigações Obrigações Parte de um empréstimo emitido por uma sociedade ou uma coletividade pública. O detentor da obrigação, ou obrigacionista, tem direito a um juro* e ao reembolso do montante subscrito. Obrigações também podem serem negociadas no mercado secundário. ou do não reembolso por parte de um Estado devedor importante, é garantido que os vendedores de CDS estarão incapacitados de proceder às indemnizações que prometeram. O desastre da empresa norte-americana AIG em agosto de 2008, a maior sociedade de seguros internacional (na verdade foi nacionalizada por Bush a fim de evitar as consequências duma falência) e a falência de Lehman Brothers estão directamente ligadas ao mercado de CDS. AIG e Lehman estavam muito desenvolvidas neste sector.
O mercado de CDS permite toda a espécie de manipulações. Tive oportunidade de seguir de perto uma tentativa de manipulação quando fui membro da comissão de auditoria da dívida pública
Dívida pública
Conjunto dos empréstimos contraídos pelo Estado, autarquias e empresas públicas e organizações de segurança social.
interna e externa levada a cabo pelo governo equatoriano em 2007, cujos resultados foram publicados em 2008. Enquanto auditávamos a dívida equatoriana e o presidente Rafael Correa ameaçava os mercados financeiros internacionais de pôr fim ao reembolso da parte ilegítima da dívida, a sociedade privada norte-americana Abadie entrou em contacto com o governo equatoriano para lhe fazer uma proposta edificante. A sociedade propunha ao presidente Correa que ele desse a entender que suspenderia o pagamento da dívida imediatamente antes do vencimento, que seria dentro de três semanas. Isto permitiria à sociedade vender CDS num montante que ela calculava ser de 300 milhões de dólares. O resultado final deveria ser o seguinte: na realidade, o Equador pagaria o que devia. Daí, a sociedade não teria de indemnizar os detentores de CDS e depositaria metade do montante na conta do governo equatoriano. A sociedade afirmava que esta operação não implicava qualquer risco judicial, pois as vendas seriam feitas pouco a pouco, sem qualquer controlo por parte das autoridades norte-americanas. A sociedade afirmava que já tinha realizado diversas operações deste género. As autoridades equatorianas recusaram a proposta e optaram por outra estratégia que deu bons resultados. A utilidade desta história verídica é demonstrar que na prática, os emissores (e os compradores) de CDS podem realizar toda a espécie de manipulações. É preciso recordar que até ao desastre da AIG e à falência do Lehman Brothers, o FMI, a Reserva Federal dos EUA, o BCE
Banco central europeu
BCE
O Banco Central Europeu é uma instituição europeia sediada em Francoforte e criada em 1998. Os países da zona euro transferiram para o BCE as suas competências em matéria monetária e o seu papel oficial de assegurar a estabilidade dos preços (lutar contra a inflação) em toda a zona. Os seus três órgãos de decisão (o conselho de governadores, o directório e o conselho geral) são todos eles compostos por governadores dos bancos centrais dos países membros ou por especialistas «reconhecidos». Segundo os estatutos, pretende ser «independente» politicamente, mas é directamente influenciado pelo mundo financeiro.
diziam à boca cheia que os CDS eram um produto novo que oferecia excelentes garantias contra os riscos (ver quadro sobre os CDS). Entretanto o discurso mudou, mas nada, absolutamente nada, foi feito para regulamentar. Os CDS constituem, pela sua larga disseminação, uma terrível bomba-relógio para o sistema financeiro internacional. Na verdade, deveriam ser interditos.
As autoridades monetárias e financeiras
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CADTM: Qual é a parte de responsabilidade das agências de notação na crise?
Eric Toussaint: As norte-americanas Standard and Poor’s e Moody’s, assim como a franco-norte-americana Fitch são as três agências privadas de notação que dão cartas na questão da avaliação da solvabilidade e credibilidade de quem emite obrigações, quer se trate de Estados quer de empresas [5]. Existem há cerca de um século, mas foi só a partir dos anos 1970-1980, com a financiarização da economia, que os seus negócios sofreram uma expansão brutal. Porém, encontram-se num constante conflito de interesses. Até aos anos 1970, eram os compradores potenciais de obrigações emitidas pelos Estados e as empresas que pagavam às agências de notação para que dessem um parecer sobre a qualidade dos emissores. A partir daí, a situação inverteu-se completamente; passaram a ser os emissores de obrigações que pagam às agências para que elas os avaliem. A motivação dos poderes públicos e das empresas é, claro está, a de obter uma boa nota a fim de pagarem as taxas de juro Juro Quantia paga em retribuição de um investimento ou um empréstimo. O juro é calculado em função do montante do capital investido ou emprestado, da duração da operação e de uma taxa acordada. mais baixas possível aos compradores de obrigações. Recordemos que até à véspera da falência da Enron em 2001, as agências de notação, principescamente pagas, atribuíam a melhor nota a esse negociante de energia. O mesmo aconteceu em 2008 com os bancos de negócio Merril Lynch ou Lehman Brothers. O mesmo com a Grécia em 2009-inícios de 2010. Demonstram bem a que ponto são nefastas. Deviam ser sujeitas a acção judicial, porque os resultados das notas que distribuem foram e são nefastos. A avaliação de riscos é uma tarefa que deveria caber aos organismos públicos.
Final da quinta parte
Traduzido por Rui Viana Pereira, revisto por Noémie Josse-Dos Santos.
[1] Este artigo está incluído numa série de sete artigos. Ver a primeira parte “A Grécia no centro da tormenta” http://www.cadtm.org/A-Grecia-no-ce..., a segunda parte “A feira de saldos dos títulos gregos” http://www.cadtm.org/A-feira-de-sal... a terceira parte “O BCE, servo fiel dos interesses privados” http://www.cadtm.org/O-BCE-servo-fiel-dos-interesses a quarta parte: O “Plano Brady” europeu – austeridade permanente http://www.cadtm.org/Quarta-parte-O-Plano-Brady-europeu
[2] A propósito dos erros de julgamento do FMI relativamente aos EUA, da Irlanda, ver: François Sana “Zéro de conduite pour le FMI”, http://www.cadtm.org/Zero-de-conduite-pour-le-FMI
[3] Financial Times, “Deutsche hedges Italian risk”, 27.07.2011, p. 13.
[4] Financial Times, « Greek rescue plan worries hedge funds », supplément FTfm, 8 August 2011.
[5] Existem outras, como a chinesa Dagong, mas com pouca influência.
docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.
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