18 de Setembro de 2018 por Eric Toussaint
Photo by Sean Pollock (CC)
Neste texto datado de 2008, Éric Tousssaint denuncia as respostas dos governos à crise bancária internacional e antecipa o que de facto aconteceu nos anos seguintes: aumento avultado da dívida pública e aceleração das políticas de austeridade. Explica também que o que iria acontecer era evitável, pois poderiam ter sido tomadas medidas radicais. Assinale-se que nessa época Éric Toussaint advogava a estatização dos bancos. Daí para cá a sua posição evoluiu, trata-se agora de socializar sob controlo cidadão os bancos e as seguradoras.
O salvamento dos bancos e dos seguros privados realizado em Setembro-Outubro de 2008 constitui uma escolha política forte que não tinha nada de inelutável e que compromete o futuro a vários níveis decisivos.
Em primeiro lugar, o custo da operação fica inteiramente a cargo dos poderes públicos, o que implicará um aumento muito importante da dívida pública Dívida pública Conjunto dos empréstimos contraídos pelo Estado, autarquias e empresas públicas e organizações de segurança social. [1] . A crise capitalista actual, que durará ao menos vários anos, até mesmo uma dezena de anos [2] , vai implicar uma redução das receitas do Estado enquanto aumentarão os seus encargos ligados ao reembolso da dívida. Em consequência, as pressões para reduzir as despesas sociais vão ser muito fortes.
Os governos da América do Norte e da Europa substituíram um andaime balouçante de dívidas privadas por uma montagem esmagadora de dívidas públicas. Segundo o banco Barclays, os governos europeus da zona euro Zona euro Zona composta por 18 países que utilizam o euro como moeda: Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Espanha, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Irlanda, Itália, Letónia (a partir da 1-01-2014), Luxemburgo, Malta, Países Baixos, Portugal, Eslováquia e Eslovénia. Os 10 países membros da União Europeia que não participam na zona euro são: Bulgária, Croácia, Dinamarca, Hungria, Lituânia, Polónia, República Checa, Roménia, Reino Unido e Suécia. em 2009 vão emitir novos títulos de dívida pública num montante que deveria atingir 925 mil milhões de euros [3] . É uma soma colossal, sem contar as novas emissões de títulos do Tesouro pelos Estados, Grã-Bretanha, Japão, Canadá, etc. Entretanto, até recentemente, havia um consenso destes mesmos governos no sentido de reduzir a dívida pública. Os partidos da direita, do centro e da esquerda tradicional apoiaram todos a política de salvamento favorável aos grandes accionistas sob o pretexto falacioso de que não havia outras soluções para proteger a poupança da população e o funcionamento do sistema de crédito.
Esta união sagrada significa a transferência da factura à maioria da população, que será convidada a pagar as travessuras dos capitalistas sob diferentes formas: redução dos serviços que o Estado fornece à população, perdas de emprego, baixa do poder de compra, aumento das contribuições dos pacientes para os cuidados de saúde, dos pais para a educação dos filhos, redução dos investimentos públicos... e um aumento dos impostos indirectos.
Como são financiadas actualmente as operações de salvamento que estão em curso na América do Norte e na Europa? O Estado contribui com dinheiro fresco para bancos e seguradoras à beira da falência, seja sob a forma de recapitalização Recapitalização Reconstituição ou aumento de capital duma sociedade para reforçar os fundos próprios, postos em cheque por perdas. No quadro do resgate dos bancos nos Estados europeus, o mais frequente, os Estados recapitalizaram os bancos sem impor condições e sem exercer o poder de decisão que lhes confere a participação no capital bancário. seja sob a forma de compra dos activos tóxicos das empresas referidas. O que fazem os bancos e as seguradoras com este dinheiro fresco? Essencialmente, eles compram activos seguros para substituir activos tóxicos no seu balanço. Quais são os activos mais seguros neste momento? Os títulos da dívida pública emitidos pelos Estados dos países mais industrializdos (títulos do Tesouro dos EUA, da Alemanha, da França, da Bélgica...).
A fivela está afivelada: o Estado dá dinheiro às instituições financeiras privadas (Fortis, Dexia, ING, bancos franceses, britânicos, norte-americanos...). Para fazer isto, os Estados emitem títulos do Tesouro público que são subscritos por estes mesmos bancos e seguradoras, que são mantidos no sector privado (pois o Estado que pediu que o capital que ele concede lhe dê o direito de tomar as decisões, nem mesmo de participar nas votações) e que fazem novos lucros emprestando o dinheiro fresco que acabam de receber dos Estados [4] a estes mesmos Estados, exigindo naturalmente um juro Juro Quantia paga em retribuição de um investimento ou um empréstimo. O juro é calculado em função do montante do capital investido ou emprestado, da duração da operação e de uma taxa acordada. máximo...
Esta enorme vigarice em curso beneficia da lei do silêncio. A omerta está em vigor entre os principais protagonistas: governos, banqueiros ladrões, seguradoras rufias. Os grandes media evitam cuidadosamente analisar até ao fim o mecanismo de financiamento das operações de salvamento. Eles demoram-se nos pormenores: a árvore que esconde a floresta. Exemplo: a grande questão que se coloca na Bélgica a propósito do financiamento da recapitalização do Fortis que fica sob o controle do BNP Paribas é a seguinte: quanto valerá a acção do Fortis em 2012 quando o Estado que se tornou comprador poderá revendê-la? Naturalmente, ninguém pode responder seriamente a esta questão, mas isso não impede a imprensa de a ela consagrar páginas inteiras. Isto permite desviar a atenção. A filosofia e o mecanismo da operação de salvamento não são analisadas. Será preciso esperar que, graças à operação conjugada dos media alternativos, das organizações de cidadãos, das delegações sindicais e dos partidos políticos da esquerda radical [5] , esta grande vigarice venha a ser compreendida por uma parte crescente da população e denunciada. Isto não será fácil, uma vez que o alarido é considerável.
À medida em que a crise se agravar nascerá um profundo mal estar que se transformará em desafio político em relação aos governos que realizaram este tipo de operação. Se o jogo político prosseguir sem grande perturbação, os governos de direita hoje no poder serão substituídos por governos de centro esquerda que prosseguirão uma política social-liberal. Da mesma forma, os actuais governos sociais-liberais serão substituídos por governos de direita. Cada um por sua vez, eles criticarão a gestão dos seus antecessores afirmando que esvaziaram os cofres do Estado [6] e que não há margem de manobra para concessões às reivindicações sociais.
Não há nada de inelutável em político. Um outro cenário é inteiramente possível. Primeiro, é preciso afirmar que se pode perfeitamente salvar a poupança dos cidadãos e o sistema de crédito de uma outra maneira. Pode-se assegurar a protecção da poupança da população graças à colocação sob estatuto público das empresas de crédito e de seguros à beiras da falência. Por outras palavras, trata-se de as estatizar ou de as nacionalizar. Isso significa que o Estado que se torna proprietário garante a responsabilidade da sua gestão. A fim de evitar que o custo desta operação recaia sobre a esmagadora maioria da população que não tem nenhuma responsabilidade na crise, os poderes públicos devem fazer pagar aqueles que estão na origem desta. Basta recuperar o custo do salvamento das empresas afectadas tomando um montante igual do património dos grandes accionistas e dos administradores. Evidentemente, isto implica levar em conta o conjunto destes patrimónios e não apenas a parte saída das sociedades financeiras em falência.
O Estado deve igualmente iniciar processos legais contra os accionistas e os administradores responsáveis pelo desastre financeiro, a fim de obter ao mesmo reparações financeiras (que vão para além do custo imediato do salvamento) e condenações a penas de prisão se a culpabilidade for demonstrada. É preciso também tomar um imposto de crise sobre o grande capital a fim de financiar um fundo de solidariedade para as vítimas da crise (nomeadamente os desempregados) e para criar emprego em sectores úteis para a sociedade.
Numerosas medidas complementares são necessárias: abertura da contabilidade das empresas com direito de vista às organizações sindicais, levantamento do segredo bancário, proibição dos paraísos fiscais a começar pela proibição às empresas de ter qualquer transacção ou activo Activo Em geral o termo «activo» refere um bem que possui um valor realizável, ou que pode gerar rendimentos. Caso contrário, trata-se de um «passivo», ou seja, da parte do balanço composta pelos recursos de que dispõe uma empresa (os capitais próprios realizados pelos accionistas, as provisões para risco e encargos, bem como as dívidas). que seja com ou num paraíso fiscal Paraíso fiscal Território caracterizado por cinco critérios (não cumulativos): (a) opacidade (via segredo bancário ou outro mecanismo como os trusts); (b) fiscalidade muito baixa ou nula para os não residentes; (c) facilidades legislativas que permitem criar sociedades de fachada, sem qualquer obrigação para os não residentes de terem uma actividade real no território; (d) ausência de cooperação com as administrações fiscais, aduaneiras ou judiciais de outros países; (e) fraqueza ou ausência de regulamentação financeira. A Suíça, a City of London e o Luxemburgo acolhem a maioria dos capitais colocados nos paraísos fiscais. Além disso existem as ilhas Caimão, as ilhas do Canal, Hong-Kong e outros lugares exóticos. , imposto progressivo sobre as transacções em divisas e sobre os produtos derivados, instauração do controle sobre os movimentos de capitais e sobre os câmbios, travagem de toda nova medida de desregulamentação/liberalização dos mercados e dos serviços públicos, retorno a serviços públicos de qualidade... O agravamento da crise remeterá à ordem do dia a questão da transferência de sectores industriais e de serviços privados para o sector público, assim como a questão da execução de planos vastos para a criação de empregos.
Tudo isso permitiria sair desta crise grave pelo alto, a saber, levando em conta o interesses das populações. Trata-se de reunir as energias para criar uma relação de forças favorável à colocação em prática das soluções radicais que têm como prioridade a justiça social.
[1] Do lado dos governos e da Comissão Europeia, no entanto encarregada de velar pelo respeito às normas de Maastricht, evita-se cuidadosamente o assunto. Quando os jornalistas se tornam realmente insistentes, o que é muito raro, é-lhes respondido que não se tinha escolha. É preciso também precisar que vários governos realizam, tal como os bancos falidos, operações fora do balanço ou fora do orçamento a fim de dissimular o montante exacto das suas obrigações em termos de dívidas publicas.
[2] Pode-se comparar com a crise em que se debateu o Japão a partir do princípio dos anos 1990 e de que ele saiu só quando esta crise o atingiu com plena intensidade.
[3] Segundo o Barclays, esta soma seria repartido como se segue: 238 mil milhões para a Alemanha, 220 mil milhões para a Itália, 175 mil milhões para a França, 80 mil milhões para a Espanha, 69,5 mil milhões para os Países Baixos, 53 mil milhões para a Grécia, 32 mil milhões para a Áustria, 24 mil milhões para a Bélgica, 15 mil milhões para a Irlanda e 12 mil milhões para Portugal.
[4] Naturalmente, o dinheiro fresco oferecido pelo Estado não será utilizado unicamente para a compra de títulos do Tesouro, servirá igualmente para novas reestruturações bancárias assim como para o lucro directo dos bancos.
[5] Esperemos que se possa contar igualmente com parlamentares que façam sua tarefa e com jornalistas que nos grandes media desejem realmente analisar de modo crítico a maneira como o salvamento bancário é até agora realizado.
[6] Eles poderiam denunciar isto ou tentar agir desde já no interior das instituições parlamentares. Se não o fazem, então é evidente que sabem perfeitamente que a dívida pública vai aumentar fortemente, é que eles concordam com a orientação escolhida. De facto, eles escolheram a união sagrada que romperão com o aproximar das eleições.
docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.
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