Parte 1 da série: Centenário da Revolução russa e do repúdio das dívidas

Rússia: O repúdio das dívidas no cerne das revoluções de 1905 e 1917

27 de Junho de 2017 por Eric Toussaint


Em Fevereiro de 1918 o repúdio das dívidas pelo governo soviético abalou a finança internacional e suscitou a condenação unânime por parte dos governos das grandes potências.

Essa decisão de repúdio inscrevia-se na continuidade do primeiro grande movimento de emancipação social que abalou o império russo em 1905. Este vasto levantamento revolucionário foi provocado pela conjugação de diversos factores: o desastre russo na guerra contra o Japão, a cólera dos camponeses que exigiam terras, a rejeição da autocracia, as reivindicações operárias … O movimento teve início nas greves em Moscovo, em Outubro de 1905, e alastrou como um rastilho de pólvora a todo o império, assumindo diferentes formas de luta. No decurso do processo de auto-organização das massas populares nasceram os conselhos (sovietes, em russo) de camponeses, de operários, de soldados …



Na sua autobiografia, Leon Trotsky, que presidiu ao soviete de São Petersburgo (capital da Rússia até Março de 1918), explica que a prisão de todos os membros da direcção do soviete, a 3 de dezembro de 1905, foi provocada pela publicação de um manifesto onde os membros do conselho eleito apelavam ao repúdio das dívidas contraídas pelo regime do czar. Explica ainda que esse apelo de 1905 ao não pagamento da dívida acabou por ser concretizado no início de 1918, quando o governo dos sovietes aprovou o decreto de repúdio das dívidas czaristas:

  • Fomos detidos no dia seguinte ao da publicação do que passou a ser conhecido como o nosso «Manifesto Financeiro», no qual se prenunciava a inevitável falência do regime czarista: anunciava-se categoricamente que as dívidas dos Romanov não seriam reconhecidas pelo povo, no dia em que este alcançasse a vitória [1].
Trotsky (com a pasta do documento na mão) entre os membros do soviete de Petrogrado em 1905, durante o julgamento

O manifesto do conselho de deputados operários declarava com clareza o seguinte:

  • A autocracia nunca teve a confiança do povo e os seus poderes não foram por ele atribuídos. Por consequência, decidimos não admitir o pagamento das dívidas relativas a todos os empréstimos que o governo do czar contraiu quando estava em guerra aberta e declarada contra todo o povo.

Meses mais tarde, a Bolsa de Paris iria responder a este manifesto, concedendo ao czar mais um empréstimo de 750 milhões de francos. A imprensa da reacção e dos liberais zombou das impotentes ameaças do soviete contra as finanças do czar e os banqueiros europeus. Feito isto, trataram de esquecer o manifesto. Mas isto não o impediu de permanecer nas memórias. A bancarrota financeira do czarismo, na sequência de todos os acontecimentos passados, estalou ao mesmo tempo que a derrocada militar. E, depois da Revolução, um decreto do conselho de comissários do povo, com data de 10 de fevereiro de 1918, declarou pura e simplesmente nulas todas as dívidas do czar. Este decreto continua em vigor [2]. Não tem razão quem afirma que a Revolução de Outubro não reconhece qualquer obrigação. A Revolução reconhecia peremptoriamente as suas próprias obrigações. O compromisso que assumiu a 2 de dezembro de 1905 manteve-se em 10 de fevereiro de 1918. Tem todo o direito de dizer aos credores do czar: «meus senhores, foram avisados atempadamente!».

Neste aspecto como em todos os outros, 1905 preparou 1917.

No livro intitulado 1905, L. Trotsky descreve a sucessão de acontecimentos que levou à aprovação do Manifesto Financeiro com que o soviete, órgão democrático revolucionário, apelava à recusa de pagamento das dívidas contraídas pelo czar.

Abria-se assim um vasto campo de acção diante do soviete. À sua volta estendiam-se vastas áreas políticas que era preciso lavrar com a forte charrua revolucionária [3]. Mas o tempo escasseava. A reacção, afincadamente, forjava manobras e esperava-se a todo o instante um primeiro golpe. O comité executivo, apesar da carga de trabalhos que tinha de despachar todos os dias, apressou-se a executar a decisão tomada pela assembleia a 27 de novembro de 1905. Lançou um apelo aos soldados e, numa conferência com os representantes dos partidos revolucionários, aprovou o texto do Manifesto Financeiro (…).

A 2 de dezembro de 1905, o Manifesto foi publicado em oito jornais de São Petersburgo: quatro socialistas e quatro liberais.

Eis o texto histórico:

  • «O governo está à beira da falência. Transformou o país num monte de ruínas juncado de cadáveres. Esgotados, esfomeados, os camponeses já não conseguem pagar os impostos. O governo serviu-se do dinheiro do povo para dar crédito aos proprietários. Agora não sabe o que fazer dos proprietários que lhe servem de penhor. As fábricas e oficinas já não funcionam. Falta trabalho. Por toda a parte reina o marasmo.
  • O governo usou o capital dos empréstimos estrangeiros para construir caminhos-de-ferro, uma frota, fortalezas, e para adquirir um arsenal de reserva. Uma vez secas as fontes [de empréstimo] estrangeiras, as encomendas do Estado deixaram de chegar. Os comerciantes, os grossistas, os empresários, industriais, que ganharam o hábito de se enriquecerem à custa do Estado, vêem-se privados dos seus benefícios e fecham os balcões e as fábricas. As falências multiplicam-se. Os bancos desabam. Quase já não se realizam operações comerciais.
  • A luta do governo contra a revolução gera preocupações constantes. Ninguém está seguro do que sucederá amanhã.
  • O capital estrangeiro fugiu além-fronteiras. O capital «puramente russo» também correu a refugiar-se nos bancos estrangeiros. Os ricos vendem os seus bens e emigram. As aves de rapina fogem do país, levando consigo os bens do povo.
  • Há muito que o governo gasta todos os rendimentos do Estado para manter o exército e a marinha. Não há escolas. As estradas encontram-se num estado pavoroso. E no entanto falta-lhe dinheiro, ao ponto de já não poder alimentar os soldados. A guerra foi perdida, em parte, por falta de munições. Por todo o país, o exército, condenado à fome e à miséria, revolta-se.
  • A economia das vias férreas foi arruinada pelo desperdício, grande número de linhas foi devastado pelo governo. Para reorganizar as ferrovias de maneira rentável, serão necessárias centenas e centenas de milhões.
  • […]
  • O governo delapidou as caixas de poupança e serviu-se dos fundos depositados para encher os cofres dos bancos privados e das empresas industriais, muitas delas podres. Joga na Bolsa com o capital dos pequenos investidores, expondo os fundos a riscos quotidianos.
  • A reserva de ouro do Banco do Estado é insignificante, em relação às obrigações criadas pelos empréstimos assumidos pelo governo e às necessidades do movimento comercial. Essa reserva não tarda a esgotar-se, se em todas as operações for exigida a troca de papéis de crédito por moeda-ouro.
  • […]
  • Aproveitando-se da ausência de controlo sobre as finanças, o governo contraiu desde há muito tempo empréstimos que ultrapassam em muito a solvabilidade do país. E é graças a novos empréstimos que paga os juros precedentes.
  • Todos os anos o governo estabelece um orçamento fictício de receitas e despesas, declarando-as acima dos seus montantes reais, pilhando a eito, relatando mais-valias em vez do défice anual. E os funcionários, livres de controlo superior, esgotam o que resta do Tesouro.
  • Só a Assembleia Constituinte pode pôr cobro a esta pilhagem das finanças, depois de derrubar a autocracia. A Assembleia submeterá a um inquérito rigoroso as finanças do Estado e estabelecerá um orçamento pormenorizado, claro, exacto e verificado de receitas e despesas públicas.
  • O medo a um controlo popular que revele ao mundo a sua incapacidade financeira força o governo a adiar sempre a convocação dos representantes do povo.
  • A falência financeira do Estado provém da autocracia, tal como o falhanço militar. Os representantes do povo serão convocados e obrigados a pagar o mais cedo possível as dívidas.
  • O governo, procurando defender o seu regime de maus investimentos, força o povo a manter contra ele uma luta de morte. Nesta guerra centenas ou milhares de cidadãos perecem ou arruínam-se; a produção, o comércio e as vias de comunicação estão em ruínas.
  • Só há uma saída: é preciso derrubar o governo, abafar o fôlego que ainda lhe resta. É preciso secar-lhe a última fonte que alimenta a sua existência: as receitas financeiras. É necessário fazê-lo, não só pela emancipação económica e política do país, mas, em particular, para pôr ordem na economia financeira do Estado.
  • Por consequência, decidimos:
  • Recusar todos os pagamentos para recompra das terras e todos os pagamentos às caixas do Estado. Exigiremos que todas as operações de pagamento de salários e tratamentos sejam feitas em moeda-ouro; e quando se tratar de montantes inferiores a cinco rublos reclamaremos moeda viva.
  • Retiraremos todos os depósitos efectuados nas caixas de poupança e no Banco do Estado, exigindo o seu reembolso integral.
  • A autocracia nunca teve a confiança do povo nem se legitima nela.
  • Actualmente, o governo comporta-se dentro do seu próprio Estado como em terra conquistada.
  • Por isso decidimos não tolerar o pagamento das dívidas resultantes de todos os empréstimos que o governo do czar contraiu desde que está em guerra aberta contra o povo.»

(Fim do texto do manifesto)

22/janeiro/1905 : Domingo vermelho em São Petersburgo

Por baixo do Manifesto publicado na imprensa a 2/12/1905 aparecia a seguinte lista de organizações que apoiavam este apelo à recusa de pagamento da dívida czarista e à asfixia financeira da autocracia:

  • «O soviete dos deputados operários;
  • O comité principal da União Pan-Russa dos Camponeses;
  • O Comité Central e a comissão organizadora do partido operário social-democrata russo;
  • O Comité Central do Partido Socialista Revolucionário;
  • O Comité Central do Partido Socialista polaco.»

Trotsky acrescenta um comentário final:

  • «É claro que este manifesto não podia só por si derrubar o czarismo, nem as suas finanças.
  • (…) O manifesto Financeiro do soviete apenas podia servir de introdução aos levantamentos de dezembro. Apoiado pela greve e pelos combates levados a cabo nas barricadas, obteve forte eco em todo o país. Enquanto, nos três anos anteriores, os depósitos feitos nas caixas económicas ultrapassavam os saques em 4 milhões de rublos, em dezembro de 1905 os saques excederam os depósitos em 90 milhões! A insurreição teve de ser esmagada pelas hordas czaristas, para repor o equilíbrio nas caixas económicas...»

A denúncia do carácter ilegítimo e odioso das dívidas czaristas teve um papel fundamental nas revoluções de 1905 e de 1917. O apelo ao não pagamento da dívida acabou por ser concretizado no decreto de repúdio da dívida aprovado pelo governo soviético em fevereiro de 1918.

Tradução: Rui Viana Pereira
Revisão: Maria da Liberdade


Parte 1: Rússia: O repúdio das dívidas no cerne das revoluções de 1905 e 1917
Parte 2: Centenário da Revolução russa e do repúdio das dívidas
Parte 3: A revolução russa, o repúdio das dívidas, a guerra e a paz
Parte 4: A revolução russa, o direito dos povos à autodeterminação e o repúdio das dívidas
Parte 5: A imprensa francesa a soldo do czar
Parte 6: Os títulos de dívida russa após o repúdio
Parte 7: O jogo diplomático à volta do repúdio das dívidas russas
Parte 8: Em 1922, nova tentativa de submissão dos sovietes às potências credoras
Parte 9: O contra-ataque soviético: o Tratado de Rapallo de 1922
Parte 10: Em Génova (1922), as contra-propostas soviéticas face às imposições das potências credoras
Parte 11: Dívida: Lloyd George versus soviéticos
Parte 12 : A reafirmação do repúdio das dívidas é bem sucedida


Notas

[1Este extracto do livro Ma vie está disponível on-line, em francês: https://www.marxists.org/francais/trotsky/livres/mavie/mv16.htm

[2Trotski redigiu este texto em 1930.

[3Este extracto do livro A Revolução de 1905 está disponível on-line, em francês: https://www.marxists.org/francais/trotsky/livres/1905/1905.pdf

Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

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