No cerne do ciclone: a crise da dívida na União Europeia (7/7)

Sair das crises e dar a volta por cima

10 de Outubro de 2011 por Eric Toussaint




Sétima parte: Sair das crises e dar a volta por cima [1]

CADTM: Durante o nosso diálogo, afirmaste que a Grécia é obrigada a escolher uma dessas duas opções:
– Resignar-se e submeter-se aos desígnios da Troika Troika A Troika é uma expressão de apodo popular que designa a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional. ;
– Recusar os ditames dos mercados e da Troika, suspendendo o pagamento da dívida e lançando uma auditoria a fim de repudiar a parte ilegítima da dívida.

Acabaste de descrever a primeira opção. Queres explicitar a segunda?

Eric Toussaint: Partindo do caso da Grécia, é importante notar que outros países estão hoje na mesma situação: a Irlanda, Portugal, sem esquecer a Hungria, a Bulgária, a Roménia e ainda a Letónia, no que diz respeito aos países membros da UE. Amanhã veremos provavelmente a Espanha e a Itália juntarem-se a esta lista. E não seria de espantar que outros países membros da UE mergulhassem numa situação muito difícil depois de amanhã, pois a crise acelera rapidamente. Fora da EU, há que referir a Islândia.
Estes países, submetidos à chantagem especulativa do FMI e doutros organismos como a Comissão europeia, deviam recorrer a uma moratória unilateral do reembolso da dívida pública Dívida pública Conjunto dos empréstimos contraídos pelo Estado, autarquias e empresas públicas e organizações de segurança social. . Recorrer a este acto unilateral soberano permitiria alterar a relação de forças em detrimento dos credores. No caso dos bancos, das seguradoras, dos fundos de pensão… eles tentarão revender o mais depressa possível os títulos que detêm e o preço dos títulos tenderá para zero. Quanto à Troika, será obrigada a entrar em negociação e fazer concessões. A Rússia em 1998, a Argentina em 2001 e o Equador em 2008 declararam uma moratória unilateral sobre o pagamento das suas dívidas e saíram-se muito bem [2]. É importante fazer um balanço destas experiências recentes e construir a melhor estratégia possível para que a população veja as suas condições de vida melhoradas e se inicie uma ruptura com o sistema capitalista.

CADTM: Que outras medidas imediatas existem além da suspensão unilateral (moratória) do reembolso da dívida?

Eric Toussaint: A moratória unilateral deve ser combinada com uma auditoria dos empréstimos públicos (com participação cidadã). A auditoria deve fornecer ao governo e à opinião pública as provas e os argumentos necessários para a anulação/o repúdio da parte da dívida identificada como ilegítima. O direito internacional e o direito interno dos países oferecem as bases legais para uma acção Acção Valor mobiliário emitido por uma sociedade em parcelas. Este título representa uma fracção do capital social. Dá ao titular (o accionista) o direito, designadamente, de receber uma parte dos lucros distribuídos (os dividendos) e participar nas assembleias gerais. soberana unilateral de anulação/repúdio [3] .Para os países que recorrerem à suspensão do pagamento, é necessária uma moratória sem ajuste dos juros de mora sobre os montantes não reembolsados.
Noutros países como a França, a Bélgica, a Grã-Bretanha… não é imperativo decretar uma moratória unilateral durante a realização da auditoria. Esta deve ser levada a cabo também com vista a determinar a amplitude da anulação/do repúdio a que será necessário proceder. Em caso de deterioração da conjuntura internacional, a suspensão de pagamento pode vir a estar na ordem do dia mesmo para os países que se julgam a salvo da chantagem dos emprestadores privados.

CADTM: E a participação cidadã ?

Eric Toussaint: A participação cidadã é uma condição imperativa para garantir a eficácia e a transparência da auditoria. Esta comissão de auditoria deve ser composta, nomeadamente, por diferentes órgãos do Estado envolvidos, a fim de os obrigar a prestar contas. Contudo, para todos os efeitos, a chave do sucesso da auditoria é a participação dos movimentos sociais, da sociedade civil de base. Os movimentos sociais podem designar os seus próprios peritos em auditoria das finanças públicas, economistas, juristas, constitucionalistas… Também é necessário, obviamente, chamar representantes dos diversos movimentos sociais afectados pela crise da dívida. A auditoria tem de determinar as diferentes responsabilidades no processo de endividamento e exigir que os responsáveis nacionais e internacionais prestem contas à justiça.

CADTM: Na maioria dos casos, os governos não têm qualquer interesse em realizar uma auditoria autêntica com a participação cidadã. Noutros casos, talvez se resignem a uma auditoria a fim de conter o problema.

Eric Toussaint: É evidente. O modelo que acabo de descrever corresponde a uma situação de mobilização popular muito forte, capaz de colocar no governo forças de esquerda que adoptem políticas favoráveis aos interesses populares ou que vão ainda mais além. Isto faz-me lembrar a imagem usada por Arthur Scargill, um dos principais dirigentes da greve dos mineiros britânicos em meados dos anos 1980. Dizia ele, grosso modo: “Precisamos de um governo tão fiel aos interesses dos trabalhadores como o governo de Margaret Thatcher é fiel aos interesses da classe capitalista.” Na situação presente da Europa, ainda estamos muito longe disso; vemo-nos confrontados com uma atitude hostil dos governos no poder relativamente à auditoria e à contestação do reembolso da dívida. Como tal, é necessário constituir uma comissão de auditoria cidadã sem participação governamental.

CADTM: Quem deve pagar a factura da anulação das dívidas?

Eric Toussaint: Em todos os casos, hipoteticamente, é legítimo que as instituições privadas e as pessoas físicas com elevados rendimentos que detêm títulos das dívidas suportem o fardo da anulação das dívidas soberanas ilegítimas, já que têm grandes responsabilidades na crise, da qual se aproveitaram largamente. O facto de terem de suportar o fardo da anulação não significa outra coisa senão a reposição da justiça social.

CADTM: Os pequenos detentores de títulos ou os assalariados que, por meio de poupanças, detêm títulos da dívida pública também terão de ser sacrificados?

Eric Toussaint: É importante constituir un registo dos detentores de títulos, de modo a indemnizar os cidadãos e cidadãs com baixo e médio rendimento.

CADTM: O que acontecerá aos responsáveis pelo endividamento ilegítimo ou odioso?

Eric Toussaint: Se a auditoria demonstrar a existência de delitos ligados ao endividamento ilegítimo, os autores devem ser severamente condenados a pagarem as reparações e não devem escapar às penas de prisão em função da gravidade dos seus actos. Há que pedir contas na justiça às autoridades que lançaram empréstimos ilegítimos.

CADTM: E que dizer da parte da dívida que não for identificada como ilegítima, odiosa ou ilegal?

Eric Toussaint: No que diz respeito às dívidas que não estejam feridas de ilegitimidade, um esforço em termos de redução dos stocks e das taxas de juro Juro Quantia paga em retribuição de um investimento ou um empréstimo. O juro é calculado em função do montante do capital investido ou emprestado, da duração da operação e de uma taxa acordada. devera ser exigido aos credores, bem como um prolongamento do período de reembolso. Também neste caso, uma distinção positiva a favor dos pequenos portadores de títulos da dívida pública, que deverão ser reembolsados normalmente, deverá ser feita. Por outro lado, a parte do orçamento de Estado destinada ao reembolso da dívida tem de ser sujeita a um tecto em função do estado da economia, da capacidade dos poderes públicos de reembolsarem e do carácter indefectível das despesas sociais. Temos de nos inspirar no que foi feito pela Alemanha depois da Segunda Guerra Mundial. O Acordo de Londres sobre a dívida alemã de 1953, que consistiu em deduzir 62% do stock da dívida, estipulava que a relação entre o serviço da dívida e os rendimentos provenientes da exportação não devia ultrapassar os 5% [4]. Poderíamos definir um rácio deste tipo: o montante destinado ao reembolso da dívida não pode exceder 5% das receitas do Estado. Além disso, é preciso adoptar um quadro legal que evite a repetição da crise que se iniciou em 2007-2008: proibir a socialização das dívidas privadas, tornar obrigatória a auditoria permanente da política de endividamento público com participação cidadã, tornar imprescritíveis os delitos ligados ao endividamento ilegítimo, nulidade das dívidas ilegítimas…

CADTM: Anulam-se as dívidas, mas será preciso mexer no resto?

Eric Toussaint: Também é necessário aplicar uma panóplia de medidas complementares – suspensão dos planos de austeridade, transferência dos bancos para o sector público, reforma fiscal radical, socialização dos sectores privatizados durante a era neoliberal, redução radical dos horários de trabalho… [5].Estas medidas são necessárias, pois a anulação da dívida ilegítima, embora necessária, é insuficiente se a lógica do sistema permanecer intacta.

Final


Sobre a crise da dívida na União Europeia, pode ler do mesmo autor:

- “Grécia, Irlanda e Portugal: porque é que os acordos com a Troika são odiosos?” (escrito com Renaud Vivien):
FR – http://www.cadtm.org/Grece-Irlande-et-Portugal-pourquoi publicado a 09-08-2011;
PT – http://www.cadtm.org/Grecia-Irlanda-e-Portugal-porque-e publicado a 16-08-2011;

- “Il faut annuler les dettes illégitimes”, entrevista de Eric Toussaint por Sébastien Brulez (jornal «Le Courrier», Genève), publicada a 3-08.2011: http://www.cadtm.org/Il-faut-annuler-les-dettes ;

- “Enfrentar a crise da dívida na Europa» (escrito com Damien Millet),
PT – http://www.cadtm.org/Enfrentar-a-crise-da-divida-na publicado a 13-07-2011;
FR – http://www.cadtm.org/Affronter-la-crise-de-la-dette-en publicado a 10-07-2011;

- “Pourquoi la crise frappe l’Union européenne davantage que les Etats-Unis”, publicado a 06-07-2011, http://www.cadtm.org/Pourquoi-la-crise-frappe-l-Union ;

- “Centro versus periferia na EU”,
FR – http://www.cadtm.org/Centre-versus-Peripherie-dans-l-UE publicado a 13-06-2011;
PT – http://www.cadtm.org/Centro-versus-Periferia-na-UE ;

- “As ajudas envenenadas do menu europeu”,
FR – http://www.cadtm.org/Aides-empoisonnees-au-menu publicado a 17-042011;
PT – http://www.cadtm.org/As-ajudas-envenenadas-do-menu publicado a 20-05-2011;

- “Oito propostas urgentes para uma outra Europa”,
FR – http://www.cadtm.org/Huit-propositions-urgentes-pour publicado a 04-04-2011;
PT – http://www.cadtm.org/Oito-propostas-urgentes-para-uma publicado a 12/05/2011.


Traduzido por Rui Viana Pereira e revisto por Noémie Josse-Dos Santos.

Notas

[1Este artigo está incluído numa série de sete artigos. Ver a primeira parte “A Grécia no centro da tormenta” http://www.cadtm.org/A-Grecia-no-ce..., a segunda parte “A feira de saldos dos títulos gregos” http://www.cadtm.org/A-feira-de-sal... a terceira parte “O BCE, servo fiel dos interesses privados” http://www.cadtm.org/O-BCE-servo-fi... a quarta parte: O “Plano Brady” europeu – austeridade permanente http://www.cadtm.org/Quarta-parte-O... a quinta parte:
os CDS e as agências de notação : fautores de riscos e desestabilização http://www.cadtm.org/Quinta-parte-o... a sexta parte: A crise já atingiu o apogeu ? http://www.cadtm.org/A-crise-ja-atingiu-o-apogeu

[2Ver Damien Millet, Eric Toussaint (dir.), La dette ou la vie, Aden-CADTM, 2011, cap. 19. A propósito do sucesso da Argentina quando recusou o pagamento de boa parte da sua dívida, o Financial Times consagrou-lhe uma página inteira a 19.07.2011 (p. 7). A propósito da Argentina e da Rússia, Joseph Stiglitz, prémio do Banco da Suécia em Ciências Económicas em memória de Alfred Nobel em 2001, Presidente do Conselho de Economistas do Presidente Bill Clinton de 1995 a 1997, economista-chefe e vice-presidente do Banco Mundial de 1997 a 2000, apresenta argumentos fortes a propósito da defesa da suspensão do reembolso das dívidas públicas. Num livro colectivo publicado em 2010 pela universidade Oxford (Barry Herman, José Antonio Ocampo, Shari Spiegel, Overcoming Developing Country Debt Crises, OUP Oxford), afirma que a Rússia em 1998 e a Argentine ao longo dos anos 2000 deram provas de que uma suspensão unilateral do reembolso da dívida pode ser benéfica para os países que tomam essa decisão: “Tanto a teoria como a prática sugerem que a ameaça de encerramento das fontes de financiamento foi provavelmente exagerada” (p. 48). Num artigo publicado pelo Journal of Development Economics com o título “The elusive costs of sovereign defaults”, Eduardo Levy Yeyati e Ugo Panizza, dois economistas que trabalharam para o Banco Interamericano de Desenvolvimento, apresentam os resultados das suas investigações minuciosas sobre as quebras de pagamento em cerca de 40 países. Uma das conclusões principais é esta: “Os períodos de situação de incumprimento marcam o início da recuperação económica” (in Journal of Development Economics 94, 2011, p. 95-105). Ver também a propósito da Rússia e da Argentina: C. Lapavitsas, A. Kaltenbrunner, G. Lambrinidis, D. Lindo, J. Meadway, J. Michell, J.P. Painceira, E. Pires, J. Powell, A. Stenfors, N. Teles: “The eurozone between austerity and default”», Setembro de 2010, http://www.researchonmoneyandfinance.org/media/reports/RMF-Eurozone-Austerity-and-Default.pdf. A propósito da lições da Argentina para a Grécia, ver Claudio Katz: http://www.cadtm.org/IMG/pdf/Lecciones_de_Argentina_para_Grecia__CADTM_-1_-_Claudio_Katz.pdf

[3Ver Damien Millet, Eric Toussaint (dir.), La dette ou la vie, Aden-CADTM, 2011, caps. 20 e 21.

[4Ver Éric Toussaint, Banque mondiale: le Coup d’État permanent, CADTM-Syllepse-Cetim, 2006, cap. 4.

[5Ver “Oito propostas urgentes para uma outra Europa”

Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

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