14 de Novembro de 2017 por Eric Toussaint
Desde o início da luta pela independência, Simón Bolívar [1], bem como outros dirigentes independentistas, lançou-se numa política de endividamento interno (que acabou por beneficiar as classes dominantes locais) e de endividamento externo junto dos banqueiros da Grã-Bretanha. A fim de pedir empréstimos no estrangeiro, penhorou uma parte das riquezas da nação e celebrou acordos de livre comércio com a Grã-Bretanha. A maior parte dos montantes emprestados nunca chegou à América Latina, pois os banqueiros de Londres ficaram com comissões enormes, taxas de juro real abusivas e venderam os títulos muito abaixo do seu valor facial. Alguns dos encarregados da missão latino-americana mandatados pelos líderes independentistas também se abotoaram com chorudas comissões na fonte, quando não roubaram pura e simplesmente uma parte dos empréstimos. Quanto ao restante, uma parte considerável dos empréstimos serviu directamente para comprar aos comerciantes britânicos armas e equipamento militar a preços proibitivos. Quanto ao que conseguiu chegar à América Latina, ou seja uma parte diminuta dos empréstimos, uma parcela importante foi desviada em proveito dos membros das novas autoridades, dos chefes militares e das classes dominantes locais. Uma série de citações de Simón Bolívar, acompanhadas dos comentários de Luis Britto, indica claramente que o Libertador tomou pouco a pouco consciência da ratoeira da dívida na qual os novos Estados independentes tinham caído. Simón Bolívar não tentou enriquecer pessoalmente, tirando proveito das suas funções de chefe de Estado, ao contrário de vários dirigentes chegados ao poder graças às lutas independentistas.
Um endividamento externo feito em termos muito favoráveis à Grã-Bretanha
Em Novembro de 1817, Simón Bolívar delegou num enviado especial a Londres, a fim de obter crédito financeiro exterior. Na carta de acreditação que redigiu, conferiu-lhe enormes poderes: «E a fim de que ele proponha, negocie, adapte, conclua e assine em nome e sob a autoridade da República da Venezuela qualquer pacto, convenção e tratado fundado no princípio do seu reconhecimento, como Estado livre e independente, e de lhe angariar apoio e protecção, estipulando para o efeito todas as condições necessárias para indemnizar a Grã-Bretanha pelos seus generosos sacrifícios e fazer-lhe presente provas positivas e solenes de uma nobre gratidão e de uma reciprocidade de serviços e sentimentos» (Luis Britto, p. 395). Luis Britto [2] faz o seguinte comentário: «A acreditação é formulada em termos muito latos: permite “qualquer condição necessária”». «O mandatário, tal como os credores, serviu-se dela com a maior liberdade» (Britto, p. 395). De início as dívidas contraídas destinaram-se exclusivamente para os gastos de guerra.
Referindo-se à criação da Grande Colômbia (Venezuela, Colômbia, Panamá, Equador) em 1819, Britto comentou: «Esta integração acarretou a amálgama das dívidas contraídas por cada um dos corpos políticos. Assim, o artigo 8 da Constituição estipula claramente: “São reconhecidas solidariamente como dívida nacional da Colômbia as dívidas que os dois povos contraíram solidariamente; e todos os bens da República são garantes da sua liquidação”». Britto prossegue: «Não só as dívidas são constitucionalmente consolidadas: segundo a Lei Fundamental, todos os bens públicos do corpo político nascente são dados como garantia. Desgraçadamente, essa operação não é efectuada com a transparência desejável, pois os registos das operações estavam incompletos e eram confusos.»
Rosa Luxemburgo, cerca de um século mais tarde, considerou que esses empréstimos, embora necessários, tinham constituído um instrumento de subordinação dos jovens Estados: «Esses empréstimos eram indispensáveis à emancipação dos jovens Estados emergentes e ao mesmo tempo constituíam o meio mais seguro para os velhos países capitalistas manterem sob tutela os jovens países, controlarem as suas finanças e exercerem pressão sobre a sua política externa, alfandegária e comercial» [3]. Por meu lado, analisei o elo entre a política de endividamento e os acordos de livre comércio na primeira metade do século XIX na América Latina em «La dette et le libre-échange comme instruments de subordination de l’Amérique latine depuis l’indépendance».
As novas elites tiraram proveito da dívida interna e recusaram pagar impostos
O cônsul inglês Sir Robert Ker Porter menciona as conversações com Simón Bolívar no seu diário, com data de 15 de Fevereiro de 1827, onde comenta: «Bolívar reconhece a existência de uma dívida interna de 71 milhões de dólares, em papel-moeda, que têm de ser pagos pelo governo. Centenas de indivíduos especularam intensamente e de forma usurária a maior parte do tempo sobre os títulos de dívida, comprando-os a pessoas necessitadas a 5 %, 25 % e 60 %, e fui informado, por mais incrível que pareça, que quase nenhum funcionário detém dinheiro líquido, pois tudo é aplicado nessa especulação imoral e antipatriótica: o vice-presidente Santander (segundo me informaram) detém à volta de dois milhões desses títulos, que parece ter comprado por 200 000 dólares» (ver Britto, op. cit., p. 378). Luis Britto acrescenta o seguinte comentário: «estes agiotas estão por sua vez estreitamente ligados a numerosos oficiais e homens políticos republicanos, que fazem gordas fortunas à custa do sangue das suas tropas» (p. 380). E acrescenta ainda: «o anúncio de medidas fiscais rigorosas meteu medo a funcionários como o intendente Cristobal Mendoz, que se demitiu intempestivamente» (p. 380).
A dívida nacional vai oprimir-nos
As palavras escolhidas por Simón Bolívar numa carta enviada a 14 de Junho de 1823 ao vice-presidente Francisco Paula de Santander (o mesmo de que fala o cônsul inglês nas suas notas de 1823) são incisivas: «Enfim, tudo faremos, mas a dívida nacional vai oprimir-nos.» E referindo-se aos membros das classes dominantes locais e aos novos poderes: «A dívida pública engendra um caos de horrores, de calamidades e de crimes e o senhor Zea é o génio do mal, e Mendez, o génio do erro e a Colômbia é uma vítima a quem os abutres arrancam as entranhas: devoraram antecipadamente o suor do povo colombiano; destruíram o nosso crédito moral, e em troca nada recebemos senão magros apoios. Seja qual for a decisão tomada em relação a esta dívida, será horrível: se a reconhecermos, deixamos de existir, e se não o fizermos … esta nação será objecto de opróbrio» (Britto, p. 405). Vemos com clareza que Simón Bolívar, que tomou consciência da armadilha da dívida, rejeita o repúdio.
Dois meses mais tarde Simón Bolívar volta a escrever ao vice-presidente Santander a propósito da dívida e refere-se à situação das novas autoridades do Peru: «O governo de Riva Agüero é o governo de um Catilina associado ao de um Caos; não se pode imaginar piores canalhas nem piores ladrões que os que o Peru tem à cabeça. Comeram seis milhões de pesos emprestados, de maneira escandalosa. Riva Agüero, Santa Cruz e o ministro da Guerra roubaram, só à sua conta, 700 000 pesos, só em contratos firmados para equipamento e transporte de tropas. O Congresso pediu contas e foi tratado como o Divã de Constantinopla. O modo como se comportou Riva Agüero é infame. E o pior é que, entre espanhóis e patriotas, mataram o Peru à força de repetidas pilhagens. Este país é o mais caro do mundo e já não possui um maravedi para se desenvencilhar» (in Britto, p. 406).
Simón Bolívar, acossado pelos credores, estava disposto a ceder-lhes os bens públicos. Em 1825 propõe pagar a dívida cedendo uma parte das minas do Peru que tinham sido deixadas ao abandono durante a guerra da independência (ver Britto, p. 408 e ss.); em 1827 tenta desenvolver o cultivo do tabaco de qualidade, para vender o produto à Grã-Bretanha, de maneira a poder pagar a dívida (Britto, p. 378-382); em 1830, propõe vender aos credores terras públicas que permaneciam incultas (Britto, p. 415-416).
Simón Bolívar ameaça denunciar publicamente perante o povo o abominável sistema da dívida
A 22 de Julho de 1825, Simón Bolívar escreve a Hipólito Unanue, presidente do Conselho do Governo do Peru: «Os donos das minas, os donos de prata e ouro dos Andes, procuram obter empréstimos de milhões para pagar mal à sua pequena tropa e à sua miserável administração. Que tudo isto seja dito ao povo e que se denuncie energicamente os nossos abusos e a nossa inépcia, para que não se possa dizer que o governo protege o abominável sistema que nos arruína. Que se denuncie, dizia eu, na Gazeta do Governo os nossos abusos; e que aí sejam publicados quadros que firam a imaginação dos cidadãos» (Britto, p. 408).
Em Dezembro de 1830, Simón Bolívar faleceu em Santa Maria (na costa caribenha da Colômbia), enquanto a Grande Colômbia era estilhaçada e ele era abandonado pelas classes dominantes da região. Ficou provado que nunca tentou enriquecer pessoalmente ou tirar partido das suas funções de chefe de Estado, ao contrário de numerosos dirigentes chegados ao poder graças às lutas de independência.
Tradução de Rui Viana Pereira
Agradecimentos a Lucile Daumas, que traduziu para francês as citações originalmente em espanhol.
[1] Simón Bolívar, nascido a 24 de Julho de 1783 em Caracas,Venezuela, falecido a 17 de Dezembro de 1830, em Santa Marta, Colômbia, foi um general e político venezuelano. É uma figura emblemática, juntamente com o argentino José de San Martín e o chileno Bernardo O’Higgins, da emancipação das colónias espanholas da América do Sul a partir de 1813. a sua participação foi decisiva na independência dos actuais Bolívia, Colômbia, Equador, Panamá, Peru e Venezuela. Bolívar participou também na criação da Grande Colômbia, que ele desejava viesse a tornar-se uma grande confederação política e militar que agrupasse o conjunto da América Latina e da qual foi o primeiro presidente.
O título honorífico de «Libertador» foi-lhe concedido em primeira mão pelo cabido de Mérida (Venezuela), mais tarde ratificado em Caracas (1813), e permanece ainda hoje associado ao seu nome. Bolívar deparou-se com tantos obstáculos para levar a bom termo os seus projectos, que chegou a autointitular-se «o homem das dificuldades», numa carta endereçada ao general Francisco de Paula Santander em 1825.
Enquanto figura maior da História universal, Bolívar é hoje um ícone político e militar em vários países da América Latina e pelo mundo fora; grande número de praças, ruas e parques têm o seu nome. O seu nome também é o de um Estado da Venezuela, de um distrito da Colômbia e sobretudo de um país: a Colômbia. Encontramos estátuas com a sua efígie na maioria das grandes cidades da América hispanófona, mas também em Nova Iorque, Lisboa, Paris, Londres, Bruxelas, Cairo, Toquio, Quebeque, Ottawa, Alger, Madrid, Teerão, Barcelona, Moscovo e Bucareste. Extraído da Wikipedia.
[2] Luis Britto García é um homem de letras, dramaturgo, historiador e ensaísta venezuelano, nascido em Caracas a 9 de Outubro de 1940. Em 1910 publicou em espanhol uma obra consagrada a Simón Bolívar: El pensamiento del Libertador - Economía y Sociedad, BCV, Caracas, 2010, http://blog.chavez.org.ve/temas/libros/pensamiento-libertador/
Em Maio de 2012, Luis Britto García foi nomeado conselheiro da Presidência, pelo presidente Hugo Chávez, no Conselho de Estado venezuelano. Ver : https://fr.wikipedia.org/wiki/Luis_Britto_Garcia
[3] Rosa Luxemburgo. 1913. L’accumulation du capital, Maspero, Paris, 1969, Vol. II, p. 89.
docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.
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