Sob o jugo do FMI

18 de Outubro por Eric Toussaint , Benito Pérez


Da esquerda para a direita, Fernanda Melchionna, Éric Toussaint, Aminata Dramane Traoré e Gilbert Achcar, na plenária de abertura da contra Cúpula, em 12 de outubro de 2023, em Marraquexe

Sobre o tema da nova crise da dívida e ao acompanhamento da contra cúpula de Marrakech contra o Banco Mundial e o FMI, o CADTM tem o prazer de reproduzir um artigo publicado pelo Le Courrier, um diário suíço com sede em Genebra, em sua edição de terça-feira, 17 de outubro de 2023. O artigo e a entrevista foram realizados pelo jornalista Bénito Perez.



Algumas centenas de oponentes das políticas neoliberais deixaram Marrakech no domingo sob perspectivas muito sombrias. Os próximos meses perigam ser extremamente difíceis para as populações de muitos países do Sul, ameaçados pelo que só pode ser descrito como uma «nova crise da dívida», de acordo com Eric Toussaint, um dos mentores por trás da contra cúpula organizada por cerca de setenta organizações e redes em paralelo das Reuniões Anuais do FMI e do Banco Mundial (veja nossa edição de sexta-feira). O cientista político e economista belga, fundador da rede contra a dívida CADTM, fala ao Le Courrier sobre a dimensão financeira dessa enésima crise sistêmica do capitalismo, que, assim como os problemas ambientais e de saúde, afeta principalmente os mais vulneráveis.

Quais são os contornos dessa nova crise da dívida que muitos países do Sul estão enfrentando?

Eric Toussaint: Desde o ano passado, um número crescente de países tem se deparado com a impossibilidade de refinanciar suas dívidas no mercado. A principal causa é o fim das políticas de flexibilização quantitativa (QE) introduzidas pelos bancos centrais após a crise imobiliária e bancária nos Estados Unidos em 2006-2007 que levou a uma crise generalizada nos sistemas financeiros europeu e norte-americano em 2008. Além de injetar milhares de bilhões de dólares, euros e libras para salvar os bancos, os bancos centrais adotaram uma política de taxas de juros extremamente baixas ou até mesmo zero até 2021. Durante essa década, países que nunca haviam tido acesso aos mercados financeiros, inclusive países muito pobres, como Etiópia e Ruanda, subitamente encontraram compradores para seus títulos de dívida em Wall Street. Os fundos de investimento e os bancos, vendo que o rendimento dos títulos franceses ou alemães estava próximo de zero, demonstraram interesse em financiar os governos do Sul em troca de juros de 4%, 5% ou 6%. Esses governos, então, se endividaram, dizendo às suas populações: olha, está tudo bem, os mercados confiam em nós, somos confiáveis, e assim por diante. Mas quando os bancos centrais ocidentais, diante da inflação, subitamente aumentaram suas taxas para 5%, os financiadores voltaram-se novamente para os títulos do Norte e os países do Sul não conseguiram mais encontrar uma maneira de refinanciar seus empréstimos a menos de 9%, 12% ou até 15%.

Esse choque foi agravado pelas consequências da crise da Covid. Esses países tiveram de aumentar seus gastos, principalmente com saúde, enquanto suas receitas, muitas vezes dependentes do mercado mundial de matérias-primas ou do turismo, secaram. Por fim, houve especulação sobre os preços dos grãos e do petróleo após a invasão russa na Ucrânia. E uma série de países do Sul são importadores líquidos desses dois produtos.

A política de QE estava, sem dúvida, insustentável a longo prazo, mas como podemos explicar esse aumento repentino da inflação após mais de uma década sem inflação?

Em primeiro lugar, é preciso lembrar que essa política de resgate dos bancos era indesejável. Além disso, ela também levou ao endividamento dos países do Norte. No que diz respeito à inflação, ela é resultado principalmente das decisões das grandes empresas de alimentos e combustíveis de aumentar suas margens, aproveitando as interrupções no fornecimento e as variações de preços causadas pela Covid e pelas crises de guerra.

Quem são, no Sul, os elos mais fracos dessa nova crise?

«As primeiras vitimas da crise são, com frequencia, antigos bons alunos do FMI »
Eric Toussaint

Em geral, esses são países que eram considerados “0s bons alunos” pelas autoridades financeiras neoliberais. Veja o caso do Sri Lanka, que nunca foi inadimplente. No passado, esse país foi forçado a abolir a regulamentação do preço do arroz. De autossuficiente, tornou-se dependente do mercado mundial (Vietnã, Tailândia, Estados Unidos). Em seguida, o Sri Lanka investiu maciçamente no setor de turismo. Com a Covid e a guerra na Ucrânia, o Sri Lanka foi atingido, sucessivamente, por uma interrupção no turismo e um aumento no preço dos cereais! Em abril de 2022, Colombo não teve escolha a não ser suspender o pagamento de sua dívida e interromper as importações. Daí a explosão social. Outro exemplo é Gana, um «modelo de abertura», que também suspendeu o serviço da dívida.

Egito, Paquistão e Bangladesh só evitaram a suspensão após intervenção do FMI, mas com as condições draconianas que conhecemos (privatizações, austeridade, desregulamentação) e que já atingiram a população.

Após Marraquexe
Apesar de uma organização às vezes caótica e da ausência forçada de vários ativistas que não haviam recebido vistos, os participantes no domingo fizeram uma avaliação muito positiva da contra-cúpula. Principalmente africana, mas enriquecida por contribuições da Europa, Ásia e até mesmo da América Latina, a reunião antiglobalização foi um lembrete de que não há substituto para os intercâmbios diretos, como observou Monica Vargas, da ONG Grain. Broulaye Bagayoko, secretário permanente do CADTM-Africa, acrescentou: «Esta é uma oportunidade única de construir solidariedade, o que é ainda mais valioso dadas as dificuldades de viajar na África».

A mesma observação foi feita por Roos Saalbrink, da ONG holandesa Action Aid, que teve a experiência incomum de viajar de um lado para o outro entre a cúpula alternativa e a oficial, onde acompanhou um grupo de mulheres africanas vítimas das políticas de austeridade. «Foi inestimável para nós nos afastarmos do discurso oficial e ouvirmos análises que não tinham ilusões sobre as promessas do FMI», diz ela.
Para Eric Toussaint, Marrakech certamente terá uma continuação, nem que seja para manter os vínculos criados entre movimentos sociais que até recentemente não se conheciam. Em um cenário de recuo global da resistência, o pequeno lampejo de luz aceso no Marrocos deve ser mantido. O ativista reconhece, no entanto, que «ainda precisamos reunir muitas outras forças, com várias redes que permaneceram à margem, se quisermos redescobrir uma estrutura» para a coordenação antiglobalização em escala global. Embora o CADTM vá participar do próximo Fórum Social Mundial, programado para ocorrer no Nepal de 15 a 19 de fevereiro de 2024, ele parece ter aceitado que a ausência da Via Campesina, em particular, significa que o FSM não será mais tão representativo quanto antes.

É de se esperar uma onda de novos planos de ajuste estrutural...

Sim, essa crise marca o retorno em força do FMI, que nunca se sai tão bem quanto quando o Sul está caindo. É verdade que não estamos vendo uma generalização das suspensões de pagamento, mas sim uma sucessão de dificuldades que estão levando a um recurso sistemático ao FMI. O FMI assinou nada menos que uma centena de contratos de crédito e, à medida que os países tiverem mais dificuldade para pagar, os planos de austeridade se tornarão mais rigorosos e mais numerosos. Estamos falando de somas que variam de algumas dezenas de milhões a 45 bilhões para a Argentina, ou 15 bilhões para a Ucrânia. Você pode imaginar o poder de coerção que isso coloca nas mãos do FMI.

Os debates na contra cúpula mostraram muito ceticismo sobre a possibilidade de ver o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), criado pelos BRICS BRICS O termo BRICS (acrónimo de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) foi utilizado pela primeira vez em 2001 por Jim O’Neill, na altura economista da Goldman Sachs. O forte crescimento económico destes países, combinado com a sua importante posição geopolítica (estes 5 países reúnem quase metade da população mundial em 4 continentes e quase um quarto do PIB mundial), fazem dos BRICS actores importantes nas actividades económicas e financeiras internacionais.  [1], como uma alternativa às instituições de Bretton Woods (FMI/BM). Mas por quê?

Para nós, ele não é absolutamente uma alternativa, pois apóia o mesmo modelo extrativista e produtivista. Esse banco, no qual a China desempenha um papel central, vê a África simplesmente como um lugar para extrair matérias-primas ou mão de obra mal paga. Suas taxas são semelhantes às do FMI e do BM. A grande diferença é que ele não impõe condicionalidades econômicas e políticas aos países tomadores de empréstimos. Daí o interesse demonstrado por muitos países africanos. Mas isso não o torna um banco de desenvolvimento. Ele não empresta para industrializar a África, mas para criar infraestrutura para exportar matérias-primas ou para buscar políticas de prestígio.

Então, qual é a alternativa? Pode apontar elementos de esperança surgindo nessa contra cúpula?

Fiquei impressionado com a compreensão da natureza real das políticas do FMI e do Banco Mundial por parte dos movimentos sociais da África Subsaariana. Há muito menos ilusões do que no passado sobre as promessas dos credores. Cada vez mais atores da sociedade civil estão vislumbrando o desenvolvimento sem essas organizações. Com outras políticas monetárias, fiscais e judiciais, os estados africanos poderiam realmente prescindir delas.


Notas

[1Criado pelo Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul em 2014, a ele se juntaram Bangladesh, Egito e Emirados Árabes Unidos. É dirigido pela ex-presidente do Brasil, Dilma Rousseff

Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

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