23 de Abril de 2021 por La Via Campesina
Jornada internacional das lutas camponesas: declaração da Via Campesina.
(Harare, 15 de abril de 2021) A 17 de abril corrente, por ocasião da Jornada Internacional das Lutas Campesinas, reafirmamos a nossa visão a longo prazo da soberania alimentar e apelamos ao reforço da nossa solidariedade contra a crescente criminalização das nossas lutas. O assassínio e a repressão de camponeses/as, de povos indígenas, de todos/as quantos/as lutam pelos direitos das suas comunidades, pela dignidade e igualdade no mundo, têm de acabar. Ao exigirmos a uma só voz o pleno respeito pelos nossos direitos e o fim da impunidade, da criminalização e dos massacres, temos consciência do contexto social e económico difícil com o qual se confrontam numerosos/as camponeses/as e povos no mundo inteiro.
Primeiro, o alastramento da pandemia de covid-19 deu origem a uma crise sanitária iniciada em 2020 e provocou mais de dois milhões de mortes em todo o mundo. As medidas adoptadas para atenuar e travar a propagação da pandemia provocaram uma profunda crise social, com graves recuos nos direitos dos trabalhadores/as, aumento do desemprego, da corrupção, da miséria, da fome e da violência. Esta crise sanitária, que surge quando já estava em curso uma crise climática, vem agravar a situação social e económica da maioria das pessoas.
Segundo, os lobbies do agronegócio e das multinacionais intensificaram os seus esforços para se apoderarem dos espaços de governança mundial democrática. Invocando o agravamento da fome, algumas vozes apelaram a que os governos suspendessem a proibição de utilizar OGM. Entretanto, algumas grandes empresas, a coberto da pandemia, levaram alguns decisores políticos a enfraquecer as leis de protecção dos recursos naturais. Assistimos a tentativas deliberadas de encerrar a participação cívica nos processos de elaboração das políticas mundiais e nos espaços das Nações Unidas. A deslocação das reuniões do Conselho dos Direitos Humanos e de outros acontecimentos em linha limitou a participação de camponeses/as e comunidades autóctones.
Terceiro, o realinhamento actual das forças e dos actores geopolíticos – ilustrado no aumento das tensões entre nações economicamente avançadas (EUA e União Europeia contra China e Rússia, etc.), na militarização crescente em curso, assim como na partilha de mercados mundiais entre essas grandes nações, e na reintrodução de tarifas comerciais, a fim de impedir a concorrência estrangeira entre aliados (EUA contra UE) – dá sinal da aflição de um sistema capitalista em decomposição. A competição pelas fontes de matérias-primas, a começar pelos metais raros, e o apetite pelos diversos mercados mundiais provocam inevitáveis conflitos armados e guerras devastadoras. Tudo isto veio agravar a crise migratória em África, Médio Oriente, América do Norte, América Latina e Europa.
As múltiplas crises com que o mundo se defronta não são novas. Devemos aproveitá-las para fazer compreender o interesse e a justiça da nossa proposta, que é a da soberania alimentar.
As crises alimentar, climática, ambiental, económica, democrática e sanitária, que atingiram o auge com a pandemia de covid-19, mostram claramente a toda a humanidade que é indispensável transformar o modelo agrícola e alimentar actual. Cada crise, quer se trate da pandemia de covid-19 ou da penúria alimentar, mostrou-nos a importância e a resiliência dos sistemas alimentares locais, que o neoliberalismo continua a erodir e a debilitar.
Desde o seu nascimento em 1993, a Via Campesina desenvolveu e promoveu a soberania alimentar como uma alternativa às relações de produção capitalistas dominantes, em particular na agricultura. Ao longo desses 28 anos, a soberania alimentar ganhou terreno entre os movimentos sociais e as organizações da sociedade civil.
A soberania alimentar e a agroecologia camponesa saem reforçadas de cada crise. Afirmam-se cada vez mais como soluções incontornáveis: a relocalização dos sistemas alimentares é essencial na luta contra a fome, no arrefecimento do planeta, na preservação da biodiversidade e no respeito pelos direitos camponeses e laborais. Além disso, a soberania alimentar favorece a solidariedade, essencial para o futuro da humanidade – ao contrário do individualismo promovido pelo capitalismo. O capitalismo reforçou a nossa vontade colectiva de sobreviver. São as pessoas, e não os lucros, que contam acima de tudo! Chegou a hora de transformar o nosso sistema alimentar e de construir uma sociedade centrada nos nossos valores.
Nós, Via Campesina, pensamos que os governos devem formular e pôr em prática com a máxima urgência políticas públicas radicais para prestar auxílio, dignidade e igualdade a milhares de pessoas cuja sobrevivência está por um fio. Sem uma mudança radical das políticas públicas, o desespero aumentará, assim como os seus efeitos secundários (por exemplo, a subida actual da extrema direita, do fascismo e de outras formas de nacionalismo totalitário em diversos países). A soberania alimentar continua a ser a única solução coerente – uma solução favorável às famílias rurais e às famílias consumidoras, nos nossos países.
Após um trabalho considerável ao longo de 28 anos, que permitiu formular propostas, acumular experiência e criar alianças, estamos agora perante uma ocasião histórica para pôr em prática boas políticas, apoiando-nos na declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos camponeses/as e de outras pessoas que trabalham nas zonas rurais (UNDROP). Beneficiamos do apoio de alguns governos progressistas, do relator especial das Nações Unidas para o direito à alimentação, dos processos do Comité para a Segurança Alimentar Mundial e do seu mecanismo da sociedade civil. A UNDROP deve ser usada como instrumento mundial para a programação da reforma agrária. O acesso à terra por parte daqueles e daquelas que produzem a nossa alimentação em pequena escala é necessário e urgente. Devia ser um componente essencial das políticas públicas que os países deveriam aplicar nos respectivos territórios, para permitir condições de vida e de trabalho decentes nas zonas rurais. Trabalharemos com os governos progressistas e os movimentos rurais e urbanos que partilhem as mesmas ideias, bem como com outras organizações, para vigiar e assegurar a boa aplicação das políticas públicas necessárias. É uma oportunidade que não podemos deixar escapar. Mesmo as tentativas actuais de iniciativa do Fórum Económico Mundial para organizar e desviar a cimeira das Nações Unidas sobre os sistemas alimentares não deveria entravar o nosso progresso. Só os/as camponeses/as e a sua participação activa na elaboração das políticas alimentares pode levar a uma solução sustentável: políticas públicas assentes na soberania alimentar. Temos de nos preparar, enquanto camponeses/as, para combater e resistir às multinacionais, ao agronegócio, aos latifundiários e ao imperialismo.
Para tirar proveito deste momento político, para retomar o controlo da alimentação, a Via Campesina e seus aliados/as apelam aos governos para que definam e afinem as propostas de políticas públicas para alcançar a soberania alimentar a todos os níveis. Significa isto a recuperação da capacidade produtiva nacional, enraizada no sector da agricultura camponesa e familiar, com a ajuda de orçamentos do sector público, de preços garantidos, de créditos e de outras formas de apoio – incluindo o apoio à comercialização directa entre produtores/as e consumidores/as. Reivindicamos verdadeiros programas de acesso à terra, para reforçar a agricultura camponesa e familiar, assim como sistemas alimentares e agrícolas capazes de dar resposta às necessidades das cidades e dos campos. Temos de reforçar os sistemas de investigação e apoio técnico baseados na troca de experiências entre camponeses/as e a investigação participativa.
Como camponeses/as, lutamos também para que a saúde seja plenamente considerada um direito humano, nomeadamente no âmbito da pandemia mundial de covid-19. Como Via Campesina, exigimos o direito à saúde pública e gratuita para todos os povos, conforme está definido no artigo 23 da Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos camponeses/as (UNDROP), incluindo o acesso à vacinação, a métodos de medicina preventiva e a tratamentos de longo prazo. As vacinas não devem ter patentes privadas nem devem ser abandonadas ao controlo e ao lucro Lucro Resultado contabilístico líquido resultante da actividade duma sociedade. O lucro líquido representa o lucro após impostos. O lucro redistribuído é a parte do lucro que é distribuída pelos accionistas (dividendos). das grandes multinacionais. Se forem patenteadas, caminharemos para uma mercantilização da vida cada vez maior. Todas as pessoas, nas nossas sociedades, devem ter acesso à informação e estar à altura de avaliar os tratamentos propostos. Afirmamos que a saúde começa numa alimentação sã e sustentável que reforce o sistema imunitário, conforme propõe a soberania alimentar, que é uma forma de cuidar do bem-estar das pessoas e do ambiente.
É inaceitável que no século XXI centenas de milhões de pessoas tenham fome, apesar de haver alimento suficiente para todos/as; As desigualdades e as violações dos direitos humanos agravam-se; A criminalização, a repressão brutal e o totalitarismo aumentam por toda a parte.
Neste dia 17 de abril de 2021, dizemos: A luta pela dignidade, pela saúde, por políticas públicas assentes na soberania alimentar e pela protecção das comunidades e dos recursos naturais não é um crime, é um direito! Os estados não devem criminalizar as nossas lutas nem violar os nossos direitos! Nem devem matar-nos! Têm o dever de proteger os nossos direitos. Estamos solidários com todos os povos que lutam pelos seus direitos em todos os quadrantes do Mundo. Com soberania alimentar e solidariedade, podemos alcançar a justiça social e a dignidade para todas as pessoas!
NÓS ALIMENTAMOS O MUNDO E CONSTRUÍMOS A SOBERANIA ALIMENTAR!
MUNDIALIZEMOS A LUTA, MUNDIALIZEMOS A ESPERANÇA!
Fonte: La Via Campesina
Tradução: Rui Viana Pereira
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