20 de Novembro de 2017 por Eric Toussaint
Sabia que os governos dos EUA repudiaram por três vezes, com sucesso, as dívidas públicas devidas aos banqueiros privados?
Nos anos 1830 quatro Estados dos EUA repudiaram as suas dívidas: Mississippi, Arkansas, Florida e Michigan [1]. Os credores eram principalmente britânicos. Alexander Nahum Sack escreve a este propósito: «Uma das principais razões apresentadas para justificar estes repúdios foi o mau uso dos últimos empréstimos: frequentemente os empréstimos serviram para construir bancos ou caminhos de ferro; ora esses bancos foram à falência, as ferrovias não foram construídas. Estes negócios obscuros resultaram com frequência de acordos entre membros polutos do governo e credores desonestos» (p. 158) [2]. Os credores recorreram aos tribunais federais dos EUA para processarem os Estados que repudiaram as suas dívidas, mas viram a sua causa anulada. Para fundamentar a rejeição das queixas, a justiça federal baseou-se na 11.ª emenda da Constituição dos EUA, onde se estipula que «o poder judiciário dos EUA não pode constituir nenhum processo civil contra um dos Estados dos EUA intentado por um cidadão de outro Estado ou por cidadãos ou súbditos de Estados estrangeiros» [3]. E assim o acto unilateral de repúdio alcançou sucesso. Os motivos do repúdio foram o mau uso dos fundos emprestados e a desonestidade tanto dos credores como dos devedores. Não é feita qualquer referência ao carácter despótico do regime.
A Guerra Civil nos EUA
Após a Guerra da Secessão (1861-1865) o governo federal obrigou os Estados sulistas a repudiarem as dívidas que tinham contraído para fazerem a guerra. É esse o objecto da 14.ª emenda da Constituição dos EUA, que estipula «neither the United States nor any State shall assume or pay any debt or obligation incurred in aid of insurrection or rebellion against the United States» («nem os EUA nem qualquer dos Estados poderão assumir ou pagar qualquer dívida ou obrigação destinada a ajudar a insurreição ou rebelião contra os Estados Unidos») [4]. Os credores tinham comprado, principalmente em Londres e em Paris, os títulos emitidos pelos banqueiros europeus por conta dos Estados sulistas. Entre os credores contavam-se o Banco Erlanger de Paris, assim como a sua filial londrina. O banco organizou em 1865 a subscrição do «empréstimo Erlanger», que permitia aos aforradores fazerem-se reembolsar em algodão do Sul dos EUA, à época da Guerra da Secessão, na condição de os Estados confederados do Sul prevalecerem. Esta aposta era remunerada com uma taxa de juro Juro Quantia paga em retribuição de um investimento ou um empréstimo. O juro é calculado em função do montante do capital investido ou emprestado, da duração da operação e de uma taxa acordada. relativamente elevada para a época, 7 % ao ano. O empréstimo também era negociável em Londres. Durante a Guerra da Secessão, os Estados do Sul organizaram uma retenção do algodão – os preços dispararam para um recorde histórico de 1,89 dólares a libra, jamais igualado nos dois séculos seguintes. Este aumento representou uma multiplicação por 20 do preço em poucos meses, mas os industriais britânicos tiveram tempo para armazenar reservas. Em 1870, cinco anos após o fim da guerra, o algodão americano tinha praticamente recuperado o seu nível de produção e o país continuou a ser o líder mundial do algodão até 1931 – já o era desde 1803. Mas os detentores de obrigações Obrigações Parte de um empréstimo emitido por uma sociedade ou uma coletividade pública. O detentor da obrigação, ou obrigacionista, tem direito a um juro* e ao reembolso do montante subscrito. Obrigações também podem serem negociadas no mercado secundário. nunca foram reembolsados, em virtude do repúdio decretado pelo governo federal e da aplicação da secção 4 da 14.ª emenda à Constituição (Ver: «Dívida: a arma que permitiu à França apropriar-se da Tunísia»). O repúdio foi justificado com o facto de os empréstimos terem servido para financiar a rebelião dos Estados do Sul, agrupados numa confederação, contra os Estados Unidos. Não se falou de natureza despótica ou outra do regime dos Estados do Sul. Apenas foi invocada a finalidade dos empréstimos e sobretudo o facto de terem sido contraídos por forças rebeldes.
Uma terceira vaga de repúdios teve lugar nos EUA após 1877. Oito Estados do Sul5 repudiaram as suas dívidas, decretando que as dívidas acumuladas durante o período que se estende entre o fim da Guerra da Secessão e 1877 resultaram de empréstimos ilícitos efectuados por políticos corruptos (entre os quais escravos libertos) que foram apoiados por Estados do Norte. Este repúdio foi portanto decidido por governos racistas regressados ao poder no Sul (oriundos em geral do Partido Democrata), após a retirada das tropas federais que ocuparam o Sul até 1877.
Estes três exemplos de anulação das dívidas públicas mostram que os poderes públicos podem perfeitamente repudiar as dívidas. As razões invocadas foram diversas e o terceiro caso de repúdio, cujas motivações foram contrárias aos direitos humanos, reforça a ideia de que os governos, quando querem, podem impor aos banqueiros os custos duma anulação de dívidas. Evidentemente é necessário assegurarmo-nos de que um tal repúdio é legítimo e respeita os direitos humanos.
Tradução: Rui Viana Pereira
[1] Este texto é o terceiro duma série consagrada aos repúdios das dívidas que tiveram lugar nos EUA, em Cuba e na Costa Rica durante o século XIX e antes da Segunda Guerra Mundial. Primeiro texto: «La répudiation par les États-Unis de la dette réclamée à Cuba par l’Espagne en 1898 : Quid de la Grèce, de Chypre, du Portugal, etc.?»; segundo texto: «En quoi la répudiation des dettes par le Costa Rica devrait inspirer d’autres pays». Resumido a partir de «Histoire : La politique des États-Unis par rapport à ses voisins des Amériques du 19e s. au début du 20e siècle».
[2] Les effets des transformations des États sur leurs dettes publiques et autres obligations financières: traité juridique et financier, Recueil Sirey, Paris, 1927. Ver o documento quase completo em versão livre no sítio do CADTM
[3] No que respeita à 11.ª emenda, ver https://fr.wikipedia.org/wiki/XIe_amendement_de_la_Constitution_des_États-Unis
[4] É muito importante sublinhar que a 14.ª emenda também exclui toda e qualquer indemnização aos proprietários dos escravos. Foram emancipados quatro milhões de escravos, sem que fosse dada a menor contrapartida aos seus antigos donos. Fonte: Sarah Ludington, G. Mitu Gulati, Alfred L. Brophy, «Applied Legal History : Demystifying the Doctrine of Odious Debts», 2009. Para ter uma ideia da luta contra a escravatura no contexto da Guerra da Secessão, ver o filme The Free State of Jones estreado em 2016.
docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.
Quando o presidente Joe Biden diz que os EUA nunca denunciaram nenhuma obrigação de dívida, é uma mentira para convencer de que não há alternativa a um acordo bipartidário ruim
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