27 de Junho de 2016 por Francisco Louça
Neste curto texto reflicto sobre o contexto internacional e a crise europeia a partir da experiência de Portugal sob a troika e da viragem política que ocorreu desde então. A primeira parte apresenta um mapa para 2016, a segunda trata da Europa, da luta pela reestruturação da dívida e da questão da saída do euro.
1. Uma longa estagnação que alimenta crises sucessivas
1. A economia mundial está em estagnação. O sistema internacional está em mutação e em crise. Em mutação porque surgem novos centros de rentabilização do capital e portanto de poder político, sendo a economia da China o mais pujante e a do Brasil o que conhece um recuo mais acentuado. Em crise porque o crescimento medíocre mantem uma elevada taxa de desemprego nos países mais desenvolvidos e porque a dificuldade de recuperação da taxa de acumulação precipita medidas de austeridade e de alteração da distribuição dos rendimentos entre capital e trabalho, com efeito socialmente regressivo e economicamente recessivo. A consequência é uma fragilização ou perturbação de regimes políticos, como se revela pela instabilidade em França, pelo referendo no Reino Unido, pelo impasse governamental em Espanha e pela emergência de populismos xenófobos por exemplo na Hungria ou Polónia, mas também na Bélgica e na Holanda. Finalmente, o centro do império, Washington, é um poder decadente, de hegemonia enfraquecida e também por isso perigoso.
2. Os Estados Unidos são um terço de todo o planeta, na economia. Na política, são mais do que isso. Na demografia e na geografia, muito menos. Na moeda, ainda são quase tudo. Nas tecnologia militar, são mesmo tudo. Este poder monumental, que dominou o século XX e que agora se degrada lentamente no século XXI, é uma das ameaças maiores à estabilidade do mundo. Por três razões: a sua acção Acção Valor mobiliário emitido por uma sociedade em parcelas. Este título representa uma fracção do capital social. Dá ao titular (o accionista) o direito, designadamente, de receber uma parte dos lucros distribuídos (os dividendos) e participar nas assembleias gerais. externa acentua conflitos, a sua política é perigosa e a sua economia é extractiva e portanto decadente.
3. A política externa foi o primeiro trunfo para a eleição de Obama. Prometia descompressão (fim de Guantánamo) e multilateralismo (na forma mínima de incluir os aliados). Nem um nem outro. E, em todos os terrenos da sua intervenção, recuou. Na Europa, condicionou a Alemanha a um conflito a leste, na Ucrânia, ao tentar deslocar a fronteira da Nato para chegar às bordas da Rússia. Entretanto, os três pilares da sua relação no Médio Oriente foram afectados por perturbações graves ou riscos crescentes: o Egipto, com o levantamento popular e depois o golpe militar, e Israel e a Arábia Saudita, ambos arriscando a cartada suicida da complacência ou apoio ao Daesh. A política externa dos EUA fracassou porque nos dois casos permitiu a re-emergência da Rússia como potência militar e mesmo do Irão como força regional.
4. O problema maior, no entanto, é que para os EUA, na sua posição única, a política externa é determinada pela política interna (na Europa é ao contrário, a política europeia determina a política interna de cada Estado). Esta é imposta pela derivação para a direita do sistema partidário, com a emergência de populismos isolacionistas nos dois grandes partidos, deslocando-se assim de uma liderança imperial impositiva para uma governação relutante com acções disciplinadoras brutais e desconexas, que incendeiam o mundo. Acresce que os EUA já não são uma potência de controlo territorial. A derrota do Vietnam parece ter encerrado esse tempo. Atacar e retirar, passou a ser a divisa norte-americana, pelo que a política interna torna tais escolhas ainda mais voláteis. É um militarismo drone. E, se a tecnologia permite estas guerras aéreas, elas têm o efeito imediato de amplificar o conflito e de facilitar as condições para a mundialização do terror, do Afeganistão ao Iraque, da Líbia à Síria.
5. Porque é política interna e fechada sobre si própria, deixa de ser liderante no mundo: Obama não pode aceitar um tratado sobre as alterações climáticas pela simples evidência de que seria rejeitado pela Câmara dos Representantes e pelo Senado, a começar pelo seu próprio partido, e é forçado a buscar outras formas jurídicas de compromisso, de preferência com escasso compromisso. Ou seja, se a política externa é política interna porque é por ela determinada, também abdica de propor um condução exterior, mesmo quando a sabe necessária. O mundo é dominado por um Estado que não pode liderar as decisões no mundo.
6. A economia extractiva é a raiz desta contradição na política interna. O privilégio soberano do dólar foi amaciado pela existência de um cabaz de outras moedas de referência para a criação de reservas e para o comércio, mas nenhuma para já disputa o lugar supremo de garantia da acumulação que os EUA preservam. Só o yuan tem o suporte de um Estado que pode ambicionar tal papel, mas a China não tem ainda um mercado financeiro Mercado financeiro Mercado de capitais a longo prazo. Inclui um mercado primário (o das emissões) e um mercado secundário (o da revenda). A par dos mercados regulamentados encontramos mercados fora da bolsa, onde não existe a obrigação de satisfazer regras e condições mínimas. suficientemente potente para absorver as poupanças do mundo e dirigir os produtos e aplicações financeiras que são o nervo da acumulação de capital. Assim, o que se decide nos EUA ainda condiciona a globalização.
7. Os EUA beneficiaram e continuam a beneficiar da globalização, colocando-se aliás na situação única e cómoda de ser o primeiro líder hegemónico que importa capital em vez de o exportar, fazendo dessa anomalia uma das suas formas de dominação. Só que nunca se viu tal na história. Essa engenharia de poder exige a referência do dólar (mas já não é a única moeda de reserva) e requer um controlo das principais forças produtivas (mas os EUA já não são o maior produtor de mercadorias e poderão deixar de ser o maior produtor de conhecimentos), dos recursos naturais (mas o barril de pólvora no Médio Oriente ameaça esta garantia), da capacidade inovadora (mas a fronteira tecnológica abriu espaço para outras potências na mudança do padrão energético e de novos bens essenciais, como na medicina) e ainda do controlo da poupança e do investimento (mas a China terá em breve recursos suficientes para vir a superar os EUA). Ou seja, a razão da sua força de hoje é a sua fragilidade de amanhã, porque estas suas vantagens são passageiras.
8. Alguns economistas norte-americanos, alarmados com estas vulnerabilidades, lançaram desde há dois anos um debate sobre a “estagnação secular”, recuperando um termo utilizado em 1939 por um presidente da Associação Americana de Economistas, Alvin Hansen, dez anos depois do início da crise de 1929, para descrever a estagnação demográfica, o défice de procura e, em consequência, a perspectiva de degradação do investimento com a consequente redução do crescimento potencial. Segundo esta analogia, estaríamos agora, já bem entrados no século XXI, numa nova estagnação secular e por motivos semelhantes aos da Grande Depressão.
9. Os números parecem confirmar este susto. O FMI reviu no final do ano passado as suas previsões para 2020, antecipando agora um PIB
PIB
Produto interno bruto
O produto interno bruto é um agregado económico que mede a produção total num determinado território, calculado pela soma dos valores acrescentados. Esta fórmula de medida é notoriamente incompleta; não leva em conta, por exemplo, todas as actividades que não são objecto de trocas mercantis. O PIB contabiliza tanto a produção de bens como a de serviços. Chama-se crescimento económico à variação do PIB entre dois períodos.
da China menor em 14% e da Europa e também dos EUA em 6%, em comparação com a sua previsão anterior. Um estudo anterior do National Bureau of Economic Research, um instituto de investigação de Cambridge, no Massachusetts, já registava este pessimismo, agravado desde então, afirmando que a queda do produto potencial das principais economias do mundo por causa do crash do subprime e da recessão de 2008-9 seria da ordem dos 9% ou, como resumia a revista The Economist (14 de junho de 2014) seria como se de repente “toda a economia alemã se tivesse evaporado”.
10. Resta portanto a economia extractiva, em que a renda financeira parasita o sistema: a banca sombra que absorve as poupanças, um sistema político que impõe austeridade sobre os trabalhadores, bancos centrais que garantem a socialização das perdas da banca, um capitalismo ganancioso que mercadoriza os serviços sociais e que, antes de mais, ambiciona privatizar a segurança social. Ideologicamente, a academia, as instituições e a liderança dos EUA dirigem este processo. Politicamente, ele é multipolar, com destaque para a força crescente de Merkel na União Europeia. Estrategicamente, na verdade ninguém sabe o que é ou será, porque a finança já é mais poderosa do que a maior das economias e, se tivesse coração, teria razões que a razão não conhece. Sem ele, não se sabe mesmo nada. O futuro já não é o que era.
11. A Europa está presa neste turbilhão. Vive um processo de tenaz: a sua liderança, Merkel, beneficia no imediato dos sinais de desagregação europeia, porque esta lhe assegura em contraste as melhores condições de atracção de capital, com emissões de títulos a juros negativos, e condições suplementares de hegemonia eleitoral; em contrapartida, a espiral de dívida nos países periféricos ou a austeridade noutros conduz, pelas regras do euro, a processos imparáveis de desvalorização interna ou, dito de outra forma, a um aumento da exploração absoluta e a uma transferência de mais-valia das economias nacionais para os capitais rentistas internacionais. Em consequência, os regimes políticos da Grécia, Portugal, Espanha, Itália, França perdem capacidade coesiva, os seus principais partidos desgastam-se ou desagregam-se, viragens eleitorais bruscas tornam-se possíveis, acentuam-se em alguns casos forças anti-sistémicas que representam a revolta dos trabalhadores e noutros casos forças populistas que procuram condicionar a população a políticas xenófobas.
2. A Europa e Portugal na dívida e no euro
12. O problema português, como de outros países na União Europeia, é em primeiro lugar um problema democrático porque é social. A resposta imediata a esse problema é a luta democrática contra chantagem da dívida e a austeridade que dela resulta, com efeitos sociais que destroem Portugal. Esse é o problema dos problemas.
13. Se não vencer a dívida, Portugal e outros países na mesma situação viverão um período de desagregação social, impulsionada pela transferência de rendas financeiras garantidas sobre os impostos presentes e futuros, acentuando assim o projeto liberal de imposição de perdas crescentes do trabalho para o capital, e de esvaziamento do espaço de disputa da hegemonia e de deliberação no país. Ou seja, ou a esquerda dirige a contestação da Nação e mobiliza as classes populares, ou o populismo ocupa o seu espaço.
14. Foi na resposta ao problema da dívida que se organizaram as grandes mudanças na mobilização social e na percepção da opinião pública portuguesa nos últimos anos (as manifestações do “Que se Lixe a Troika Troika A Troika é uma expressão de apodo popular que designa a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional. ”, o Manifesto dos 74 sobre a dívida), o que é um dos elementos para compreender a viragem produzida nas eleições de Outubro de 2015, tendo sido o Bloco de Esquerda o partido que teve o maior aumento eleitoral.
15. Nenhuma dessas mudanças teria sido possível com outra plataforma política que não fosse centrada na rejeição da chantagem da dívida. Mas é de registar que o programa do Bloco incluía a explicitação não só de uma proposta concreta sobre a dívida pública Dívida pública Conjunto dos empréstimos contraídos pelo Estado, autarquias e empresas públicas e organizações de segurança social. como a declaração de que, se as negociações com os credores e as instituições europeias não permitissem uma solução, a saída do euro seria a alternativa restante.
16. Para formar uma maioria de esquerda contra a dívida, ou seja um governo que rejeite a austeridade e abata a dívida em nome dos salários, dos serviços públicos e do investimento, é preciso um compromisso de aliança. O governo de esquerda contra a troika será a forma dessa aliança. Para trabalhar para esse governo, é preciso vencer a direita, mobilizar os trabalhadores, ganhar hegemonia sobre o centro e apresentar ao povo uma solução viável que mude o panorama político. Para mudar esse mapa, é preciso concentrar força onde os partidos se devem entender e se devem comprometer: a rejeição da dívida.
17. Como a estratégia do Syriza na Grécia demonstrou, a luta pelo governo de esquerda tem uma bandeira, a rejeição da dívida. Como a experiência do Syriza demonstrou, a direita e o centro radical usarão o medo da saída do euro como argumento político principal porque é esse medo que pode fazer bascular as eleições. Como a experiência do Syriza demonstrou, só se avança para um governo de esquerda com rigor tático, com clareza de proposta de aliança e com concentração do argumento onde ele é decisivo: a dívida. Como o terceiro resgate veio a provar, para ter força para negociar é preciso ter preparado um Plano B concreto e viável. Como a Grécia demonstrou, só há um plano B para a recusa da reestruturação da dívida e ele é a saída do euro.
18. Há imenso trabalho a fazer para aproximar posições e para articular propostas. A esquerda, no passado, fez pouco trabalho de proposta e de articulação. Deve fazê-lo a nível europeu o mais depressa e o mais intensamente possível. Só o pode fazer se o caminho for a ruptura com a dívida e a austeridade. Esse caminho é viável e pode construir uma aliança possível.
19. A proposta exuberante de um Plano A (o federalismo, ou resolver as dificuldades dos estados periféricos aceitando um aumento do poder de Berlim) desvaneceu-se do debate político português. Essa proposta tinha como pressuposto que a melhor solução para Portugal e para a Europa era a constituição de um Estado Europeu, sob a forma federal, ou seja, que Portugal deveria ser uma província desse Estado, evidentemente liderado pelo governo alemão. Essa solução não é nem a melhor nem é assim-assim: seria um retrocesso histórico do qual Portugal só recuperaria com um conflito de alta intensidade pela sua independência. Os defensores desta ideia parecem ter desertado. Ainda bem.
20. A proposta federalista é ainda um logro porque nem a duplicação do orçamento para 2%, por exemplo, nem mesmo a gestão de uma moeda única exigem necessariamente um governo europeu de um Estado europeu. Exigem certamente regras comuns e cooperação reforçada, e portanto a autoridade soberana de um hegemon. Em todo o caso, nesse caminho a proposta federalista quer impor à esquerda a submissão à aceleração do projeto autoritário da burguesia europeia. A esquerda que se opõe ao federalismo porque é europeísta não pode nem deve desistir da luta em escala europeia. Não pode ficar à espera de um recuo das forças do centralismo federalista, porventura iluminadas pela sensatez social contra os seus interesses sociais. A esquerda não pode ser um federalismo cordial contra um federalismo feroz. Tem de vencer as formas do federalismo, que destroem a democracia.
21. A experiência da chantagem e da violência das autoridades europeias para vergarem o governo grego prova que a decisão será sempre política e será sempre a relação de forças, local e europeia, que decidirá em todos os conflitos. Mas a experiência grega prova também que todo o discurso sobre “outra Europa” é frágil ou mesmo vazio. Apelar à alteridade quando as forças dominantes das instituições da Europa estão a decidir a austeridade e o fechamento das instituições para reforçar a economia extractiva e a sua austeridade, é simplesmente exercitar uma distracção. E a esquerda já esteve distraída tempo demais com as promessas europeias. É preciso que abandone o discurso redondo de uma “outra Europa” e que se concentre em medidas concretas para vencer a instituição que existe realmente.
22. Para conseguir uma nova relação de forças europeia é preciso que sejam eleitos governos de esquerda, fieis aos trabalhadores que os mandatam. Para conseguir o governo de esquerda é preciso saber para onde se vai e onde se deve concentrar a pressão, porque este caminho exige clarificar alternativas para mudar partidos e políticas. Toda a pressão deve estar na exigência aos partidos de que apresentem um plano para a anulação da dívida, por via da negociação europeia ou, se necessário for, da imposição unilateral da moratória e de anulação de dívida, o que pode conduzir à saída do euro. Só haverá governo de esquerda com uma alteração radical da relação de forças, de tal modo que a mobilização popular determine a política.
23. O governo de esquerda não será constituído pelo centro nem por uma nova conformação das forças políticas do centro. A sensatez de uma política de esquerda baseia-se neste convicção: para vencer é preciso querer vencer e saber vencer, é preciso recusar a renda financeira que está a estrangular os salários, pensões e serviços públicos. O governo de esquerda exige que a esquerda tenha uma política de esquerda. O problema democrático de Portugal é a chantagem do capital financeiro e é contra o capital financeiro que se deve determinar o governo de esquerda.
24. Não há austeridade inteligente. Não há meia-austeridade. Um novo governo que aceite a chantagem financeira criará mais austeridade e mais destruição, porque cada dia a imposição das regras do Tratado Orçamental será pior: como já ficou evidente, a sua solução para o incêndio da austeridade é soprar nas brasas para aumentar o lume. Ou, como dizia alguém com a autoridade de experiência na negociação com a Troika, quando estamos no buraco a Comissão Europeia e o BCE
Banco central europeu
BCE
O Banco Central Europeu é uma instituição europeia sediada em Francoforte e criada em 1998. Os países da zona euro transferiram para o BCE as suas competências em matéria monetária e o seu papel oficial de assegurar a estabilidade dos preços (lutar contra a inflação) em toda a zona. Os seus três órgãos de decisão (o conselho de governadores, o directório e o conselho geral) são todos eles compostos por governadores dos bancos centrais dos países membros ou por especialistas «reconhecidos». Segundo os estatutos, pretende ser «independente» politicamente, mas é directamente influenciado pelo mundo financeiro.
exigem que continuemos a cavar.
25. A hipótese bondosa de um alívio das condições da chantagem financeira como reforço de Merkel, ou de um renascimento europeu com o Plano Draghi ou o Plano Jucker, tudo isso é ingenuidade. A conformação política do governo alemão, com a aliança de Merkel com o partido social-democrata, o SPD, demonstra como o sistema de dominação se protege. O presidente do Eurogrupo, que é o ministro das finanças da Holanda, é a prova viva de como estes social-democratas liberais se assumem como a cavalaria prussiana de Merkel. Um novo governo em Portugal não pode contar com facilidades das instituições europeias, tem de contar com o seu povo e com os seus aliados das esquerdas populares na Europa.
26. O governo de esquerda deve apresentar um compromisso categórico de iniciar negociações para abater a dívida desde o primeiro dia. Se a proposta de cancelamento de dívida não for aceite pelas autoridades europeias, a melhor resposta será a imposição unilateral de uma moratória dos pagamentos da dívida, a negociação com os vários credores de uma troca de dívida por títulos de valor inferior e vinculado aos crescimento futuro, e o controlo de capitais.
27. O governo de esquerda precisa de ter a força suficiente para impor uma revolução fiscal, criando os meios para uma reorganização do sistema produtivo, incluindo a reindustrialização para o emprego, a substituição de importações, a reconversão energética e ambiental e uma concentração de investimentos nesse sentido. Mais uma vez, essa política económica ataca o capital financeiro.
28. Nesse contexto, o governo de esquerda deve estar preparado para todo o conflito, incluindo para a pressão que force uma saída do euro. Em A Dividadura, livro que publiquei em 2012 com Mariana Mortágua, escrevemos que, politicamente, só será aceitável a saída do euro pela população “quando não exista rigorosamente nenhuma outra alternativa, quando se esgotarem todas as alternativas, quando a sobrevivência o exigir. Só há por isso uma condição em que a saída do euro se pode tornar necessária para o povo português, e essa situação não pode ser liminarmente excluída: se, perante um descalabro das instituições e das regras europeias, a sua independência for posta em causa e Portugal não tiver outra solução que não seja abandonar a União Europeia e, em consequência, o euro, para recuperar a capacidade de decisão. E é ainda necessário que a maioria da população esteja empenhada nessa resposta, de modo a condicioná-la pela força dos movimentos populares e da defesa dos interesses do trabalho.” Mantenho esse ponto de vista.
29. Não acredito que possa haver saída facilitada do euro. Não se devem esperar gentilezas para amparar Portugal numa saída do euro. Não se deve esperar que o governo alemão autorize um empréstimo incondicional, de modo a favorecer assim a política de um governo de esquerda se este tiver de escolher sair do euro. Mesmo se o governo alemão quiser impor essa saída, como Schauble o tentou na Grécia, não é provável que a financie mas antes que procure fazer dela um exemplo negativo. Essa hipótese de um acordo de cavalheiros parece politicamente inviável. Na liderança europeia não há cavalheirismo, há interesses sociais sumamente autoritários.
30. Uma saída do euro conduzida sob as ordens de Merkel ou de um governo de direita significaria uma luta de classes sem quartel contra os trabalhadores, para transformar e acelerar o processo de acumulação de capital com o benefício exclusivo de uma parte da oligarquia. E não dá nenhuma garantia de anulação de dívida; pelo contrário, nesse caso, esta opção poderá ser uma forma de acentuar a transferência de rendimentos do trabalho para o capital através de uma austeridade que acelera o ajustamento violento. A esquerda que se confundir com esta hipótese não merecerá sobreviver politicamente, porque se confundirá com o lado da austeridade e da selvajaria. Quem defende a saída do euro sem anulação da dívida não consegue resolver o problema democrático de Portugal.
31. Na luta contra a dívida, se o governo de esquerda for forçado a sair do euro tem de ter do seu lado o povo, mobilizado para rejeitar a ameaça de Merkel e do capital financeiro e disposto a levantar-se pela democracia. Os efeitos de uma saída do euro são profundos e ela só pode ser justificada por uma emergência nacional e gerida por um governo que crie uma grande mobilização social. Essa questão política será sempre fundamental, dado a pressão e as dificuldades que a condução desse processo implicará. Só o poder democrático do povo assegura a força para fazer as escolhas necessárias nesse contexto. Quem ignora essa ameaça e esses riscos de alta intensidade não está preparado para a lutar pelo poder.
32. A saída do euro, cujas dificuldades políticas assinalei, torna-se no entanto a única alternativa sempre que a reestruturação da dívida não é obtida em negociações. Nesse caso, é a única forma de a impor. Por duas razões: em primeiro lugar, porque a saída do euro restabelece uma moeda nacional, e permite portanto impor a redenominação de todas as dívidas públicas em euros para a nova moeda, quando estejam sujeitas à lei nacional, desvalorizando deste modo essa dívida; em segundo lugar, permite o controlo de capitais e a gestão de uma política de desvalorização cambial, ambas as medidas favorecendo a criação de investimento e o relançamento da procura e do emprego.
33. Por isso, quem queira trabalhar na preparação de uma política de esquerda perante esses riscos deve apresentar uma proposta não-condescendente, considerando todas as eventualidades, sobre as melhores alternativas para cada problema, incluindo a saída do euro para a desvalorização do novo escudo.
Esse estudo sobre como contrariar os efeitos negativos de curto e de médio prazo de uma eventual saída do euro inclui necessariamente:
34. Esse estudo inclui ainda as condições políticas e europeias para a decisão de um governo de esquerda:
35. Há respostas, por difíceis que sejam, a todas estas ameaças e questões. Nenhuma dessas respostas está num slogan. O slogan é inútil e não substitui a preparação detalhada da resposta aos problemas económicos e sociais. O slogan é uma bandeira. É legítimo fazer política com uma bandeira. Mas uma bandeira não faz um governo. Não se pode desistir de criar um governo de esquerda para procurar responder ao problema democrático de Portugal, que é a dívida. Uma estratégia vitoriosa depende por isso de um trabalho profundo de preparação de respostas e que constate as dificuldades para lhes fazer frente.
36. O realismo é uma condição da inteligência. Todas as respostas realistas exigem uma política económica como Portugal não teve mas precisa de ter: controlo do crédito, intervenção pública no sistema financeiro, fiscalidade mobilizadora de recursos, estratégia para o emprego. Não é realista aceitar a chantagem da dívida nem é realista opor-lhe soluções irrealistas.
37. A minha conclusão é esta: a agenda que criará uma maioria de esquerda é a luta contra a dívida. Um governo de esquerda só pode ganhar se constituir uma aliança e essa aliança exige a clareza da anulação de dívida. Esse governo deve estar preparado para rejeitar todas as pressões do capital financeiro e para tomar todas as medidas que sejam necessárias nesse sentido, incluindo sair do euro se essa for a única solução que sobrar. Essa preparação exige trabalho detalhado e cuidadoso, juntando muitos dos e das melhores economistas de esquerda. Esse trabalho está por fazer. É melhor começar já.
38. O actual governo em Portugal, que resulta de uma derrota eleitoral da direita, não é o governo de esquerda com o compromisso de reestruturar a dívida. É um governo de um partido de centro, o PS, com apoios condicionados à esquerda, no contexto de compromissos para a recuperação de salários e pensões, para o fim do processo de privatizações e para a recusa de aumentos de impostos directos e indirectos sobre o trabalho. Esses compromissos permitem uma descompressão social e uma recuperação da procura e portanto das condições de vida da maioria da população e foram portanto apoiados por amplos sectores populares. Num caso, o da decisão de injeção de 3 mil milhões na recuperação de um pequeno banco para ser vendido (por 150 milhões) ao Santander, os partidos de esquerda opuseram-se à decisão do governo e votaram contra a lei respectiva, uma correcção do Orçamento de 2015. A relação entre os vários partidos será assim sempre dependente das decisões concretas, sendo ainda de registar que estas escolhas ainda não foram confrontadas com a posição da Comissão Europeia, que é importante na definição do Orçamento de Estado para 2016 e anos seguintes.
economista, membro da direcção e ex-porta-voz do Bloco de Esquerda, partido que dispõe de 19 deputados na Assembleia da República portuguesa (2015). Militante da 4ª Internacional.
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