Uma alteração de paradigma na política portuguesa

25 de Novembro de 2015 por Rui Viana Pereira


CC - Wikimedia

51 dias após as eleições legislativas, o Presidente da República, apesar de contrariado e de rosto crispado, indigitou ontem António Costa para primeiro-ministro. O secretário-geral do PS já tornou pública a constituição do futuro Governo.

A formação do governo do PS ocorre em circunstâncias políticas peculiares, inéditas mesmo, e marca uma viragem histórica no paradigma das relações interpartidárias em Portugal.



O contexto da ruptura política

Após as eleições legislativas de 4/10/2015, o Partido Socialista (PS) firmou três acordos com os três partidos com representação parlamentar à sua esquerda – Partido Comunista (PC), Bloco de Esquerda (BE) e Partido Ecologista “Os Verdes” (PEV). Esta confluência de vontades políticas é inédita nos últimos 40 anos. Os quatro partidos não dialogavam de forma séria entre si (com excepção da dupla PC/PEV, que forma uma coligação eleitoral) e nunca fizeram acordos políticos tácticos formais, mesmo quando eles eram desesperadamente necessários. [1] O simples facto de terem sido firmados 3 acordos separados mostra que os partidos em causa continuam a não ter um diálogo fácil: foi necessário António Costa actuar como intermediário para facilitar um entendimento tripartido.

Durante 40 anos (ou seja, desde o fim da ditadura) o PS sempre atacou com animosidade todos os partidos à sua esquerda, dando mostras por vezes de um anticomunismo primário; classificou-os muitas vezes como perigosos para a democracia e deixou claro que antes queria ser morto que entrar em qualquer entendimento à esquerda. Em compensação, ao longo do mesmo período, participou em acordos e governos de coligação à direita. Este historial do PS permite avaliar o alcance histórico da iniciativa de António Costa, quando vai bater à porta do BE, do PC e do PEV. É um facto iniludível que os actuais acordos de esquerda, independentemente de se manterem no futuro ou morrerem nos limites das actuais circunstâncias políticas, marcam um ponto de viragem nas práticas políticas portuguesas. Insisto em dizer «práticas», porque não está colocada em cima da mesa a alteração programática de cada um dos partidos envolvidos; o que se altera radicalmente é uma práxis nas relações interpartidárias.

PS/BE

O resultado eleitoral de Outubro criou um dilema simples: ou a coligação de direita continuava no poder e prosseguia o seu programa de austeridade – mas para isso, uma vez que deixou de ter uma maioria parlamentar, precisaria do apoio (formal ou informal) do PS, como já aconteceu no passado –, ou o PS recusava apoiar a coligação de direita e aceitava governar sozinho – mas para isso necessitaria de apresentar um programa de medidas anti-austeridade e obter o apoio estável de todas as bancadas à sua esquerda, de forma a obter o apoio duma maioria parlamentar. Foi esta segunda opção que a direcção do PS seguiu (quem sabe, tomando consciência do risco de extinção, ou pasokização, se não optasse por este caminho); é isto que está a enlouquecer todos os partidários de direita, a começar pelo Presidente da República, e foi isto que o PS sempre recusou durante 40 anos, preferindo abdicar do poder a entender-se com a esquerda.

Em termos muito práticos: o actual entendimento à esquerda serve para viabilizar um governo do PS; foi negociado com base no programa de governação do PS, como os próprios intervenientes declaram; não é um «mix», não inclui os objectivos programáticos próprios dos restantes partidos de esquerda; não coloca em causa a arquitectura europeia (embora proponha algumas reformas), nem os acordos internacionais; não propõe uma auditoria da dívida. Na verdade, as confusões e o pânico suscitado pela direita a propósito deste acordo obrigou o futuro ministro da Cultura, João Soares, a vir hoje à televisão jurar a pés juntos que o PS continua a ser um partido social-democrata; que andou desencaminhado, que perdeu o norte durante algum tempo, mas que tem necessariamente de regressar às suas origens social-democratas ou socialistas.

Para quem não esteja engajado ao espírito de fidelidade partidária, a questão que se coloca é clara: não se trata de apoiar um governo do PS, mas sim de preferir (ou não) um governo do PS que promete executar um conjunto de medidas anti-austeridade, em vez da aceitar a perpetuação do governo de direita que temos tido.

PS/PC

Muitos comentadores insistem em falar de «governo da esquerda». Esta expressão é pura ficção, em nada corresponde à realidade; apenas serve para baralhar o entendimento da situação que vivemos. Os acontecimentos em curso não nos colocam perante um «governo da esquerda» mas sim perante três coisas distintas: por um lado, a viabilização de um governo do PS em oposição a um governo da coligação de direita; por outro lado, uma possível alteração consistente na relação entre os partidos de esquerda com assento parlamentar; e por fim uma incógnita: como irá cada um dos partidos à esquerda do PS, a partir de agora, executar as suas linhas programáticas? Irão penhorar algumas das suas bandeiras de luta a um apoio incondicional ao governo? Irão bloquear ou instrumentalizar os movimentos sociais em nome desse apoio, ou não? Irão deixar cair de vez a questão da dívida pública Dívida pública Conjunto dos empréstimos contraídos pelo Estado, autarquias e empresas públicas e organizações de segurança social. e da sua auditoria? Do ponto de vista retórico, os três partidos já responderam, dizendo que não deixarão cair os seus objectivos programáticos, embora apoiem o governo PS enquanto este honrar os acordos estabelecidos à esquerda. Resta-nos esperar que a prática confirme a retórica.


O programa de governo do PS

A preferência táctica por um governo do PS assenta nas suas promessas de anular as medidas de austeridade. É claro que algumas destas promessas são frágeis, tendo em conta o papel historicamente desempenhado pelo PS na fragilização de direitos laborais, na construção de uma Europa antidemocrática e desigual, no endividamento público, na privatização de empresas e sectores estratégicos, na entrada do FMI e da Troika Troika A Troika é uma expressão de apodo popular que designa a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional. em Portugal (mais de uma vez e sempre pela mão do PS), e por aí fora. Apesar de todo este historial, é um facto que o programa de governo do PS e os acordos de esquerda contêm numerosos bafos de esperança que merecem ser destacados. Seria demasiado extenso analisar todos os aspectos do programa de Governo do PS, por isso vou destacar apenas alguns dos mais importantes.


Um conjunto de iniciativas anti-austeridade

Começo por transcrever uma parte das promessas cujo cumprimento condiciona a manutenção dos acordos à esquerda e que são textualmente idênticas nos 3 acordos [2]:

O descongelamento das pensões; a reposição dos feriados retirados; um combate decidido à precariedade […]; a revisão da base de cálculo das contribuições pagas pelos trabalhadores a recibo verde; […]; o cumprimento do direito à negociação colectiva na Administração Pública; a reposição integral dos complementos de reforma dos trabalhadores do sector empresarial do Estado; a redução [de 23%] para 13% do IVA da restauração; […]; a garantia de protecção da casa de morada de família face a execuções fiscais e penhoras; […] o reforço da capacidade do SNS […]; a revogação da recente alteração à Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez; a garantia, até 2019, do acesso ao ensino pré-escolar a todas as crianças a partir dos três anos; […] a vinculação dos trabalhadores docentes e não docentes das escolas; a redução do número de alunos por turma; a progressiva gratuitidade dos manuais escolares do ensino obrigatório; a promoção da integração dos investigadores doutorados em laboratórios e outros organismos públicos […]; a reversão dos processos e concessão/privatização das empresas de transportes terrestres; a não admissão de qualquer novo processo de privatização.

Algumas destas afirmações são bastante programáticas e valem pelo seu valor facial; outras pouco significam sem a apresentação de medidas concretas (caso do combate à precariedade) e nesses casos, para não fazermos processos de intenção, teremos de esperar para ver.


A TSU

Um dos efeitos mais importantes das negociações de esquerda foi o abandono de uma medida prevista no programa do PS cujos efeitos seriam arrasadores para a Segurança Social: a redução da taxa de contribuição social paga pelos empregadores. Os três acordos são peremptórios a este respeito:

Não constará do Programa de Governo qualquer redução da TSU das entidades empregadoras; […] Reavaliar as isenções e reduções da Taxa Social Única (TSU) que de excepção se transformaram em regra, fazendo perder mais de 500 milhões de euros de receitas por ano [...]


O IRC e os apoios às empresas

O programa de governo prevê o

Alargamento do sistema de estímulos fiscais às PME em sede de IRC; Criar um sistema de incentivos à instalação de empresas e ao aumento da produção nos territórios fronteiriços, designadamente através de um benefício fiscal, em IRC, modulado pela distribuição regional do emprego; [...]
ou seja: 1) as sucessivas reduções prévias de IRC mantêm-se (o que significa que o capital continua a pagar muito menos impostos do que os trabalhadores); 2) alguns critérios de atribuição de «prendas fiscais» são revistos; 3) contudo, novas isenções e benesses serão criadas; 4) não encontro no documento do PS qualquer garantia de que as prendas fiscais oferecidas às grandes empresas, aos quase-monopólios e à banca sejam abolidos; além disso, o plano de redução progressiva do IRC ao longo dos próximos anos, montado pelo governo de direita, não me parece ter sido explicitamente anulado no programa do novo governo.

Para compreendermos o impacte das prendas fiscais em sede de IRC é preciso observar a sua evolução. Como vemos no Gráfico 1, o rácio IRS/IRC passa de 1,8 em 2001 para 2,7 em 2013 – isto é, o factor trabalho paga (em 2013) quase três vezes mais impostos sobre os seus rendimentos, em relação ao factor capital. Este desequilíbrio deve-se aos seguintes factores: 1) o baixo nível das taxas de imposição sobre o capital; 2) as benesses fiscais atribuídas às empresas, que passam de um total de 199 milhões em 2001, para 745 milhões de euros em 2013 (a preços correntes); 3) o aumento das taxas fiscais sobre os trabalhadores e reformados. Em suma, as reduções e benesses de IRC caminham em sentido inverso à carga fiscal sobre o trabalho, têm um efeito fatal sobre os recursos colectivos e condicionam perigosamente a execução de políticas sociais e solidárias.

Gráfico 1 – Comparação entre o imposto sobre os rendimentos dos trabalhadores e o imposto sobre os rendimentos das empresas

IRS = imposto sobre as pessoas singulares
IRC = imposto sobre as pessoas colectivas
base de cálculo = IRS+IRC+IVA = 100%

Fonte primária: CGE, 2001 a 2013, preços correntes

Os anunciados benefícios económicos dos «incentivos fiscais» são, na minha opinião, pura especulação Especulação Operação que consiste em tomar posição no mercado, frequentemente contracorrente, na esperança de obter um lucro. ; não garantem o investimento produtivo nem a criação de emprego. Quando o Estado oferece uma prenda fiscal, ela não vem acompanhada de uma pistola apontada à cabeça e um cartão protocolar a dizer: ou investes em produção e emprego ou levas um tiro nos miolos. As prendas fiscais apenas têm como efeito imediato o aumento dos lucros do empregador e a redução dos recursos colectivos; o que o empregador ou o accionista vão fazer com esse excedente não é condicionado pelas leis fiscais, mas sim pela ganância: se a taxa efectiva de rendimento do capital for maior na lotaria, nos títulos da dívida pública ou na especulação Trading
especulação
Operação de compra e venda de produtos financeiros (acções, futuros, produtos derivados, opções, warrants, etc.) realizada na mira de obter um lucro a curto prazo.
bolsista, é para aí que caminha o acréscimo de excedentes proporcionado pelas prendas fiscais. Se as já abundantes prendas fiscais fossem eficazes para criar emprego e desenvolver a economia, Portugal estaria a transbordar de investimento produtivo e nesta altura estaríamos todos de joelhos a suplicar aos migrantes doutras regiões que viessem para cá trabalhar, porque a mão-de-obra local seria insuficiente. Ora, como sabemos, as prendas fiscais são generosas, nalguns casos escandalosas, mas a produção nacional está incapaz de garantir a autonomia local, a balança comercial anda pelas ruas da amargura, o índice de desemprego é trágico, a emigração atingiu recordes históricos e os excedentes de exploração fluem continuamente para fora do país.

Temos aqui um ponto em que, como noutros, será preciso aguardar para saber como serão reconfigurados em termos práticos os «incentivos fiscais», mas à partida é muito preocupante, porque pode reduzir significativamente os recursos colectivos.


As relações laborais

Outro ponto do programa do PS alterado por influência das negociações à esquerda: a criação de mecanismos conciliatórios dentro da própria empresa. Na realidade temos de esperar pelas iniciativas concretas do novo governo para percebermos até que ponto o PS desistiu desse projecto, pois se por um lado lemos, em nota à margem, «Foi retirado o procedimento conciliatório», por outro lado o programa de governo diz que pretende «Estudar com os parceiros sociais a adopção de mecanismos de arbitragem e de utilização de meios de resolução alternativa de litígios no âmbito da conflitualidade laboral, sem prejuízo do direito de recurso aos tribunais». Este ponto do programa é justificado com a necessidade de agilizar a resolução dos conflitos laborais, mas não deixa de ser preocupante.

O documento prevê também o combate à precariedade, a diminuição do «número excessivo de contratos a prazo», a «limitação do regime de contrato com termo», o agravamento da contribuição social das empresas com «excesso de rotatividade dos seus quadros», a revisão do esforço contributivo dos trabalhadores «independentes» que na realidade dependem duma única entidade contratante, e outras medidas que podem constituir uma importante melhoria das relações de trabalho (dependendo da forma como forem implementadas).

Entretanto, alguns dos cancros do mercado de trabalho permanecem intocáveis – por exemplo, as agências que vivem à custa da subcontratação e da externalização do trabalho, que deviam pura e simplesmente ser interditas (pouco diferem dos negreiros ou dos chulos). Em compensação, o Estado compromete-se a limitar o seu próprio uso do trabalho precário.

PS/PEV


União Europeia

O PS tem sido até hoje um defensor e co-criador da actual arquitectura da UE e firme cumpridor das normas e tratados europeus. Esta defesa radical da UE surge agora no programa de Governo temperada, em aspectos pontuais, pelo acordo à esquerda (mas sem pôr em causa a arquitectura europeia no essencial). A lista de propostas neste capítulo é extensa; apenas destacarei alguns pontos, começando por um considerando importante:

Não foi a rigidez dos mercados laborais ou de produtos e serviços que causou o aumento brutal do desemprego e das divergências na Zona Euro Zona euro Zona composta por 18 países que utilizam o euro como moeda: Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Espanha, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Irlanda, Itália, Letónia (a partir da 1-01-2014), Luxemburgo, Malta, Países Baixos, Portugal, Eslováquia e Eslovénia. Os 10 países membros da União Europeia que não participam na zona euro são: Bulgária, Croácia, Dinamarca, Hungria, Lituânia, Polónia, República Checa, Roménia, Reino Unido e Suécia. . Foi uma crise financeira global e posteriores erros de política económica, particularmente a opção por políticas de austeridade em toda a Europa [...]

O programa recomenda uma «leitura mais flexível do disposto no Pacto de Estabilidade e Crescimento» e a consolidação «do BCE Banco central europeu
BCE
O Banco Central Europeu é uma instituição europeia sediada em Francoforte e criada em 1998. Os países da zona euro transferiram para o BCE as suas competências em matéria monetária e o seu papel oficial de assegurar a estabilidade dos preços (lutar contra a inflação) em toda a zona. Os seus três órgãos de decisão (o conselho de governadores, o directório e o conselho geral) são todos eles compostos por governadores dos bancos centrais dos países membros ou por especialistas «reconhecidos». Segundo os estatutos, pretende ser «independente» politicamente, mas é directamente influenciado pelo mundo financeiro.
como o garante da estabilidade monetária mas também enquanto financiador de último recurso na Europa». «A Europa precisa de investimento para relançar o crescimento e a criação de emprego, mas também para acelerar a sua transição para uma economia mais verde, inteligente e inclusiva.»

A «cooperação entre entidades públicas e privadas» também é defendida, não ficando claro se isto significa a proliferação das fatídicas parcerias público-privadas (PPP) e a subjugação das universidades e centros de investigação aos ditames dos «mercados».

É defendido o aprofundamento do Fundo de Resolução e do Mercado Único de Capitais e a ideia de que «a União Económica e Monetária (UEM) precisa de agregar à moeda única uma capacidade orçamental própria, construída gradualmente, por exemplo com base nos recursos da futura Taxa de Transacções Financeiras».

No campo social e laboral europeu, «É preciso definir com rigor e força jurídica os padrões laborais e de protecção social a garantir no Espaço Europeu e na Zona Euro», fazer «o combate à pobreza e ao desemprego e a promoção da qualidade de vida para todos», aplicar «medidas a nível europeu para combate ao desemprego, incluindo a garantia e financiamento de prestações sociais».

A questão da democracia europeia é colocada assim: «Portugal deve defender o aprofundamento da integração europeia, mas manter a defesa do método comunitário de decisão, que coloca a Comissão no centro da acção executiva»; «A implementação de novos mecanismos de efectiva participação dos parlamentos nacionais no processo político europeu»; «A criação de um sistema institucional de prestação de contas da Comissão Europeia e dos governos junto dos parlamentos nacionais»; «a liberdade de circulação no espaço não pode ser colocada em causa sob nenhum pretexto, seja ele de ordem económica, política e de segurança, como também devem ser recusadas todas as propostas nacionalistas e xenófobas que pretendem ameaçar este direito».

É tempo de acabar com a ideia de que “reformas estruturais” implicam necessariamente o caminho da redução dos direitos laborais, da privatização de sectores estratégicos da economia e da diminuição dos direitos sociais. […] as “reformas estruturais” que devem ser feitas são outras.

Muitas destas declarações criam suspense, no sentido em que podem ser executadas das maneiras mais diversas. Outras são preocupantes em si mesmas: «deve ser apoiada a negociação do TTIP (Tratado de Comércio e Investimento UE/EUA), respeitando os valores constitutivos do modelo económico e social europeu e garantindo-se a defesa dos interesses nacionais no quadro da negociação» – ora nós já sabemos que as garantias invocadas não existem no quadro das negociações em curso e portanto, retirando a retórica, parece que o essencial é isto: o governo do PS está disposto a apoiar o TTIP a todo o vapor.


«Melhorar a qualidade da democracia»

No capítulo da administração do aparelho de Estado e dos mecanismos democráticos, o programa contém numerosos aspectos interessantes, caso venham a ser implementados:

[…] desenvolvimento de novos direitos de participação pelo cidadão, como através de um programa de perguntas directas ao governo da República […]
[…] combate à corrupção […]
[…] dinamização de mecanismos de auscultação permanente dos movimentos sociais e do cidadão […]
[…] avaliação anual do cumprimento das promessas presentes no programa de governo, com a participação de um grupo de cidadãos escolhidos aleatoriamente de entre eleitores que se pré-­‐inscrevam […]
Na versão final do programa foi eliminada a proposta de introdução de círculos uninominais, que conduzem inevitavelmente ao bipartidarismo.


Dívida pública

O PS sempre foi um defensor do pagamento integral da dívida e as expressões «auditoria da dívida» ou «dívida ilegítima» são tabus jamais pronunciados, tanto quanto sei. Por isso é talvez surpreendente que o programa de governo afirme que «devem ser exploradas todas as oportunidades para, de um modo cooperante entre Estados e instituições, reduzir o peso do serviço das dívidas nos orçamentos nacionais» – o que parece deixar a porta aberta a uma possível reestruturação da dívida, que aliás também é do agrado dos partidos parlamentares à esquerda do PS.


E agora?

Aparentemente já não existem mais partidos de esquerda com peso significativo na sociedade portuguesa, dentro ou fora do Parlamento, à esquerda dos que lá estão; nem movimentos sociais pujantes, como acontece em Espanha. A esquerda parlamentar é, por assim dizer, o fim da linha em Portugal – e continuamos sem saber que iniciativas irá ela tomar (ou não) em relação a um conjunto de problemas cruciais: o crescimento da dívida em roda livre, a subjugação a políticas europeias absolutamente contrárias aos interesses das populações, a total ausência de controle dos meios financeiros, …

Voltamos portanto à pergunta que coloquei mais acima: o que vão fazer os partidos à esquerda do PS quanto às questões de fundo que determinam o sucesso ou o fracasso, a prazo, de toda e qualquer medida anti-austeridade?

A longo prazo seria da maior importância que os movimentos sociais se fortalecessem e, não se deixando instrumentalizar para apoio, a todo o custo, de um governo que promete anular as medidas de austeridade, fossem capazes de entrar na dança deste novo paradigma, para forçarem os partidos da esquerda parlamentar e o Governo a corrigirem algumas das suas rotas mais frouxas.


Notas

[1Não esqueçamos, contudo, que em questões pontuais – como a interrupção voluntária da gravidez, a discriminação de género, os direitos LGBT, etc. – tem havido alguma coordenação entre os partidos de esquerda – mas sem o alcance dos actuais acordos ao nível do poder.

[2Os acordos constam de documentos assinados, sob o título «Posição conjunta do Partido Socialista e do [Bloco de Esquerda / PC / PEV] sobre solução política», e podem ser encontrados nos sites dos respectivos partidos. A última versão do «Programa de Governo para a XIII Legislatura» pode ser descarregada no site do PS.

Rui Viana Pereira

revisor, tradutor e sonoplasta; co-autor de Quem Paga o Estado Social em Portugal? e de «E Se Houvesse Pleno Emprego?», in A Segurança Social É Sustentável (Bertrand, Lisboa, 2012 e 2013 respectivamente); co-fundador do CADPP.
Membro do grupo cívico Democracia & Dívida.

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