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Auditoria cidadã da dívida do município de São Paulo, Brasil
Entrevista com Rémi Chatain, da Auditoria Cidadã da Dívida no Brasil
por Jérôme Duval , Rémi Chatain
16 de Setembro de 2015

Rémi Chatain, músico franco-brasileiro, vive em São Paulo, Brasil, onde participa da Auditoria Cidadã da Dívida. São Paulo é uma megalópole de 11 milhões de habitantes, 23 milhões, se for considerada toda a região metropolitana. Encontramos Remi em Buenos Aires por ocasião da Conferência Internacional ‘Dívida, bens comuns e dominação’, realizada de 3 a 5 de junho, a pedido dos movimentos sociais e sindicais argentinos que compõem a Assembleia para a suspensão de pagamentos e auditoria da dívida. [1]

Jérôme Duval: Qual é seu papel dentro da Auditoria Cidadã da Dívida no Brasil?

Rémi Chatain: Eu participo do Núcleo São Paulo. Além de estudar a dívida do município e do estado de São Paulo, que constituem duas das maiores dívidas do Brasil, organizamos a comunicação da Auditoria Cidadã da Dívida em nível nacional e internúcleos, por ocasião de campanhas e eventos, em redes sociais etc. De uma forma geral, tudo o que envolve a missão de informar e sensibilizar a respeito do tema Dívida Pública costuma passar pelo Núcleo São Paulo.

J.D: A Auditoria Cidadã do Brasil é composta por muita gente? Onde está implantada? Como nasceu essa iniciativa e quais são seus objetivos?

R.C: A Auditoria Cidadã da Dívida tem atualmente núcleos em cerca de 12 estados, dentre os 27 que compõem o Brasil. [2] Cada Núcleo local conta com cerca de 7 a 20 pessoas. No total, deve haver mais de uma centena de militantes orgânicos ativos na ACD, mas há também muitos colaboradores que participam de nossos eventos, manifestações etc. Há muitos funcionários do setor público e privado, mas também gente que provém das mais diversas áreas e profissões.

A Auditoria Cidadã da Dívida foi criada após um plebiscito popular sobre a dívida pública, organizado por uma centena de movimentos sociais brasileiros em setembro do ano 2000. Na época, o Brasil passava por uma crise econômica e energética, e se sentiu obrigado a contratar novos empréstimos junto ao FMI, a fim de pagar os juros de sua dívida. Essa campanha, que reuniu a maioria dos grandes movimentos sociais e também cidadãos independentes, organizou então o plebiscito, que perguntava, entre outros, se o Brasil deveria continuar a pagar sua dívida sem antes realizar uma auditoria. A participação foi maciça e mais de 6 milhões de pessoas votaram em 3.444 municípios (sobre um total de 5.570). Mais de 95% dos participantes disseram NÃO à manutenção do acordo com o FMI e NÃO à continuidade do pagamento da dívida sem a realização de uma auditoria, aliás, já prevista na Constituição Federal. Apesar da espetacular tomada de consciência a respeito dessas questões, o plebiscito não resultou em qualquer mudança objetiva, então as organizações da campanha se reuniram e decidiram criar a Auditoria Cidadã da Dívida. Maria Lucia Fattorelli, que havia se engajado de forma especial no plebiscito, foi escolhida para coordenar a associação.

J.D: Quais são suas principais atividades e canais de difusão?

R.C: Já foram publicados quatro livros, o último dos quais foi traduzido em 4 idiomas, publicamos regularmente artigos sobre a evolução da dívida e relatórios sobre as regiões ou sobre assuntos relacionados com a dívida e o orçamento, como a previdência social e o sistema fiscal. Alimentamos diariamente nossa página no Facebook e também nosso site com regularidade. Desde o ano passado, oferecemos um curso virtual de 4 meses. Colaboramos com outros movimentos sociais. Organizamos debates públicos e aulas abertas, conferências e encontros com sindicatos, parlamentares, audiíencias públicas, universidades etc. Encaminhamos também denúncias ao Ministério Público e aos órgãos responsáveis.

Nosso principal trabalho é fazer uma auditoria paralela e cidadã das dívidas, mesmo fora do âmbito institucional oficial. Buscamos todos os documentos relativos ao processo de endividamento de municípios e estados, para compreender a origem e o significado dos números. Em seguida, divulgamos todas essas informações para que os cidadãos possam empoderar-se da questão, a fim de iluminar esse assunto tão obscuro e fazer pressão sobre os políticos e os órgãos competentes. O objetivo almejado é a anulação dessas dívidas, ou ao menos de uma parte delas, comprovando as irregularidades, ilegalidades e ilegitimidades...

J.D: São Paulo parece o lugar onde a auditoria municipal está mais adiantada. É isso mesmo?

R.C: Em São Paulo avançamos bastante. Em 2013 conseguimos encontrar quase todos os documentos relativos ao processo de endividamento que buscávamos, e este ano conseguimos obter os últimos que faltavam (com exceção de alguns trancados a sete chaves). Agora podemos estudar tudo.

De fato, há muito material referente ao município de São Paulo, porque foi lá que se criou um novo tipo de crime em matéria de finanças públicas, crime que foi depois ‘exportado’ para diversos outros municípios e estados do Brasil. Essa técnica de formação de dívida pública reflete a corrupção dos poderes, em conivência com o mercado financeiro. No caso do município de São Paulo, cerca de 90% de sua dívida provém de um mecanismo de emissão de títulos para pagar os chamados ‘precatórios’ (ordens judiciais de pagamento), ou seja, uma dívida do estado contra cidadãos que obtiveram ganho de causa na Justiça contra o município ou um órgão da administração pública. Esses ganhos de causa, ou ‘precatórios’, nunca foram pagos e constituíram uma enorme dívida pública em São Paulo. É necessário explicar que, após a promulgação da nova Constituição Brasileira, em 1988, os municípios e os estados foram proibidos de emitir títulos públicos, com uma única exceção: para obter verbas necessárias a fim de quitar as somas devidas aos cidadãos que detinham precatórios julgados até a Constituição Federal de 1988. Houve então manipulação e majoração dos números devidos, a fim de poder emitir os títulos. Até hoje não se sabe o destino que foi dado às somas suplementares que foram geradas de forma fraudulenta e a maior parte dos precatórios também não foram pagos.

J.D: Qual o papel do governo federal com respeito às dívidas dos municípios, em particular à de São Paulo?

R.C: Em 1997, o Congresso Nacional criou uma nova lei, determinando que o Governo Federal assumisse todas as dívidas de estados e municípios, pois esses estavam com grandes dificuldades financeiras. Assim, em 2000, o município de São Paulo refinanciou sua dívida junto ao Governo Federal, num total de 11 bilhões de Reais (pouco mais de 3 bilhões de Euros). Desde então, já reembolsamos 30 bi de Reais (cerca de 8,5 bi de Euros), e ainda hoje devemos 60 bi de Reais (cerca de 20 bi de Euros), sem porém termos contraído qualquer dívida adicional ou ter emitido mais títulos para amortizá-la. Em outras palavras, já pagamos 3 vezes a dívida inicial e mesmo assim devemos ainda 6 vezes o que devíamos no início, em 2000.

J.D: Como isso é possível?

R.C: Se, por um lado, é muito difícil fazer esse tipo de cálculo sobre a dívida federal brasileira, interna e externa, no caso das dívidas de estados e municípios com a União, é mais fácil comprovar os mecanismos de fraude, porque não há contratação de dívidas complementares com a União após a União assumir as dívidas dos entes federados. A dívida se autoalimenta através do simples pagamento dos juros. Além disso, a parte destinada ao serviço da dívida nos orçamentos de estados e municípios brasileiros é limitada a 13%, o que se revela insuficiente. O montante que passa dos 13% não é pago e é somado ao estoque da dívida, sobre o qual incidem mais juros.

Já houve três CPIs (comissões parlamentares de inquérito) sobre a dívida resultante desse mecanismo: duas delas na Câmara Municipal de São Paulo e outra no Senado Federal, em 1997. Essas comissões não resultaram em nada concreto, apenas produziram relatórios e conduziram à criação de uma nova comissão de inquérito sobre os bancos – a CPI dos Bancos –, que foi impedida de continuar seu trabalho de investigação sobre o mecanismo de endividamento através de ‘precatórios’, acima descrito, por ordem do Supremo Tribunal Federal do Brasil. Isto demonstra bem até que ponto o poder público e político está nas mãos do poder econômico.

Enquanto o PT (Partido dos Trabalhadores, no poder desde a eleição de Luís Inácio ‘Lula” da Silva ao governo, em 2002) esteve na oposição, foi muito ativo no trabalho de investigação dentro dessas comissões, mas, uma vez no poder, o PT se envolveu menos e até mesmo boicotou o prosseguimento do trabalho de investigação.

J.D: Quais são as próximas etapas para a Auditoria Cidadã no Brasil?

R.C: Nos dias 30 e 31 de outubro deste ano de 2015, será realizado em São Paulo o Seminário Nacional da Auditoria Cidadã, que vai reunir todos os núcleos do Brasil bem como dezenas de militantes, pensadores, entidades, sindicatos e movimentos sociais, a fim de definirem em conjunto os programas de ação e as estratégias futuras. Está sendo muito interessante poder participar do atual encontro internacional em Buenos Aires, o que permite criar laços com outros militantes e coletivos, além de se inserir dentro de uma rede de lutas em nível continental e internacional, que possa se contrapor à desinformação das grandes mídias.

Além disso, Maria Lucia Fattorelli, coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida do Brasil, participa da Comissão de Auditoria da Dívida na Grécia [3] e estamos muito entusiasmados com o processo em curso e as possíveis repercussões que essa Comissão vai provocar em outros países europeus, como na Espanha por exemplo. Esperamos fortemente que tanto o povo grego quanto o espanhol possam se libertar do jugo do sistema financeiro. Entre povos vitimados pelo sistema da dívida, temos que ser solidários.


Tradução para o Português: Giulia Pierro

Entrevistado: Rémi Chatain, membro do Núcleo São Paulo da Auditoria Cidadã da Dívida

Entrevistador: Jérôme Duval, membro do CADTM e da plataforma de Auditoria Cidadã da Dívida na Espanha

Notas :

[2Para ver os estados onde foi implantado um núcleo da Auditoria Cidadã da Dívida: http://www.auditoriacidada.org.br/nucleos-da-auditoria-cidada-da-divida/

Jérôme Duval

membro do CADTM (www.cadtm.org) e da PACD (Plataforma de auditoria cidadã da dívida em Espanha, http://auditoriaciudadana.net/). Autor, com Fátima Martín, do livro Construcción europea al servicio de los mercados financieros, Icaria Editorial 2016; é também co-autor da obra La Dette ou la Vie (Aden-CADTM, 2011), livro colectivo coordenado por Damien Millet e Eric Toussaint que recebeu o Prémio do Livro Político na Feira do Livro Político de Liège em 2011.

Rémi Chatain