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Eric Toussaint: «65% da dívida pública espanhola é ilegítima, contra o interesse geral». “ Grecia: uma semicolónia das grandes potências europeias”
por Eric Toussaint , Begoña P. Ramírez
27 de Maio de 2016

Os espanhóis acordaram na passada terça-feira com mais um recorde histórico: as administrações públicas devem 1095 milhões de euros, a maior dívida pública desde há um século. Pela primeira vez ultrapassa 100% do PIB; quer isto dizer que o Estado deve mais do que o país produz. Por isso, não poderia ser mais oportuna a visita de Éric Toussaint, porta-voz da rede internacional do Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM), que neste sábado chega a Santiago de Compostela, a convite da Alternativa Galega de Esquerda, os grupos políticos que integram a coligação galega En Marea.

Toussaint nasceu em 1954 em Namur (Bélgica), cresceu numa aldeia mineira e cedo se iniciou no activismo sindical, ao mesmo tempo que era professor nas escolas públicas de Liège. É doutorado em Ciências Políticas e um dos fundadores do CADTM e da ATTAC (Associação para a Taxação das Transacções Financeiras e pela Acção Cidadã). No seu último livro, Bancocracia, descreve o modo como a desregulamentação financeira deu origem à bolha financeira e como o dinheiro público salvou os bancos privados com a cumplicidade dos bancos centrais e dos governos. Na capital galega, o politólogo e activista explicará porque são coisas diferentes a dívida pública legal e a dívida pública legítima.

PERGUNTA: Em 2007 a Espanha não tinha um problema de dívida pública – a dívida equivalia apenas a 35,5% do PIB –, mas desde aí não deixou de crescer e já superou os 100% do PIB, atingindo o nível mais alto desde 1909. O que terá provocado este recorde histórico e quais são as consequências de um nível tão alto de endividamento para a economia dos cidadãos?

RESPOSTA: A explosão da dívida resulta da crise hipotecária e da maneira como se escolheu sair dessa crise: socializando as perdas do sector privado. As decisões do governo de [José Luis Rodríguez] Zapatero e depois a política do PP engordaram a dívida pública e as políticas de austeridade, tanto de Zapatero em 2010, como de Rajoy a seguir, provocaram um crescimento económico muito baixo e reduziram as receitas fiscais, de modo que, para equilibrar o orçamento, foi necessário aumentar o financiamento, contraindo mais dívida. Enfim, resulta de políticas neoliberais levadas a cabo tanto pelo PSOE como pelo PP.

E tem consequências muito prejudiciais para a população espanhola, ainda que os cidadãos não se deem conta necessariamente de que a degradação das suas condições de vida têm a ver com a maneira como é gerida a dívida pública. Mas a relação é clara. A necessidade de limitar o défice fiscal por imposição de Bruxelas e de ter um superavit primário faz com que os governos fomentem a austeridade, o que, por sua vez, se traduz em menos investimento público nas infraestruturas, na saúde pública e na educação, bem como no aumento dos impostos, …

Trata-se, além disso, duma política que tem aspectos contraditórios. Os governos aumentam a dívida pública e logo a seguir dizem aos cidadãos que a dívida é tão elevada que necessitam de aplicar medidas de austeridade, como se fossem eles, os cidadãos, os responsáveis. Procuram apresentar uma narrativa totalmente mentirosa: culpam os gastos públicos pelo aumento da dívida. Mas o problema não são as despesas sociais, mas sim as despesas para pagamento da dívida.

P.: E o que deveria ser feito para que a dívida pública não continue a engrossar?

R.: Uma proposta integral e coerente que inclua quatro pontos. Primeiro, fazer uma auditoria da dívida para determinar a parte ilegítima. E, a partir do resultado, tomar medidas fortes para impor a factura a quem beneficiou da socialização das perdas bancárias. Refiro-me aos bancos espanhóis e estrangeiros, que são os maiores credores da dívida pública e, ao mesmo tempo, os responsáveis pelo seu aumento. São eles quem têm de pagar a factura.

Segundo, há que reorganizar o sector bancário. Recentemente assinei, juntamente com políticos, economistas e intelectuais, um documento a favor da socialização do sector financeiro [Que fazer com os bancos ? documento conjunto de David Harvey, Michel Husson , Costas Lapavitsas , Francisco Louça , Eric Toussaint , Miguel Urbán Cresp, entre outros]. Preferimos falar de «socialização» em vez de «nacionalização»: ao serviço da sociedade e sob controlo organizado dos cidadãos, não do Estado, através de mecanismos locais de transparência obrigatória das entidades bancárias.

Terceiro, outra política de impostos, que faça pagar a quem tirou benefício do favorecimento fiscal dos últimos 15 anos e da crise. São esses que têm de pagar mais impostos, ao mesmo tempo que devem ser reduzidos os impostos sobre o consumo e as actividades da maioria da população, que tem rendimentos baixos ou moderados.

E o quarto ponto tem a ver com uma política de criação massiva de emprego, que inclua a redução do tempo de trabalho.

P.: Como se faz uma auditoria à dívida? Que percentagem da dívida pública espanhola poderá ser ilegítima?

R.: A dívida do Estado espanhol antes de 2006 era muito baixa e agora atingiu níveis históricos. Para mim, a diferença entre a dívida de 2006 e a actual é a dívida ilegítima, porque foi contraída para favorecer os interesses particulares duma minoria privilegiada de banqueiros, estrangeiros e espanhóis. Uma dívida é ilegítima quando foi contraída contra o interesse geral.

A auditoria deve analisar as razões de aumento da dívida, quem beneficiou desse crescimento e por fim tirar conclusões. A hipótese que acabo de apresentar tem de ser comprovada através de um processo de auditoria organizada pelos cidadãos. E se aparecer um governo que queira realmente romper com as políticas neoliberais, terá de lançar uma comissão de auditoria com participação cidadã, como se fez no Equador a partir de 2007. Por isso, na campanha do 26-J seria importante que os candidatos explicassem às pessoas o que é uma auditoria e porque é um assunto fundamental.

P.: Há poucos dias esteve em Espanha um economista australiano, Bill Mitchell, para apresentar o seu último livro, A Distopia do Euro, onde defende que os países do Sul da Europa voltem às suas antigas moedas. Yanis Varoufakis também acaba de apresentar um livro, And the Weak Suffer What They Must? (E os Fracos Sofrem o Que Devem?), onde defende a opinião contrária: a Grécia, tal como o Reino Unido, devem permanecer na zona euro. Qual é a sua opinião? Dentro ou fora?

R.: Creio que países como Portugal, Espanha ou Grécia deveriam sair da zona euro. Mas isso devia resultar duma decisão tomada pela maioria da população. Ao contrário da França, da Alemanha e dos países do Benelux, os da periferia sofrem com a presença na zona euro. Ao princípio, a integração pareceu muito bem aos espanhóis, portugueses e gregos, mas na realidade quem beneficiou do euro foram a França, Alemanha, Benelux, etc. Estes países ganharam mais vantagens competitivas nos mercados periféricos, ao passo que os portugueses, os espanhóis e os gregos não estão em condições de competir nos mercados alemão, francês ou Benelux. Sendo membros da zona euro não conseguem ganhar competitividade doutra forma que não seja baixando os salários, de modo que a lógica para os países da periferia reduz-se ao corte salarial, o que gera precariedade laboral.

Em todo o caso, sair da zona euro não é a solução, é necessário o programa integral de que já falei. Porque abandonar a zona euro não é uma solução milagrosa, não é uma solução em si mesma se ao mesmo tempo não houver uma solução sobre a dívida, os bancos e o investimento, para criar emprego.

P.: E o Brexit?

R.: Bem, não creio que do referendo saia uma maioria a favor da saída da Grã-Bretanha da União Europeia.

P.: Fez uma auditoria à dívida grega e assessorou o Syriza. Que opinião tem sobre a viragem de Alexis Tsipras na política económica?

R.: É perfeitamente claro que o governo de Alexis Tsipras capitulou frente à União Europeia. A estratégia do primeiro governo de Tsipras com Yanis Varoufakis como ministro das Finanças levou à capitulação. Fizeram demasiadas concessões à Comissão Europeia e continuaram a pagar a dívida: 7.000 milhões de euros entre Fevereiro e Julho de 2015, sem receber qualquer compensação financeira. Esgotaram o tesouro público para pagar a dívida, quando deveriam ter suspendido o pagamento e obrigado os credores a aceitarem uma verdadeira negociação.

Para mim, em todo o caso, a diferença entre Varoufakis e Tsipras é que, a dado momento, o primeiro se negou à capitulação, e isso é importante. Demitiu-se de ministro a 6 de Julho, perante a decisão de Tsipras de chegar a um acordo com a UE, apesar dos 63% de eleitores que recusaram as propostas dos credores europeus no referendo de 5 de Julho. É claro que há uma diferença, porque Varoufakis tem a virtude de, ao menos, ter rompido com uma lógica desastrosa, mas isso não o absolve da responsabilidade pelo que fez nos primeiros meses de governo.

Pessoalmente, não apoio o manifesto DiEM 25. Falei com ele mas decidi não subscrever, porque o documento mantém de forma deliberada a ilusão de ser possível reformar a União Europeia. Para mim, pelo contrário, a experiência grega demonstrou a impossibilidade de reformar a UE. Dizer que ela existe é criar falsas esperanças. Sou totalmente a favor duma integração europeia, mas deve ser dos povos, e isso passa por um verdadeiro processo constituinte em cada país para chegar a uma refundação da UE com novos tratados.

P.: A dívida grega já ascende a nada menos que 180% do PIB. O FMI já há tempo vem dizendo que ela é insustentável e que os objectivos fiscais exigidos a Atenas são impraticáveis. No entanto, a UE, bem como a Alemanha, parecem decididas a não lhe perdoar um só euro. Onde conduz esta política? Que futuro haverá para a Grécia nos próximos anos?

R.: Estou convencido que vai continuar a ser quase um protectorado, uma semicolónia das grandes potências europeias. Já não tem soberania para elaborar a sua política fiscal, continua a pagar a dívida e cada novo desembolso dos credores tem como condição novas medidas de austeridade. Por exemplo, a última alteração às reformas baixou a pensão mínima para 384 euros por mês; este nível de rendimento fica abaixo do limite da pobreza absoluta.

P.: Também assessorou o Governo venezuelano quando Hugo Chávez ainda estava no poder. As carências da população no país são muito alarmantes. Que lhe parecem as últimas medidas adoptadas por Nicolás Maduro?

R.: Estou muito preocupado com a Venezuela, que também enfrenta uma crise da dívida, ainda que se trate sobretudo de uma crise política. É claro que a narrativa de jornais como El País ou El Mundo em Espanha transfigura completamente a realidade. Apresentam Leopoldo López como o cavalo branco da defesa das liberdades democráticas, quando de facto ele é um personagem sinistro que apoiou provocações e até medidas contra o movimento popular. A meu ver ele faz parte do núcleo duro dos golpistas da Venezuela.

Ao mesmo tempo, sou muito crítico a respeito da política económica do chavismo; após a morte de Hugo Chávez teve uma deriva funesta. Mas não nos enganemos: creio que é uma ilusão pensar que a oposição maioritária da Assembleia Nacional pode representar uma alternativa democrática e favorável ao povo. Nem por sombras.

P.: Explique-me essa «deriva funesta» que crítica faz ao governo de Maduro.

R.: Na Venezuela há uma fuga de capitais imensa. A sociedade venezuelana continua a ser capitalista, não é um país onde o sector público seja hegemónico. Grandes empresas capitalistas, tanto no sector agropecuário como no industrial e financeiro, organizam uma fuga massiva de capitais que deixa o Estado sem divisas e gera grandes dificuldades de financiamento, agora que o barril de petróleo está a 50 dólares; há também problemas de abastecimento nos supermercados e nas farmácias que afectam o nível de vida da população. Creio que o governo poderia ter tomado medidas contundentes para combater a fuga de capitais e para investir a riqueza produzida na Venezuela a favor dos venezuelanos. Também deveria ter diversificado a economia, para reduzir a sua dependência do petróleo. Além disso, é necessário tornar as contas da nação mais transparentes. Isto significa auditar a dívida pública venezuelana e relacioná-la com o escândalo da fuga de capitais.

Fonte: http://www.infolibre.es/noticias/economia/2016/05/21/eric_toussaint_deuda_publica_espanola_ilegitima_fue_contratada_contra_interes_general_50045_1011.html

Tradução: Rui Viana Pereira

Revisão: Maria da Liberdade


Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

Begoña P. Ramírez