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Parte 1 da conversa «Genealogia das políticas antidívida e do CADTM»
Genealogia do CADTM e da antidívida ilegítima: as origens
por Eric Toussaint , Benjamin Lemoine
18 de Agosto de 2016

Conversa com Éric Toussaint, porta-voz e um dos fundadores da rede internacional do Comité para a Abolição das Dívidas ilegíTiMas (CADTM). Texto de Benjamin Lemoine.

Este diálogo versa sobre a genealogia da luta contra a dívida, os apelos à sua anulação e a criação empírica, ao serviço de combates políticos, dos conceitos de «ilegitimidade», de «ilegalidade» e do carácter «odioso» das dívidas públicas. Fala-se também da necessidade de o Comité para a Abolição das Dívidas Ilegítimas (CADTM) – anteriormente conhecido por Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo – se aliar às forças de oposição e aos movimentos sociais, cujas ideias e pessoas, uma vez chegadas ao poder, poderão contestar e derrubar a dívida e o seu «sistema». No entanto para o CADTM a prioridade absoluta vai para o reforço da acção dos de baixo, e não tanto para o lobbying.
De África à América Latina, as auditorias com participação cidadã são uma fonte de esperança, na maioria das vezes frustrada quando a oposição se torna governo. É aí que o comportamento dos dirigentes em relação à ordem financeira se torna decisivo … Mas por vezes as auditorias alcançam sucesso. Fala-se aqui também da experiência, recheada de intriga e desfechos inesperados, da auditoria da dívida soberana grega. Quando o sonho de esperança numa nova cooperação internacional (uma nova conferência de Londres para a dívida grega como a que foi solicitada por Alexis Tsipras) parece naïf e onde se impõem, segundo Éric Toussaint, actos soberanos unilaterais, condições sine qua non para inverter a relação de forças.

Publicamos esta entrevista em 6 partes :

1. A genealogia do CADTM e da antidívida ilegítima: as origens

Benjamin Lemoine: O que é que o levou a empenhar-se no combate contra a dívida ilegítima?

Éric Toussaint: Eu dei aulas de História e de Ciências Sociais no ensino secundário (em estabelecimentos de ensino público, técnico e profissional) entre 1975 e 1994. Quando estava a dar aulas em Liège, fui confrontado, a partir dos anos 1980, com uma crise da dívida desse município (200 000 habitantes), que tinha atingido um nível catastrófico e implicava um plano de austeridade extremamente duro para a época. Isto levou-me, juntamente com uma série de colegas e várias categorias de trabalhadores, a analisar as origens da dívida cujo pagamento era exigido à cidade de Liège. Ao mesmo tempo rebentou a crise da dívida do Terceiro Mundo: o México em 1982 declarou-se em incumprimento de pagamento. Na América Latina em particular houve várias iniciativas durante os anos 1980 para obstar ao pagamento da dívida impagável. Também em África a temática da dívida foi abraçada pelo jovem presidente Thomas Sankara a partir de 1985. Tudo isto me levou a pensar, juntamente com outras pessoas que fundaram comigo o Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM) em 1990 na Bélgica [1], que se tratava dum tema transversal, novo, e que justificava a criação duma organização específica, à imagem doutras organizações bem conhecidas, como a Greenpeace ou a Amnistia Internacional. A ideia era partir de um tema específico, para depois abordar os problemas da sociedade e do sistema capitalista global. Este comité, que à partida era uma estrutura essencialmente belga, graças às suas publicações em francês teve um eco considerável em França, Suíça francófona, África francófona e Haiti, acabando actualmente por estar implantada em mais de 30 países.

Na área do ensino, ao mesmo tempo que dava aulas a tempo inteiro no secundário, continuei a estudar e fiz um doutoramento em Ciências Políticas nas universidades de Liège e de Paris 8 em 2004. A minha tese versou sobre as políticas de intervenção do Banco Mundial e do FMI nos países em desenvolvimento [2].


B. L.: Antes dessa experiência em Liège já tinha feito militância política?

E. T.: Empenhei-me muito cedo na política. Em Maio de 1968, ainda não tinha feito 14 anos e já era muito activo no meu liceu, desde 1967. Eu vivia numa vila de mineiros de carvão, na sua maioria imigrados (polacos, italianos, espanhóis, gregos, …). Note-se que os meus pais eram professores de instrução primária na vila e não tinham nada a ver com marxismo. Na biblioteca familiar não havia um único livro marxista. O meu pai era membro muito activo do Partido Socialista. Os meus pais eram anti-racistas, pacifistas e internacionalistas. Senti-me mobilizado pelo anti-racismo e muito entusiasmado com as lutas levadas a cabo nos EUA por Malcom X e Martin Luther King (sentia-me mais atraído pela posição radical de Malcom X). Sentia-me completamente solidário com os trabalhadores que lutavam pelos seus direitos nas greves e manifestações de rua. Participei nas manifestações contra as armas nucleares e contra a guerra do Vietname. Em Maio de 1968 segui com atenção o que se passava em Paris. Fartei-me de ler: de Mao a Guevara, passando pelo Manifesto comunista e muitas outras leituras políticas marxistas de diversas correntes. Tudo isto levou-me, a partir de 1970, a aderir à corrente trotskista, a IV Internacional. Em França, a organização membro da IV Internacional era a Liga Comunista (mais tarde Liga Comunista Revolucionária, LCR), encabeçada por Alain Krivine e Daniel Bensaïd. Fui à boleia para Paris, ao encontro dessa organização, com um amigo da minha idade, em Junho de 1970. Ia fazer 16 anos. Meti-me a ler as principais análises de Léon Trotsky, que me permitiram compreender a degeneração da URSS e a necessidade duma política mundial e da revolução permanente.


No seio da IV Internacional dava-se atenção à questão da dívida ou, pelo contrário, tratava-se duma posição isolada?

O CADTM foi criado em 1990. Ernest Mandel, um dos principais dirigentes da IV Internacional, com o qual colaborei activamente, pronunciou-se em 1986 pela anulação da dívida do Terceiro Mundo [3]. Além disso, em 1989, por iniciativa da LCR em França, tinha sido criada uma coligação com personalidades como o cantor Renaud e o escritor Gilles Perrault. A coligação chamava-se «Ça suffat comme ci» e era uma resposta unitária alargada à iniciativa de François Miterrand, que convocou uma reunião do G7 para o bicentenário da Revolução francesa, o que foi encarado pela esquerda francesa como uma provocação. Renaud, que sentia uma certa admiração por Miterrand, entrou em conflito e em crise de confiança por ocasião desse bicentenário. Realizou um enorme concerto gratuito em Vincennes, juntamente com o seu colega africano Johnny Clegg e os Mano Negra. Estiveram presentes 150 000 pessoas e, na manifestação de rua, pelo menos 80 000. Esta coligação tinha por tema principal a reivindicação da anulação da dívida do Terceiro Mundo. O texto fundador do CADTM na Bélgica é o «Apelo da Bastilha» para a anulação da dívida do Terceiro Mundo [4], que foi redigido em 1989 por militantes da LCR e Gilles Perrault. Há portanto uma filiação muito clara, ao nível de correntes políticas, quanto à problemática da dívida, em particular da dívida dos países do Terceiro Mundo. Essa campanha gigante de 1989 foi entretanto posta em segundo plano em França pelo sucesso do SOS Racismo. O espaço ocupado por «Ça suffat comme ci» foi tomado, anos depois, pelo SOS Racismo e Harlem Désir. Este tinha nessa época, durante os anos 1990, ligações regulares com o CADTM. Era também o caso de Arnaud Montebourg, que era deputado do PS na Assembleia Nacional e tinha a seu cargo as pastas da evasão fiscal e da ajuda ao desenvolvimento. Quando o SOS Racismo foi lançado, retomaram a fórmula dos grandes concertos gratuitos e dos encontros, e procuraram ocupar esse terreno. Houve uma renovação do tema da dívida em França durante a cimeira do G7 em Lyon em 1996. Lá estavam Bill Clinton, Jacques Chirac, Tony Blair, etc. O colectivo montado em Lyon chamou-se As Outras Vozes do Planeta, que era o título da revista do CADTM. Neste contra-G7 o CADTM desempenhou um papel chave nas análises e no conteúdo da declaração final. Foi também o CADTM que financiou o único funcionário da coligação As Outras Vozes do Planeta, encarregada de preparar a contra-cimeira unitária de Lyon.

Dívidas do Sul, dívidas do Norte

Durante esses anos foi feita uma distinção nítida, na luta, entre a dívida dos países do Norte e a dívida dos países do Sul?

Sim, a dívida dos países do Norte não era considerada em 1990 como um tema chave. No entanto, para mim, já era. Olhando para a situação actual: quando a crise bancária que estalou nos EUA em 2006-2007 chegou à Europa por volta de 2007-2008 e, para salvar os bancos, uma série de países socializaram as perdas bancárias, a dívida pública agigantou-se. Percebi logo, juntamente com outros membros do CADTM, que era preciso ter em conta a nova dimensão da questão da dívida pública nos países do Norte. Tivemos isso em conta antes de se tornar óbvio para muitas outras pessoas. Não nos esqueçamos que em 2008-2009 José Manuel Barroso, que estava à cabeça da Comissão Europeia, propôs como primeira reacção uma política que fazia lembrar uma reviravolta neo-keynesiana. De facto, tratava-se de amortecedores sociais meramente momentâneos, porque os governos do Norte tiveram muito medo que, ao pôr-se em causa o sistema, fosse gerado um movimento massivo e activo. Em França, Nicolas Sarkozy lançou subsídios para apoiar a indústria automóvel. Uma parte do movimento altermundialista, ou da esquerda nas suas diversas componentes, não compreendeu que com o pretexto do aumento da dívida pública, iríamos assistir ao desenvolvimento duma ofensiva extremamente brutal da austeridade. A esquerda só se apercebeu a partir de 2010 e da famosa crise grega, perante o que os grandes meios de comunicação chamaram «a crise das dívidas soberanas». Isto não foi, de facto, senão uma vasta campanha de comunicação para esconder o essencial, ou seja, a continuação da crise bancária e uma série de iniciativas do Banco Central Europeu, dos governos dos países da União Europeia e também dos EUA, para auxiliarem os bancos, à custa das finanças públicas. Num artigo de 2008 [5], anunciei com toda a clareza o que viria a passar-se em 2010 e a forma como iriam desenrolar-se os acontecimentos. Em suma, nós, no CADTM, estávamos preparados para o que aconteceu efectivamente. Aliás já tínhamos publicado dois livros que davam conta disso: La crise, quelles crises? [A Crise, Que Crises?], publicado em Dezembro de 2009, e La Dette ou la Vie [A Dívida ou a Vida], publicado em 2011, que recebeu o prémio do livro político na feira do livro político de Liège nesse mesmo ano. Além disso realizámos seminários e tentámos convencer uma série de movimentos a montarem a partir de 2010 uma frente europeia para pôr em causa o pagamento da dívida.


Entre os anos 1980 com «Ça suffat comme ci» e 2007-2008, passou uma vintena de anos. Ora a diferença de percepção entre a dívida do Norte e a do Sul persiste. Como se explica isto?

Existe um laço muito forte entre o CADTM e a chamada corrente terceiro-mundista. A corrente terceiro-mundista corresponde aos anos 1960 e 1970 [6]. O CADTM ligou-se a personalidades empenhadas na corrente terceiro-mundista e eu tive contacto pessoal com figuras terceiro-mundistas como Ahmed Ben Bella (o primeiro presidente da Argélia independente, deposto em 1967 por Boumedienne) [7], François Houtart, Gus Massiah, André Gunder Franck, Theotonio dos Santos … O CADTM também colaborou com Susan George, que escreveu bastante sobre a dívida durante os anos 1990, assim como o escritor Gilles Perrault a partir do seu empenhamento no Apelo da Bastilha em 1989. Gilles Perrault empenhou-se muito na publicação de Notre ami le roi e na defesa de Abraham Serfaty, que detido como preso político nas masmorras de Hassan II. A estes contactos e a estes temas acrescento René Dumont, que era uma figura emblemática do terceiro-mundismo e que lhe juntava a dimensão ecológica. O CADTM inscreve-se portanto na filiação de pessoas que no início dos anos 1990 tinham 60, 70 anos e que se tinham mobilizado na solidariedade com o Terceiro Mundo ou tinham aí desempenhado o papel de líderes. O CADTM ligou-se também às redes internacionais saídas das lutas dos anos 1990, por exemplo a Via Campesina, nascida em 1993, a Marcha Mundial das Mulheres, nascida no final dos anos 1990, o Jubileu Sul, nascido em 1999, a ATTAC a partir de 1998-1999 … Estes movimentos convergiram na criação em 2001 do Fórum Social Mundial, do qual o CADTM é um dos fundadores.

Ao longo da sua evolução, o CADTM sofreu portanto uma mutação: passou de organização do Norte solidária com o Sul, para uma rede Norte-Sul de acção sobre o temas das alternativas ao sistema da dívida.

Na sua assembleia mundial de fins de Abril de 2016, realizada em Tunes, o CADTM, embora mantendo a sua sigla, decidiu por unanimidade mudar de nome e passar a chamar-se «Comité para a Abolição das Dívidas Ilegítimas». A moção aprovada apresentou os seguintes argumentos pela mudança de formulação: «A adaptação que apresentamos justifica-se pela evolução do trabalho realizado pelo CADTM no plano internacional e no plano nacional. O CADTM nasceu em 1990 em plena crise da dívida do Terceiro Mundo para reclamar a anulação da dívida dos países ditos do Terceiro Mundo. A partir dos anos 1990, o termo Terceiro Mundo passou a ser cada vez menos usado, nomeadamente por causa do desaparecimento do Segundo Mundo (=bloco do socialismo real) e no seguimento de diversas evoluções dentro da categoria do Terceiro Mundo – países ditos em desenvolvimento (países emergentes, BRIC, PMA [«países medianamente avançados», ou seja, com atraso no desenvolvimento humano], PPTE [países pobres extremamente endividados], etc.). Com a crise financeira de 2008 e suas repercussões, o trabalho do CADTM estendeu-se progressivamente às dívidas públicas dos países do Norte, sem deixar cair a exigência de anulação das dívidas dos países do “Terceiro Mundo”. Mostrámos como o “sistema da dívida”, no seu conjunto, tanto serve para submeter os povos do Sul como os povos do Norte. Para atacar o conjunto do “sistema da dívida”, o CADTM desenvolveu além disso nos últimos 5 anos uma nova frente de acção e de reflexão sobre o problema das dívidas privadas ilegítimas, como sejam as dívidas ligadas ao microcrédito no Sul, das quais são as mulheres as primeiras vítimas, as dívidas dos camponeses, dos estudantes, das famílias expulsas das suas habitações pelos bancos, etc. O conceito de “dívidas ilegítimas” permite englobar ao mesmo tempo as dívidas do Sul e do Norte, públicas e privadas.»

Recordo que o CADTM está implantado na sua maior parte nos países ditos «em desenvolvimento»: 15 países da África, 6 países da América Latina e Caribe, 2 países da Ásia (Índia e Paquistão). No que diz respeito aos países mais industrializados, o CADTM está presente em 6 países da Europa e no Japão.


Notas :

[1Na Bélgica, as pessoass colectivas que contribuíram para a fundação em 1990 do CADTM vierem de horizontes variados e provam o carácter plural do CADTM: movimentos de educação popular (Equipas Populares – movimento de educação permanente ligado ao Movimento Operário Cristão –, Fundação Joseph Jacquemotte, Fundação Léon Lesoil, União dos Progressistas Judeus da Bélgica), sindicatos (dois regionais da CGSP, Central Sindical dos Serviços Públicos – a de Liège e a de Limbourg –, o conjunto do sector de Ensino da CGSP, a regional de Anvers do ACOD Onderwijs, a Federação dos Metalúrgicos da Província de Liège), várias ONG (Povos Solidários, GRESEA, Fórum Norte-Sul, Centro Tricontinental, Socialismo Sem Fronteiras, FCD Solidarité Socialiste, Oxfam Solidarité, Centro Nacional de Cooperação para o Desenvolvimento), comités de solidariedade (Comité Mennan Men-Haïti, Comité Amérique centrale de Charleroi), movimentos para a paz (Coordenadora nacional de acção para a paz e a democracia – CNAPD –, VREDE), partidos (Partido Operário Socialista, Partido Comunista) e a associação feminina «Refuge pour femmes battues et leurs enfants». O Partido Operário Socialista (mais tarde LCR), secção belga da IV Internacional, desempenhou um papel importante na criação e impulsão do CADTM, num quadro de pluralismo muito claro.

[2Eric Toussaint, tese de doutoramento em Ciências Políticas apresentada em 2004 nas Universidades de Liège e de Paris VIII, Enjeux politiques de l’action de la Banque mondiale et du Fonds monétaire international envers le tiers-monde, 2004. Acessível em linha. Ver também aqui.

[3Ver Ernest Mandel, «La dynamique infernale de la spirale de l’endettement», Inprecor, avril 1986. Ver Voir aqui (em francês e em castelhano).

[4Ver textos fundadores do CADTM (em francês, castelhano e inglês)

[6Ver «Ce qui est tout à fait intolérable, c’est la montée terrible des inégalités, au Sud de la planète et au Nord aussi», «Le CADTM et la coopération au développement: Analyse, critiques et perspectives - Partie 1 sur 2» parte 1 e parte 2.

Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

Benjamin Lemoine

é investigador em Sociologia no CNRS, especializado na questão da dívida pública e dos laços entre os Estados e a ordem financeira. Foi publicada uma versão abreviada desta conversa no número especial «Capital et dettes publiques», da revista Savoir / Agir n.° 35, Março de 2016.