Cerca de 800 milhões de pessoas passam fome em todo o Mundo, a maioria delas nos países ditos «em desenvolvimento». Ora nesses países, todos os anos, 250 mil milhões de euros de receitas fiscais desaparecem nos paraísos fiscais, ou seja, 6 vezes a quantia anualmente necessária para vencer a fome daqui até 2025. [1]
«Calcula-se que 85 % a 90 % destes haveres [fundos privados colocados em paraísos fiscais] pertencem a menos de 10 milhões de pessoas – ou seja, 0,014 % da população mundial –, e que pelo menos um terço desses haveres pertencem às 100 000 famílias mais ricas do mundo, pesando cada uma delas pelo menos 30 milhões de dólares». [2] Não restam dúvidas: é aos mais afortunados que faz proveito a redução das receitas fiscais por fraude, as quais perpetuam e agravam as desigualdades.
A razão levaria a pensar que os mais ricos, que gozam dos benefícios das suas sociedades, deveriam contribuir para uma redistribuição em proveito dos mais pobres, por via dos impostos sobre os benefícios dessas sociedades. Ora a mais-valia extraída graças à exploração da força de trabalho evapora-se em territórios paradisíacos para a oligarquia que governa e legisla. Trata-se de um roubo organizado em grande escala – ilegítimo e não conforme à ideia de desenvolvimento humano – duma riqueza que pertence àquelas e àqueles que a criaram com o seu trabalho e que deveria financiar os serviços públicos. De facto, o imposto sobre os rendimentos que escapa ao fisco e por isso não é redistribuído para o bem comum permite ao capitalista optimizar a mais-valia extraída pelo trabalho e procurar meios de a privatizar na sua totalidade.
A fraude entrava o desenvolvimento
A fraude e a evasão fiscal, praticadas nomeadamente pelas multinacionais com a ajuda das grandes firmas de auditoria (os famosos «Big four»: Deloitte Touche Tohmatsu, Ernst & Young, KPMG et Price Water House Coopers), são um verdadeiro flagelo que entrava o real desenvolvimento das populações empobrecidas por essas práticas. Esta hemorragia de capitais impede a construção de hospitais e a contratação de médicos com salários decentes; o equipamento de escolas na medida necessária e o recrutamento de professores, afim de diminuir o número de alunos por turma; a implantação de redes de água potável, etc.
Para o período de 2008-2012, a Global Financial Integrity calcula que, em 31 países em desenvolvimento, as saídas ilícitas de fundos foram superiores às despesas públicas de saúde e que, em 35 países em desenvolvimento, foram superiores às despesas públicas de ensino [3]. No seu relatório Illicit Financial Flows from Developing Countries: 2004-2013, a mesma organização verificou que os países ditos em desenvolvimento e as economias emergentes perderam 7800 mil milhões de dólares (7 002 450 000 000 euros) nos fluxos financeiros ilícitos de 2004 a 2013, com saídas ilícitas progressivamente mais elevadas, aumentando a um ritmo médio de 6,5 % ao ano – quase duas vezes maior que o ritmo de crescimento do PIB mundial!
Crescimento das desigualdades
Grande parte das necessidades gritantes, indispensáveis ao avanço de um desenvolvimento real, foram abandonadas em proveito duma oligarquia que não pára de enriquecer. O programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) indica que 8 % da população mundial mais rica embolsa metade dos rendimentos totais, indo a outra metade para os restantes 92 % [4]. As riquezas concentradas nas mãos dos 1 % mais ricos passaram de 44 % das riquezas mundiais em 2010 para 48 % em 2014. No espaço de 20 anos, as desigualdades de rendimento aumentaram nos países em desenvolvimento. [5]
A fraude fiscal tem de ser levada a sério e merece uma justiça que castigue os culpados. É ela um dos factores que entrava o desenvolvimento dos países empobrecidos e agrava o «sistema da dívida». No seu relatório, o perito independente encarregado de estudar a dívida na ONU, M. Juan Pablo Bohoslavsky, insiste na necessidade de combater os fluxos financeiros considerados ilícitos, que «contribuem para a acumulação de uma dívida insustentável, pois a insuficiência das receitas públicas pode levar os governos a recorrerem a empréstimos externos». Os fluxos ilícitos de capitais privam assim o Estado da possibilidade de financiar actividades indispensáveis à eliminação da pobreza e à satisfação dos direitos económicos, sociais, culturais, civis e políticos.
No seguimento deste relatório foi aprovada no Conselho dos Direitos Humanos da ONU uma resolução sobre a evasão fiscal e sobre a necessidade de devolver os haveres desviados dos países ditos «em desenvolvimento». Nesta votação, ocorrida a 24/03/2016, nem um só país europeu votou a seu favor. Bélgica, França, Alemanha, Holanda, Suíça, Reino Unido, Portugal, Albânia, Eslovénia, Letónia, Geórgia, República da Coreia, ex-República jugoslava da Macedónia, México e Panamá abstiveram-se.
Fontes e referências: Artigo de opinião publicado em 1/09/2016 em Politis.fr
Tradução: Rui Viana Pereira
Ver em linha : Comité para a Anulaçao da Divida Publica Portuguesa
[1] «Ao todo, o montante das fugas de recursos para o desenvolvimento, que leva em conta, além das receitas fiscais perdidas, os ganhos que poderiam ser feitos por meio dos investimentos em falta, ronda entre os 250 mil milhões e os 300 mil milhões de dólares por ano.» Ver A. Cobham, «UNCTAD study on corporate tax in developing countries», Unacounted.org (2015). Ver também a petição em linha.
[2] Ver Étude finale sur les flux financiers illicites da ONU, p. 6, disponível em francês no site da ONU.
[3] Ver J. Spanjers e H. Foss, «Illicit financial flows and development indices: 2008-2012», Global Financial Integrity, p. 30-33 (2015).
[4] Ver PNUD, «Humanity Divided: Confronting Inequality in Developing Countries», p. xi do texto inglês (New York, 2013).
[5] Ver «Wealth: having it all and wanting more», relatório temático da Oxfam, p. 2, 3 e 7 (2015).
membro do CADTM (www.cadtm.org) e da PACD (Plataforma de auditoria cidadã da dívida em Espanha, http://auditoriaciudadana.net/). Autor, com Fátima Martín, do livro Construcción europea al servicio de los mercados financieros, Icaria Editorial 2016; é também co-autor da obra La Dette ou la Vie (Aden-CADTM, 2011), livro colectivo coordenado por Damien Millet e Eric Toussaint que recebeu o Prémio do Livro Político na Feira do Livro Político de Liège em 2011.