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Parte 12 da série: Centenário da Revolução russa e do repúdio das dívidas
A reafirmação do repúdio das dívidas é bem sucedida
por Eric Toussaint
20 de Outubro de 2017

Antes do início da Conferência de Génova, a Rússia soviética conseguiu assinar tratados bilaterais com a Polónia, as repúblicas bálticas, a Turquia, a Pérsia … Além disso conseguiu estabelecer um acordo comercial com a Grã-Bretanha. Esse acordo, assinado em 1922, validava as leis soviéticas de nacionalização aos olhos dos tribunais britânicos, impedindo que as empresas que transaccionavam com a Rússia fossem molestadas. [1]

Durante a Conferência de Génova, a Rússia também foi bem sucedida na assinatura de um tratado com a Alemanha, graças ao qual ambas as partes renunciaram a ser ressarcidas.

Seria de esperar que o malogro da Conferência de Génova e da de Haia levassem a um endurecimento da posição das potências capitalistas em relação a Moscovo. Na realidade sucedeu o contrário. Não restam dúvidas de que o Governo soviético calculou bem. Os vários países capitalistas, cada qual por si, estimou que mais valia estabelecer acordos com Moscovo, já que o mercado russo oferecia um grande potencial, assim como os recursos naturais do país. Cada capital, sob pressão das empresas privadas locais, quis assinar acordos com Moscovo, a fim de impedir que as outras potências tirassem partido do mercado russo.

Em 1923-1924, apesar do malogro da Conferência de Génova, o Governo dos Sovietes foi reconhecido de jure pela Inglaterra, Itália, países escandinavos, França, Grécia, China e mais uns quantos países. Em 1925 juntou-se-lhes o Japão.

Paris reduziu fortemente as suas exigências. Em França, um decreto datado de 29/Julho/1920 já tinha criado uma comissão especial para liquidar os negócios russos, tendo por missão «liquidar e recuperar todos os fundos do antigo Estado russo, qualquer que seja a sua origem». Seis dias antes do reconhecimento do Governo dos Sovietes, a 24/Outubro/1924, o Governo francês dissolveu essa comissão. Uma verdadeira vitória para Moscovo.

Alguns meses antes, o Governo trabalhista britânico tinha assinado um acordo com a URSS, segundo o qual os Britânicos aceitavam as reclamações soviéticas relativas aos danos causados pela intervenção britânica na guerra civil entre 1918 e 1920. [2] No entanto Lloyd George tinha declarado em Génova que isso era impensável. O Governo britânico prometia ainda conceder, sob determinadas condições, garantias para a emissão de um empréstimo aos soviéticos no mercado financeiro de Londres.

Dois anos passados sobre o falhanço da Conferência de Génova, e ao mesmo tempo que a URSS mantinha o repúdio das dívidas, o Governo britânico prestava-se a dar a sua garantia para um empréstimo aos soviéticos! Daí que o dirigente soviético Kamenev tenha escrito no Pravda de 24/09/1924: «O tratado com a Inglaterra constitui uma base efectiva para o reconhecimento expresso da nossa nacionalização da terra e das empresas, para o repúdio das dívidas e todas as outras consequências da nossa revolução.» [3]

Por fim, quando os conservadores britânicos regressaram ao poder, daí a uns meses, recusaram ratificar esse tratado, mas apesar disso uma empresa britânica importante empenhou-se em investir nas minas de ouro, renunciando oficialmente a qualquer pedido de indemnização pela nacionalização que tinha sofrido em 1918.

A partir de 1926, apesar do repúdio das dívidas, os bancos privados europeus e os governos começaram a conceder empréstimos à URSS

A 26/06/1926 a URSS assinou um acordo de crédito com os bancos alemães. Em Março de 1927 foi a vez do banco Midland de Londres conceder um crédito de 10 milhões de libras.

Em Outubro de 1927 o município de Viena concedeu um crédito de 100 milhões de xelins. Em 1929 a Noruega cedeu um crédito de 20 milhões de coroas.

Os dirigentes republicanos dos EUA espumavam. O secretário de Estado Kellogg denunciou a atitude conciliadora dos Europeus, no seu discurso de 14/Abril/1928, perante a Comissão Nacional Republicana: «Nenhum Estado foi capaz de obter o pagamento das dívidas contraídas pela Rússia sob os governos precedentes, ou de ressarcir os seus cidadãos pelas propriedades confiscadas. Tudo leva a crer que o reconhecimento dos Sovietes e a abertura de negociações irão encorajar os actuais senhores da Rússia a prosseguir a política de repúdio e confisco …» [4]

Por fim, os EUA, em Novembro de 1933, sob a presidência de F. Roosevelt, reconheceram de jure a URSS. A 13/Fevereiro/1934, o Governo dos EUA criou o Export and Import Bank, a fim de financiar o comércio com a União Soviética. Alguns meses mais tarde, a França, para não se ver excluída do mercado soviético, propôs por sua própria iniciativa a concessão de crédito à URSS, para que esta pudesse comprar produtos franceses.

Alexander Sack, opositor ao repúdio das dívidas e ferozmente anti-soviético, fecha o seu estudo sobre as reclamações diplomáticas contra os soviéticos com frases que indicam claramente que é possível repudiar dívidas sem ser votado ao isolamento e ao fracasso, antes pelo contrário:

«Por ocasião do vigésimo aniversário do regime soviético, as reclamações estrangeiras que lhe eram dirigidas mostram-se tristemente petrificadas, senão abandonadas. A União Soviética gaba-se de ser actualmente um dos países mais industrializados; apresenta uma balança comercial positiva; ocupa o segundo lugar na lista mundial de produtores de ouro. O seu Governo é hoje em dia universalmente reconhecido e são-lhe concedidos créditos comerciais, se assim o desejar. Apesar disso, a União não reconheceu nem pagou nenhuma das dívidas resultantes dos seus decretos de repúdio, de confisco e de nacionalização.» [5]

Conclusão :

Este estudo centrou-se no repúdio das dívidas pelo Governo soviético. Nele se mostra que essa decisão remonta a um compromisso assumido aquando da revolução de 1905. Foi analisado o contexto internacional: os tratados de paz, a guerra civil, o bloqueio, a Conferência de Génova e os numerosos acordos de empréstimo que se seguiram, apesar de ser mantido o repúdio das dívidas passadas.

Por falta de espaço, não abordei a evolução do regime soviético: o estrangulamento progressivo da crítica, a degeneração burocrática e autoritária do regime, [6]
as políticas catastróficas no âmbito agrícola (nomeadamente a colectivização à força feita por Estaline) e no âmbito industrial, a imposição por Estaline, nos anos 1930, de um regime de terror. [7]

Esta evolução trágica mostra mais uma vez que não basta repudiar as dívidas odiosas para alcançar a solução dos múltiplos problemas sociais. Quanto a isso não restam dúvidas. Para que o repúdio das dívidas seja realmente útil, é necessário que faça parte de um conjunto coerente de medidas políticas, económicas, culturais e sociais que permitam fazer a transição para uma sociedade livre das diversas formas de opressão que sofre há milénios.

Reciprocamente, é muito difícil tentar começar tal transição e ao mesmo tempo querer pagar as dívidas odiosas herdadas do passado. Exemplos históricos não faltam. Veja-se o caso da Grécia: a submissão aos ditames dos credores desde 2010 e os efeitos terríveis da capitulação em Julho de 2015, consumada por um governo que pretendia prosseguir o reembolso da dívida a fim de obter a sua redução.

Epílogo :

Em 1997, seis anos após a dissolução da URSS, Boris Yeltsin assinou um acordo com Paris para pôr termo ao contencioso sobre os títulos russos. Os 400 milhões de dólares pagos pela Federação da Rússia à França em 1997-2000 representam apenas cerca de 1 % dos montantes exigidos à Rússia Soviética pelos porta-vozes dos credores franceses representados pelo Estado. [8] Há ainda a sublinhar que o acordo entre a Rússia e o Reino Unido, de 15/Julho/1986, permitiu a indemnização dos portadores britânicos à razão de 1,6 % do valor actualizado dos títulos.

Estas taxas de indemnização são ridículas e mostram mais uma vez que um país pode repudiar a sua dívida.

Em Agosto de 1998, por causa da crise asiática e dos efeitos da restauração capitalista, a Rússia suspendeu unilateralmente o pagamento da dívida durante seis semanas. A dívida pública externa elevava-se a 95 mil milhões de dólares, devidos a bancos privados estrangeiros (30 mil milhões devidos aos bancos alemães e 7 mil milhões aos bancos franceses, entre os quais o Crédit Lyonnais) e o resto era devido sobretudo ao Clube de Paris e ao FMI. A suspensão total do pagamento, seguida duma suspensão parcial nos anos seguintes, levou os vários credores a aceitarem uma redução que oscilou entre os 30 e os 70 %, consoante os casos. A Rússia, que estava em recessão antes de decretar a suspensão do pagamento, teve a seguir uma taxa de crescimento anual na ordem dos 6 % (período de 1999-2005). Joseph Stiglitz, que entre 1997 e 2000 foi economista chefe do Banco Mundial, sublinha: «Empiricamente existem muito poucas provas a favor da ideia de que uma suspensão de pagamento implique um longo período de exclusão no acesso aos mercados financeiros. A Rússia conseguiu voltar a obter crédito nos mercados financeiros dois anos após a suspensão de pagamento (de 1998), que foi decretada unilateralmente, sem consulta prévia aos credores. […] Por isso, logo aí, a ameaça de ver fechar-se a torneira do crédito não é realista.» [9]

Resumindo em duas frases: é possível repudiar ou suspender unilateralmente o pagamento da dívida e relançar a economia. Não sendo uma condição suficiente para resolver todos os problemas, revela-se ao mesmo tempo indispensável e útil em certas circunstâncias.

Agradecimentos : O autor agradece a ajuda, a revisão e as sugestões de: Pierre Gottiniaux, Nathan Legrand, Brigitte Ponet e Claude Quémar. O autor é inteiramente responsável pelos eventuais erros contidos neste trabalho.

Parte 1: Rússia: O repúdio das dívidas no cerne das revoluções de 1905 e 1917
Parte 2: Centenário da Revolução russa e do repúdio das dívidas
Parte 3: A revolução russa, o repúdio das dívidas, a guerra e a paz
Parte 4: A revolução russa, o direito dos povos à autodeterminação e o repúdio das dívidas
Parte 5: A imprensa francesa a soldo do czar
Parte 6: Os títulos de dívida russa após o repúdio
Parte 7: O jogo diplomático à volta do repúdio das dívidas russas
Parte 8: Em 1922, nova tentativa de submissão dos sovietes às potências credoras
Parte 9: O contra-ataque soviético: o Tratado de Rapallo de 1922
Parte 10: Em Génova (1922), as contra-propostas soviéticas face às imposições das potências credoras
Parte 11: Dívida: Lloyd George versus soviéticos
Parte 12 : A reafirmação do repúdio das dívidas é bem sucedida


Notas :

[1O artigo 9º do acordo anglo-russo reza assim: «O Governo britânico declara que não intentará nenhuma acção com o fim de arrestar ou tomar posse de todo e qualquer ouro, fundos, títulos ou mercadorias e qualquer outro artigo que não seja identificável como propriedade do Governo britânico, que seja exportado da Rússia em pagamento das importações ou como garantia de tais pagamentos, ou qualquer outra propriedade mobiliária ou imobiliária que tenha sido adquirida pelo Governo soviético russo em território do Reino Unido.» Citado por Sack, p. 301. Ver também a este propósito Carr, T. 3, p. 360.

[2Sack, p. 306-307.

[3Sack, nota 209, p. 307.

[4Sack, p. 315.

[5Sack, p. 321-322.

[6Analiso tudo isso no estudo: Éric Toussaint, «Lénine et Trotsky face à la bureaucratie – Révolution russe et société de transition», publicado em 21/01/2017, http://www.europe-solidaire.org/spip.php?article37007

[7O destino dos membros da delegação que representou o Governo soviético em Génova ilustra bem a evolução dramática do regime e os efeitos da política encabeçada por Estaline. A delegação era composta por: Georges Tchitcherine, Adolph Joffé, Maxime Litvinov, Christian Rakovski, Leonid Krassine. Tirando o último, que faleceu de doença em 1926 em Londres, o que aconteceu aos restantes é significativo.

Georges Tchitcherine caiu em desgraça em 1927-1928.

Adolph Joffé suicidou-se em 16/11/1927, deixando uma carta de despedida a Trotsky que é um verdadeiro testamento político. O seu enterro é uma das últimas grandes manifestações públicas «autorizadas» da oposição anti-estalinista.

Maxime Litvinov, a 3/05/1939, foi demitido das suas funções em circunstâncias violentas: a GPU cercou o seu ministério, os seus assistentes foram espancados e interrogados. Litvinov era judeu e fervoroso partidário da segurança colectiva; a sua substituição por Molotov aumentou a margem de manobra de Estaline e facilitou as negociações com os Nazis. Destas resultaria o pacto germano-soviético, em Agosto de 1939, que teve consequências funestas. Após o ataque nazi de 1941 contra a URSS, Litvinov regressa ao serviço.

Christian Rakovski, camarada de Trotsky desde antes da Primeira Guerra Mundial e que se opunha à burocracia desde o início dos anos 1920, foi executado em 1941 pela GPU, por ordem de Estaline.

[8Ver no sítio do senado francês: «Accords relatifs au règlement définitif des créances entre la France et la Russie antérieures au 9 mai 1945», http://www.senat.fr/seances/s199712/s19971210/sc19971210010.html

[9Stiglitz in Barry Herman, José Antonio Ocampo, Shari Spiegel, Overcoming Developing Country Debt Crises, OUP Oxford, 2010, p. 49.

Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.