Em 2019, o Banco Mundial (BM) e o FMI fazem 75 anos. Estas instituições financeiras internacionais (IFI), criadas em 1944 e dominadas pelos EUA e seus aliados, agem sistematicamente contra os interesses dos povos, concedendo empréstimos aos estados com o fim de influir nas suas políticas. O endividamento externo foi e continua a ser utilizado como instrumento de submissão dos devedores.
Desde a sua criação, o FMI e o BM violaram pactos internacionais relativos a direitos humanos e nunca hesitaram, nem hesitam, em apoiar ditaduras.
É urgente fazer uma nova forma e descolonização, para sair do impasse em que as IFI e seus principais accionistas encurralaram o mundo. É preciso construir novas instituições internacionais.
Publicamos aqui uma série de artigos de Éric Toussaint, que descreve a evolução do Banco Mundial e do FMI desde a sua criação. Estes artigos foram extraídos do livro Banco Mundial. o Golpe de Estado Permanente, que pode ser consultado gratuitamente em francês, em castelhano ou em inglês.
Em julho de 1981, Alden W. Clausen, presidente do Bank of America, chega à presidência do Banco Mundial. O Bank of America é um dos grandes bancos norte-americanos mais expostos no caso do não pagamento da dívida pelos PED. Ronald Reagan, ao colocar Alden W. Clausen na presidência do Banco Mundial, dá um sinal forte aos bancos dos Estados Unidos (e aos outros banqueiros privados do mundo): os seus interesses serão certamente tidos em consideração.
Os bancos norte-americanos estavam mais expostos a riscos do que os bancos euro- peus e japoneses: proporcionalmente eram eles quem mais emprestava. A crise de 1982 atingiu mais a América Latina, área privilegiada de actuação dos bancos norte-americanos. Os montantes que emprestavam, comparados ao capital que possuíam, eram enor- mes e imprudentes. Os bancos norte-americanos tinham emprestado, no seu conjunto, uma soma correspondente a 152 % do seu capital próprio. Entre eles, os quinze maiores bancos tinham emprestado uma soma equivalente a 160 % do seu capital. Os nove primeiros, entre os quais o Bank of America, tinham empenhado o equivalente a 229 % dos seus capitais próprios.
Quando o México, em agosto de 1982, anunciou que não tinha mais condições para efectuar os reembolsos, os grandes banqueiros públicos reuniram-se para salvar os banqueiros privados. O quarteto reunido para definir a estratégia era composto por Jacques de Larosière, director-geral do FMI, Paul Volcker, presidente da Reserva Federal dos Estados Unidos (FED), Gordon Richardson, dirigente do Banco de Inglaterra e Fritz Lentwiler, presidente do Banco de Compensações Internacionais (BCI). O presidente do Banco Mundial não esteve presente nas primeiras reuniões.
A estratégia adoptada pode resumir-se da seguinte maneira:
A crise deve ser tratada como resultante de um problema de liquidez de curta
duração e deve ser solucionada pelo FMI e pelos grandes bancos centrais;
É dada prioridade às dívidas dos três países mais endividados: Brasil, México e Argentina;
As dívidas privadas devem ser convertidas em dívidas públicas dos países endi- vidados;
Os credores devem agir colectivamente e os países endividados devem ser trata- dos separadamente, sendo impedidos de formarem uma frente comum (dividir para reinar);
Os países endividados devem, a qualquer preço, manter o pagamento dos juros da dívida;
Os credores não darão o seu acordo à anulação ou à redução das taxas de juro, podendo apenas admitir o reescalonamento dos pagamentos;
Novos empréstimos só serão concedidos pelos bancos privados na condição de os países endividados envolvidos se comprometerem a aplicar políticas de austeridade como negociado com o FMI.
Essa estratégia, grosso modo, foi mantida ao longo dos anos oitenta, porém teve de ser alterada para reflectir a amplitude da crise e o comportamento dos bancos privados. Esses últimos, contrariamente ao último ponto da estratégia acima mencionada, interromperam quase todos os empréstimos e contentaram-se em receber os reembolsos, o que provocou um aumento exponencial dos seus lucros. Os lucros que o Citibank retirou do Brasil, em 1983 e 1984, representam por si só 20 % dos lucros totais obtidos pelo banco. Segundo Karin Lissakers (que mais tarde se tornou directora-executiva dos Estados Unidos no FMI), os dividendos distribuídos pelos maiores bancos norte-americanos, em 1984, são superiores ao dobro dos dividendos distribuídos em 1980 [1]. De facto, o FMI e outros banqueiros públicos, mencionados mais acima, aos quais o Banco Mundial se juntou posteriormente, comportam-se como autênticos representantes da alta finança internacional privada, adoptando uma estratégia dura em relação aos países endividados, com o objectivo de protegerem os bancos privados ou, por outras palavras, o grande capital internacional. Tornaram-se oficiais de justiça ao serviço dos bancos privados.
A própria Karin Lissakers ressalta: «Em certo sentido o FMI foi encarregado pela comunidade de credores de colocar os devedores sobre pressão para evitar a interrupção de pagamentos.»
Jacques Polak, que foi director do departamento de investigação do FMI e depois director-executivo do FMI pela Holanda, escreveu o seguinte, referindo-se à estratégia descrita acima:
«Na segunda metade dos anos oitenta, os bancos comerciais começaram a explorar essa estratégia. Não temendo tornarem-se vítimas de uma crise generalizada da dívida, os bancos começaram a dar conta que poderiam insistir em condições favoráveis para si mesmos, bloqueando o acesso dos países aos créditos do Fundo (e a outros créditos re- lacionados com acordos com o FMI). Esses créditos foram então cada vez mais utiliza- dos pelos bancos comerciais para cobrirem as suas próprias dívidas.» [2]
As propostas do FMI podem ser estendidas ao Banco Mundial, que se comportou exactamente do mesmo modo.
Os bancos dos Estados Unidos saem muito bem do negócio. Os bancos europeus também: obtêm reduções consideráveis de impostos, conseguindo enormes provisões destinadas a amortizarem eventuais perdas sobre os créditos. Além disso, os bancos europeus e japoneses beneficiam da desvalorização do dólar, que faz diminuir o peso das carteiras de créditos em dólares devidos pelos países endividados.
As autoridades dos países endividados colocam sob responsabilidade do Tesouro público (por conseguinte, a cargo dos cidadãos) as dívidas externas das empresas priva- das dos seus países. No caso emblemático da Argentina, as filiais das multinacionais que se endividaram junto das suas casas-mãe conseguem que as suas dívidas sejam pagas pelo Tesouro público argentino! [3]
Assim sendo, os governos dos PED submetem-se às pressões conjuntas dos capita- listas locais, das multinacionais instaladas nos seus países e das grandes agências públi- cas do Norte, elas próprias ao serviço dos grandes bancos privados do Norte.
Essas mesmas grandes agências públicas, em particular, o FMI e o Banco Mundial, substituem progressivamente os bancos privados como credores dos países em maiores dificuldades. Nesses casos, os riscos e custos são também transferidos do sector privado para o sector público. A Tabela 11 mostra que os bancos privados se desembaraçam dos países endividados que passam por dificuldades para efectuarem o reembolso (os seus créditos junto a esses países passam de 278 mil milhões de dólares em 1982, para 200 mil milhões em 1992, ou seja, uma redução de 28 %). Ao mesmo tempo, os credores oficiais (FMI, Banco Mundial, Estados) assumem a continuidade desse processo (os seus créditos passaram de 115 mil milhões para 252 mil milhões entre 1982 e 1992, ou seja, um aumento de 120 %).
Sob recomendação ou influência do FMI e do Banco Mundial, os países endividados utilizam os empréstimos que recebem dos credores públicos (FMI, Banco Mundial, Estados) para reembolsarem os bancos privados, que evitam emprestar-lhes mais dinheiro. Acima de tudo, esperam ser reembolsados na íntegra.
Porém, os empréstimos dos credores públicos, além de aumentarem o stock da dívida, que terá sempre de ser reembolsado, não chegam para reembolsar as dívidas colossais devidas aos bancos, porque as taxas de juro são cada vez mais elevadas. A respeito das taxas de juro exorbitantes pagas pelos PED, o PNUD esclarece no Relatório sobre o Desenvolvimento humano 1992:
«Durante os anos oitenta, quando a taxa de juro era de 4 % nos países industrializados, os países em desenvolvimento suportavam uma taxa de juro efectiva de 17 %. Numa dívida de mais de um bilião de dólares, isso representa um aumento de 120 mil milhões de dólares, a que se juntam as transferências líquidas da dívida que são negativas e atingem os 50 mil milhões de dólares em 1989.» [4]
A questão das transferências líquidas negativas, mencionada pelo relatório do PNUD, é fundamental, merecendo por isso uma análise específica.
O Debate interno no Banco Mundial sobre o cálculo da transferência líquida
Em 1984, o debate sobre essa questão provoca um verdadeiro rebuliço no Banco Mundial. De facto, nesse ano, uma equipa de economistas do Banco Mundial, dirigida por Sidney Chernick e Basil Kavalsky, produz um relatório que questiona a maneira como o Banco apresenta os fluxos da dívida externa [5]. Até então, o Banco só considerava os fluxos líquidos sobre a dívida (net flows on debt), definidos como a diferença entre o capital emprestado e o reembolsado, sem contabilizar os juros ... Essa equipa de economistas adopta outra posição ao declarar que é preciso incluir os juros reembolsados no cálculo, com vista a apresentar o problema da dívida mais de acordo com a realidade.
O quadro a seguir permite compreender a questão em debate.
A Tabela 12 apresenta a evolução do montante crescente da dívida externa total dos PED entre 1979 e 1987. Se adoptarmos a abordagem tradicional do Banco Mundial (portanto, sem incluir os juros), a transferência é positiva ao longo de todo o período considerado. Apresentando desta forma as transferências, como é possível dar conta que uma crise da dívida tenha eclodido em 1982 e tenha continuado?
Em contrapartida, se adoptarmos a abordagem defendida por essa equipa de economistas do Banco, o resultado é totalmente diferente. De facto, apercebemonos que a transferência é positiva até 1982 e que se torna negativa a partir de 1983. É totalmente justificável calcular a transferência líquida sobre a dívida retirando dos montantes emprestados a parcela reembolsada a título de amortização do capital e dos juros pagos. No entanto, tendo em conta que a crise foi provocada pela alta das taxas de juro, só podemos visualizá-la e compreendê-la se considerarmos o pagamento dos juros.
Assim que o relatório chega à direcção do Banco, os principais dirigentes reagem negativamente. Ernest Stern, um dos principais quadros superiores do Banco e vice-presidente do Departamento de operações do Banco, envia um fax em que declara: «Não estou de acordo em divulgar um documento que centra a análise sobre a questão da transferência líquida» [6]. Segundo Stern, está fora de questão apresentar o pagamento de juros como um peso, trata-se apenas de uma remuneração do capital emprestado. Apenas um detalhe.
Após uma reunião da Reserva Federal em Nova Iorque, para a qual o Banco foi convidado, Ernest Stern redige um memorando destinado à direcção do Banco no qual declara: «a questão das transferências líquidas foi destacada e objecto de uma verdadeira avalanche de comentários negativos, por parte de diversos governos e de outros participantes. O Banco Mundial também foi atacado por diversos comentadores por ter tocado no assunto» [7]. Está fora de questão mexer nesse tabu.
Essa atitude defensiva demonstra bem que tocamos num ponto particularmente sensível e importante. Só podemos avaliar o que representou o reembolso da dívida se considerarmos o reembolso dos juros da dívida, mais o reembolso do capital. O quadro seguinte aplica o procedimento anterior aos casos da América Latina e das Caraíbas. Se mantivermos a posição tradicional do Banco, constataremos apenas um leve problema de transferência negativa referente ao ano de 1983. No entanto, tendo em conta os juros pagos, deparamo-nos com a situação real: as transferências são massivamente negativas a partir de 1983.
De acordo com certos cálculos, entre 1982 e 1985, as transferências da América Latina para os credores representaram 5,3 % do produto interno bruto (PIB) do conti- nente. O peso é enorme: comparativamente, as reparações impostas à Alemanha pelo Tratado de Versalhes atingiram 2,5 % do PIB alemão entre 1925 e 1937. [8]
Para a direcção do Banco, o debate interno sobre a transferência líquida afecta directamente os seus interesses enquanto credor. O Banco (tal como o FMI) quer manter a qualquer custo o seu estatuto de credor privilegiado, porque isso permite-lhe ser reembolsado antes de os outros credores (credores privados ou bilaterais). Ernest Stern explica, numa nota interna destinada à formulação de um discurso que o presidente do Banco pronunciará no fórum económico de Davos, em janeiro de 1984, que se deve evitar pedir aos bancos privados a manutenção de transferências líquidas positivas (incluindo o pagamento de juros) porque isso poderá voltar-se contra o Banco Mundial. De facto, essa exigência poderia também afectar o Banco. Portanto, convém iludir o assunto falando apenas de empréstimos líquidos (ou fluxo líquido sobre a dívida), isto é, excluir do cálculo o reembolso dos juros. É o que comprova este extracto da nota interna: «Se os bancos comerciais são responsáveis pela manutenção de transferências líquidas [...] então estaremos a dizer que [...] o próprio Banco Mundial pode num futuro próximo ser responsabilizado por não manter transferências líquidas positivas. Estaríamos a contradizer que o que distingue o Banco Mundial dos outros bancos, e justifica um tratamento distinto em termos de reescalonamento, é que nós mantemos empréstimos líquidos – não transferências líquidas. Se aceitarmos o argumento da transferência líquida no discurso público presidencial, estaremos a enfraquecer muito a nossa posição de rejeitar tentativas de reescalonamento quando as transferências líquidas se tornarem negativas.» [9]
A parte final do excerto mencionado revela dois pontos importantes: 1) o dirigente do Banco Mundial já previa que a transferência líquida entre o Banco e os seus clientes seria negativa; 2) Consequentemente, teme que o Banco nunca mais possa recusar o reescalonamento dos montantes que lhe são devidos.
O quadro seguinte mostra as transferências feitas sobre as dívidas contraídas junto do Banco. Se aplicarmos o método defendido por Ernest Stern, as transferências permanecem positivas. Se aplicarmos a abordagem alternativa, a transferência torna-se negativa a partir de 1985. [10]
Uma razão adicional motiva o Banco na sua recusa em falar de transferência líquida negativa. Nos anos oitenta, os países de rendimento médio como o México, o Brasil, a Argentina, a Venezuela e a Jugoslávia são os principais países afectados pela crise da dívida. Também são os principais clientes do Banco Mundial. Esses países financiam o Banco com o pagamento de juros (que se somam ao reembolso do capital emprestado).
De facto, o Banco Mundial obtém resultados positivos graças aos juros pagos pelos países de rendimento médio que recorreram aos seus serviços. O países ricos não financiam o Banco Mundial (BIRD), que contrai empréstimos junto dos mercados financeiros. O Banco Mundial empresta aos países pobres através do seu braço financeiro, a AID. Em suma, são os países endividados de rendimento médio que permitem que o Banco empreste aos países pobres com baixas taxas de juro e sem incorrer em perdas. É de vital importância para o Banco dissimular essa realidade, porque, de contrário, os países com rendimento médio poderiam exigir o direito de opinar a respeito da política do Banco em relação aos países mais pobres. Ora, a definição dessa política é uma prerro- gativa dos países ricos que dirigem o Banco.
Terrorismo intelectual no seio do Banco Mundial
Segundo os historiadores do Banco Mundial, um sistema de espionagem foi oficial- mente posto em prática durante a presidência de Alden W. Clausen, com o objectivo de detectar vozes dissonantes em relação à linha político-económica da direcção do Banco. Os historiadores do Banco contam o seguinte: «Entre o início de 1983 e 1986, o departamento de pessoal do Banco fez saber aos directores-executivos que o departamento económico tinha adoptado um sistema de informações para detectar as divergências do pessoal face às posições do establishement: classificavam os funcionários segundo uma ou outra escola de pensamento, favorecendo abertamente os legalistas, recrutavam através de contratos a termo para aumentarem a dependência do pessoal contratado. Os funcionários do Departamento de investigação económica (ERS) eram cada vez mais considerados uma unidade destinada a vender ideologia, do que destinada a fazer investigação objectiva.» [11]
O terrorismo intelectual e o obscurantismo neoliberal são de tal ordem que, durante o período em que Anne Krueger foi presidente e economista chefe, 29 dos 37 investiga- dores, a nível da direcção, do Departamento de investigação foram dispensados entre 1983 e 1986. [12] Mais grave ainda foi o facto de mais de uma dezena dos postos disponí- veis permaneceram desocupados durante dois anos, porque ninguém queria assumir o lugar dos dispensados.
Os historiadores do Banco explicam uma crise que surgiu entre a direcção do Banco Mundial, em particular entre Anne Krueger e o redactor-chefe da nova revista do Banco Mundial, WB Economic Review, Mark Leiserson. Este último, apoiado por todo o comité de redacção, tinha decidido publicar um artigo de Jeffrey Sachs, escrito em 1985. A vice-presidente do Banco Mundial, Anne Krueger, proibiu a publicação do artigo. O redactor-chefe demitiu-se em sinal de protesto, após ter tentado convencer a direcção do Banco a respeitar o comité de redacção. Este não foi um caso isolado, já que, meses mais tarde, o redactor-chefe de uma outra revista do Banco, WB Research Observer, demitiu-se por razões idênticas.
Sabendo que Jeffrey Sachs tinha acabado de pôr em prática um plano de ajusta- mento estrutural extremamente duro na Bolívia, colocando-se assim ao lado da ala neoliberal do Banco Mundial e do FMI, ficamos com uma ideia do grau de terrorismo intelectual e de obscurantismo exercido por Anne Krueger, economista-chefe do Banco, sobre aqueles que tentavam conceder prudentemente a palavra a pessoas externas à instituição. Anne Krueger não via com bons olhos que Jeffrey Sachs propusesse que o Banco Mundial e o FMI pedissem aos bancos privados para anularem a dívida dos países extremamente endividados. Em suma, Sachs propunha que os bancos privados fizessem um esforço, o que não era aceitável para Anne Krueger! Os historiadores do Banco reconhecem que era também exercida censura sobre a publicação mais importante do Banco, World Debt Tables. [13]
Anne Krueger abandona funções em 1987. No ano 2000, torna-se na segunda figura do FMI, onde se mantém em funções. No entanto, convém não pessoalizar o assunto. Anne Krueger agiu na qualidade de representante dos Estados Unidos, não podendo ser encarada como um acidente de percurso na história do FMI e do Banco Mundial.
Mudança radical de discurso do Banco Mundial em relação aos PED e aos seus dirigentes
Até à eclosão da crise da dívida, o Banco Mundial não poupa elogios aos dirigentes dos PED, na tentativa de os encorajar ao endividamento e à implementação de políticas recomendadas pelo Banco. Logo após a eclosão da crise, o tom muda radicalmente. O Banco critica os governos dos PED e responsabiliza-os pela crise. Evita a todo o custo fazer a mínima autocrítica.
A mudança é expressa claramente nas duas citações seguintes.
Em 1982, imediatamente após a crise, o Banco escreve no seu relatório sobre o desenvolvimento mundial (World Development Report 1982): «os países em desenvol- vimento, apesar do aumento do défice da sua balança de transacções correntes, de 40 mil milhões de dólares em 1979, para 115 mil milhões de dólares em 1981, adaptaram- se muito melhor à nova situação do que os países industrializados» [14].
Quatro anos mais tarde, o Banco afirma o contrário (World Development Report 1986): «na origem da fraca performance e dos problemas da dívida dos países em desenvolvimento está a incapacidade de se adaptarem à evolução dos acontecimentos externos, desde o início dos anos setenta, e à magnitude dos choques externos» [15].
Quando um economista do Banco, Carlos Diaz-Alejandro, faz uma análise, em 1984, atenuando a atitude dos PED na crise ao frisar que foram submetidos a fortes cho- ques externos, Ernest Stern responde secamente:
«Os países que contraíram empréstimos, entre 10 e 15 mil milhões de dólares por ano, pertencem ao clube dos grandes. Pensaram ter essa capacidade – afirmaram-no várias vezes. Tinham os olhos bem abertos e estavam cientes do que faziam naquele momento – e muito do que fizeram era seguro. No entanto, calcularam mal. Isso pode acontecer e o custo desse erro de cálculo pode ser elevado. Mas se querem pertencer a um sistema internacional aberto e interdependente, é tempo de assumirem as suas responsabilidades e de não empurrarem a culpa do fracasso para outros. Creio que partilham esta maneira de ver» [16].
Essa atitude do Banco tem vários objectivos: 1) evitar ser criticado pela política de endividamento, que recomendou nas décadas que precederam a crise, em particular nos anos setenta; 2) convencer os seus interlocutores que devem aplicar políticas radicais de austeridade no âmbito do ajustamento estrutural, sem pedirem aos países ricos para fazerem um esforço de solidariedade.
Stanley Fisher, que substitui Anne Krueger no posto de economista-chefe do Banco, em 1987, escreveu num memorando interno em 1990: «Não quero que os países menos desenvolvidos pensem que a comunidade internacional vai ajudá-los e, portanto, sublinho que o problema está nas mãos deles» [17].
Os historiadores do Banco Mundial ressalvam: «Qualquer um que se interesse pela história da crise da dívida repara no modo como o debate foi influenciado pelos norte-americanos e como os países que sofriam directamente a crise não se faziam ouvir» [18].
Os autores acrescentam depois que as análises publicadas pelo Banco Mundial reflectiam os interesses políticos dos seus principais accionistas, em particular dos Estados Unidos e, por acréscimo, dos bancos privados.
Cumplicidade entre os banqueiros do Norte e as classes dirigentes do Sul
Diversos estudos deixam transparecer a relação existente entre o endividamento cres- cente dos países da América Latina, nos anos setenta e oitenta, e a fuga de capitais do Sul para o Norte. Uma parte considerável dos montantes emprestados pelos banqueiros do Norte voltavam aos seus cofres sob a forma de depósitos.
Os historiadores do Banco escrevem a esse respeito: «A parte relativa à fuga de capitais, que aumentou a dívida externa, entre 1978 e 1982, oscila entre 50 a 100 % no caso da Argentina, do México e da Venezuela. No caso do Brasil, foi da ordem dos 10 %» [19].
Outras investigações alcançaram resultados que confirmam o resultado anterior. Eis aqui uma sob a forma de tabela:
Os historiadores do Banco tiram uma conclusão bem pertinente: «a fuga de capitais colocou cada vez mais títulos privados em paraísos fiscais, em bancos que são credores desses países. As elites latino-americanas não eram, portanto, de todo, favoráveis ao incumprimento do pagamento que colocaria os seus títulos privados em perigo» [20].
De facto, as elites ricas não têm qualquer interesse em propor a suspensão do pagamento da dívida externa dos seus países.
Para concluir esta parte, não abdico do prazer de reproduzir a delicada troca de notas internas entre Stanley Fisher, do Banco Mundial, e Jacob Frenkel, seu colega do FMI. Num estudo, o FMI publicara projecções optimistas relativas ao fim da fuga de capitais e o regresso desses capitais aos seus países de origem. Stanley Fisher escreve ao seu colega do FMI: «O pessoal do Banco está preocupado com as projecções do Fundo sobre a amplitude substancial do regresso ao país dos capitais em fuga e sobre o impacto na análise da redução do fosso financeiro de certos países. Desconhecemos sobre que análise económica se baseiam tais projecções e acreditamos que se trata de uma profecia que não se realizará. O gap financeiro não pode ser disfarçado pelo regresso ao país de capitais que tinham fugido, quando a situação depende acima de tudo da estabilidade económica e financeira» [21].
Jacob Frenkel responde: «a questão levantada por si em relação às projecções sobre o regresso de capitais em fuga para sanar o gap financeiro compreende, como sabe, outras considerações além das puramente analíticas» [22] (o sublinhado é nosso). Em suma, o FMI apresenta projecções opti- mistas por razões políticas.
O ajustamento estrutural generalizado
Num livro editado em 1974, o economista americano Cheryl Payer, crítico do FMI e do Banco Mundial, resume as medidas que o FMI exige aos PED que solicitam os seus serviços:
‒ abolir ou liberalizar o controlo sobre o câmbio e as importações;
‒ desvalorização da moeda;
‒ políticas monetárias restritivas para controlar a inflação que cairá da seguinte
forma: a) subida das taxas de juro e, em certos casos, aumento das reservas cambiais ; b) controlo do défice público: diminuição das despesas, aumento das taxas e tarifas de serviços e de empresas públicas, eliminação dos subsídios de bens de consumo; c) limites ao aumento dos salários da função pública ; d) desmantelamento do controlo de preços;
‒ maior incentivo para o investimento estrangeiro.
Para definir essas medidas, Cheryl Payer analisou a política do FMI aplicada nos anos sessenta nas Filipinas, Indonésia, Brasil, Chile, Índia, Jugoslávia e Gana.
A partir de 1981-1982, quando rebenta a crise da dívida, um número considerável de países solicita os serviços do FMI (frequentemente sob pressão dos principais credores, quer sejam públicos ou privados), para encontrar uma solução para os problemas da balança de pagamentos. O FMI dispõe, então, de poderes consideráveis, que lhe permitem generalizar as medida económicas resumidas acima. Esse pacote de medidas veio a ser cada vez mais conhecido pela designação de programa de ajustamento estrutural.
Ironia amarga da história, como já indicado anteriormente, acontece quando o preço do petróleo aumenta muito em 1973 e o FMI declara que não é necessário nenhum ajustamento estrutural. No entanto, o choque petrolífero tinha modificado significativamente a situação internacional ao fazer aumentar muito o rendimento gerado pelas divi- sas provenientes dos países exportadores de petróleo e provocando uma forte procura de divisas por parte dos PED não produtores de petróleo.
Num livro coordenado por John Williamson, publicado em 1983, pode ler-se o testemunho de um funcionário do FMI, que explica: «A preocupação nessa época (isto é, no momento do choque petrolífero de 1973) era que os países não tentassem um ajustamento rápido demais porque uma tal tentativa realizada coletivamente poderia conduzir a um aprofundamento não desejado da recessão global» [23].
Quando a crise da dívida rebenta como consequência do efeito combinado do aumento das taxas de juro, decretado pela Reserva Federal dos Estados Unidos, e da baixa dos preços das matérias-primas, o FMI e o Banco Mundial modificam completa- mente as suas versões do sucedido. Imputam uma grande parte da responsabilidade da crise ao choque petrolífero. O ajustamento que, segundo eles, não era necessário em meados da década de setenta, torna-se subitamente incontornável.
O Banco Mundial foi pioneiro ao lançar, em 1980, os primeiros empréstimos de ajustamento estrutural. E é sob o incentivo de Robert McNamara que o Banco inicia esses novos empréstimos. Robert McNamara justifica a adoção dessa política com base na seguinte previsão: após o segundo choque petrolífero de 1979, o aumento do preço do petróleo continuará ao longo dos anos oitenta (o que foi negado pelos factos, ocorrendo justamente o contrário) e devido a isso é necessário que os PED procedam a um ajustamento estrutural. [24]
O conteúdo do ajustamento apresentado por Robert McNamara corresponde ao resumo apresentado acima. Entre 1980 e 1983, o Banco concede catorze empréstimos de ajustamento estrutural a nove países. [25]
Ao longo dos anos oitenta, surgem constantes tensões entre o Banco e o FMI, que não conseguem intervir de forma coerente. A situação desemboca na assinatura de uma concordata entre ambas as instituições em 1989. [26].
No ano seguinte, em 1990, nasce o conceito de Consenso de Washington [27], que codifica as políticas a serem seguidas no contexto de ajustamento estrutural, adicionando às medida resumidas acima por Cheryl Payer a dimensão das privatizações em massa e da política de reposição de custos em sectores como a educação, a saúde e a distribuição de água ... Note-se que o Consenso de Washington não engloba apenas o FMI e o Banco Mundial, é preciso acrescentar o executivo dos Estados Unidos, representado pelo Tesouro. O novo contributo trazido pelo Consenso de Washington não se limitava tanto às medidas económicas a serem aplicadas (que já eram postas em prática na sua maior parte) mas dizia sobretudo respeito à proclamação pública de um acordo entre as instituições de Bretton Woods e o Executivo norte-americano.
Além disso, o Banco Mundial despende um grande esforço para publicar estudos e relatórios com o objectivo de fundamentar teoricamente e codificar a política de ajusta- mento estrutural. Entre os inúmeros relatórios vale a pena frisar a importância do relatório intitulado O desenvolvimento acelerado em África a Sul do Saara realizado sob a coordenação do economista Elliot Berg. Trata-se do resultado de uma ordem de Robert McNamara. O relatório representará a linha política do Banco Mundial durante um longo período. Acentua a insuficiência do apoio à iniciativa privada e o grande espaço ocupado pelo sector público. Pretende reforçar o apoio às culturas de exportação reduzindo ainda mais as culturas de subsistência. Para Elliot Berg e para a sua equipa, sobre- tudo não era preciso alcançar a autossuficiência alimentar, afirmando que «a maior parte dos países africanos possui vantagens comparativas muito nítidas em termos de culturas de exportação». Por exemplo, valeria mais exportar produtos tropicais e importar produtos alimentares, porque «uma política de autossuficiência que sacrificasse as culturas de exportação seria onerosa em termos de rendimento» [28]. O relatório reprova o facto de a ajuda exterior ter reforçado o sector público!
O mesmo relatório considerava os dirigente africanos amplamente responsáveis pelo infortúnio de África, desculpando as instituições financeiras internacionais e os países do Norte! O relatório Berg foi de algum modo a resposta dada pelo Banco Mundial ao Plano de Lagos da Organização de Unidade Africana (OUA), aprovado em 1980. A direcção do Banco Mundial ficou estarrecida pelas reacções negativas suscitadas pelo relatório Berg, uma vez que os responsáveis africanos do Banco tinham avaliado o rela- tório sem críticas. A direcção do Banco foi tomada de surpresa e pediu que dois consultores externos sondassem os dirigentes africanos para saber o que pensavam do Banco. O resultado do inquérito confirmou as preocupações: a imagem do Banco era francamente má.
Os historiadores do Banco Mundial resumem de forma contundente o carácter da produção analítica do Banco durante os anos oitenta e a divisão de tarefas entre o Banco e o FMI: «O Banco coloca-se como o bastião, a origem das políticas ortodoxas de desenvolvimento económico. Tratava-se de articular a autoridade a longo prazo no âmbito do designado Consenso de Washington (o FMI dominava a articulação a curto prazo), ditando as relações entre Estados e mercados, inclusive as políticas económicas internacionais e as interacções a nível nacional» [29].
Tímidas tentativas e resistência por parte dos PED
A estratégia estabelecida em Washington, desde a eclosão da crise, de dividir para rei- nar funciona plenamente. Os governos latino-americanos não têm de facto vontade de construir uma frente comum para fazer face à crise e aos credores.
Em janeiro de 1984, deveria haver uma reunião secreta, em Cuzco, no Peru, entre os ministros das finanças da Argentina, do Brasil, da Colômbia, do México e do Peru. Tra- tava-se de uma tentativa de adopção de uma estratégia comum. À última hora, a reunião foi cancelada porque o ministro peruano Carlos Rodriguez Pastor, que deveria ser o anfitrião, demitiu-se repentinamente. A decisão de anular a reunião foi tomada tão tardi- amente que um dos ministros convidado ainda foi até ao local do encontro. Não foi avi- sado a tempo. [30]
Richard Webb, um dos autores da história do Banco Mundial, foi governador do Banco Central do Peru. Ele conta que, em junho de 1984, o Peru se encontrava perante um dilema: continuar a pagar o serviço da dívida externa e suprimir as importações necessárias para o crescimento ou, para manter o crescimento, não renunciar às importações necessárias e suspender imediatamente parte do pagamento da dívida. O Governo acabava de fracassar, não cumprindo os objectivos de austeridade orçamental exigidos pelo FMI. Na qualidade de governador do Banco Central do Peru, Richard Webb sugere então que o Peru declare unilateralmente um moratória parcial, o que provocou o pânico no seio do Governo. Richard Webb é acusado pelo primeiro-ministro da época de «apunhalar o país pelas costas». É lançado, contra ele, um procedimento de destituição, sendo acusado de ter arruinado a credibilidade do Peru no estrangeiro. [31]
Quando Alan Garcia, presidente do Peru, anuncia, em 1985, que o seu país não afec- tará mais de 10 % do rendimento das exportações ao reembolso a dívida, o Banco Mun- dial estuda a questão internamente e conclui que se Alan Garcia concretizasse efectiva- mente esse plano, o Peru muito provavelmente poderia sair dessa situação se aplicasse o montante economizado em despesas para reforçar a sua economia. Evidentemente, os resultados desse estudo não foram publicados. [32]
Os economistas argentinos Alfredo Eric Calcagno e Alfredo Fernando Calcagno apresentam um resumo da experiência realizada pelo Peru a partir de agosto de 1985:
«O governo de Alan Garcia, em agosto de 1985, anunciou a sua decisão de não pagar mais do que o equivalente a 10% das exportações, dando preferência aos organismos fi- nanceiros multilaterais. Desse modo, as transferências líquidas – que tinham sido nega- tivas, na ordem de -488 milhões de dólares, em 1984, e de -596 milhões, em 1985 –, passaram a ser positivas na ordem dos 112 milhões de dólares em 1986, na ordem dos 89 milhões de dólares em 1987, e de 90 milhões em 1988. O Peru não sofreu qualquer represália ou restrição comercial, tendo aumentado extraordinariamente as suas impor- tações em 1986 e 1987 (44 % e 18 % respectivamente), apesar de uma queda de 15 % nas exportações em 1986 (com ligeira recuperação em 1987). Do lado do financiamento externo, o não pagamento da maior parte da dívida compensou com folga a interrupção dos empréstimos financeiros privados e a redução dos empréstimos oficiais e multilaterais. Em 1986 e 1987, o produto interno bruto cresceu 8,9 % e 6,5 %, impulsionado pelo aumento da procura interna, que era satisfeita pela capacidade produtiva nacional e pelo aumento das importações, que se deveu à redução do pagamento da dívida. Porém, nesse período não foram realizados investimentos de vulto e os factores dinâmicos es- gotaram-se em 1988, ano em que o produto caiu 7,5 % e a inflação subiu de forma con- siderável. Desse modo, a crise que o Peru sofreu nos anos seguintes deveu-se a proble- mas de política económica interna, que não derivam de represálias comerciais, nem de danos que poderiam ter sido causados pelos limites impostos ao pagamento da dívida. Pelo contrário, a redução dos pagamentos externos gerou uma oportunidade que não foi possível aproveitar ou não se soube aproveitar» [33].
Ao longo dos anos oitenta, outros países da América Latina suspenderam total ou parcialmente o pagamento das suas dívidas exteriores durante vários meses [34], mas nenhuma estratégia comum foi adoptada, apesar da importante campanha lançada pelo Governo cubano em 1985. Essa campanha dirigida por Fidel Castro sob o tema «A dívida é impagável» obteve certa repercussão entre as organizações sociais e os partidos de esquerda do continente, porém o acolhimento foi reservado por parte dos governos.
No entanto, a iniciativa de Cuba, em 1985, teve repercussões fora das fronteiras da América Latina. Na África Subsaariana, o jovem presidente do Burkina Faso, Thomas Sankara dirige-se a todos os chefes de Estados africanos, presentes na 25.a conferência da OUA (Organização de Unidade Africana), em 29 de julho de 1987, em Adis Abeba [35], nos seguintes termos:
«a dívida é agora o neocolonialismo em que os colonialistas se transformaram em “as- sistentes técnicos” [...] De facto, deveríamos falar de assassinos técnicos. Além disso, foram eles que nos propuseram fontes de financiamento, “os negociantes de fundos” [...]. Esses negociantes de fundos foram-nos aconselhados, recomendados. Apresentaram-nos relatórios e montagens financeiras fantasiosas. Endividámo-nos por cinquenta anos, sessenta anos e até mesmo mais. Isto é, levaram-nos a comprometer o nosso povo por mais de cinquenta anos.
Na sua forma actual, a dívida é uma reconquista de África sabiamente organizada, para que o seu crescimento e o seu desenvolvimento obedeçam a normas que nos são totalmente estranhas. Fazendo com que cada um de nós se transforme num escravo financeiro, quer dizer, simplesmente num escravo daqueles que tiveram a oportunidade, a esperteza e a astúcia de aplicar aqui os seus fundos, obrigando ao reembolso. [...]
Quem aqui não deseja que a dívida seja pura e simplesmente apagada? Aquele que não desejar pode sair, apanhar o avião e ir directamente ao Banco Mundial efectuar o pagamento. Eu não gostaria que se considerasse a proposta do Burkina Faso como proveniente de jovens sem maturidade e sem experiência. Também não gostaria que pensassem que somente os revolucionários falam desta forma. Gostaria que se admitisse que se trata simplesmente de uma questão de objectividade e de obrigação.
Posso citar revolucionários e não revolucionários, jovens e velhos entre aqueles que dizem para não se pagar a dívida, Citarei por exemplo Fidel Castro. Ele já disse para não pagarmos. Ele não tem a minha idade, mesmo sendo um revolucionário».
Três meses mais tarde, o impetuoso Thomas Sankara foi assassinado. Desde então, o seu país tornou-se um dócil discípulo do Banco Mundial, do FMI e do Clube de Paris, sob a condução de Blaise Compaoré.
Jean-Philippe Peemans exprime muito bem a relação de cumplicidade entre o FMI, o Banco Mundial e os regimes dos PED, que se comportam como bons alunos:
«No que diz respeito ao Sul, o papel das instituições internacionais como o FMI e o Banco Mundial foi essencial, porque os regimes que realizam essa tarefa conseguiram garantir o acesso permanente aos créditos multilaterais. Desse modo, garantem a sua inserção de forma duradoura nos fluxos globalizados, qualquer que seja a contração da economia nacional após o ajustamento. Os fluxos externos permitem que os detentores de capitais coloquem, sem problemas, os seus títulos no estrangeiro, com a dívida a crescer na proporção dessa saída de capitais» [36].
Anular ou não as dívidas?
Em outubro de 1985, James Baker, novo secretário do Tesouro dos Estados Unidos, anunciou um plano com vista a resolver as dificuldades de quinze países muito endividados de rendimento médio [37]. Esse plano foi anunciado com grande apoio dos media na assembleia anual do FMI e do Banco Mundial, em outubro de 1985, em Seul [38]. Ainda não estava em questão a anulação das dívidas.
Internamente, em 1988, o Banco Mundial começa a debater de forma restrita a necessidade de anular uma parte da dívida de certos países, principalmente da Argen- tina, porém ninguém podia exprimir-se em público a favor de uma tal eventualidade. Num rascunho do World Development Report 1988 havia uma frase sobre a necessidade de anulação parcial da dívida concessional. A frase foi retirada da versão publicada [39]. Entre os argumentos contrários à anulação há um que ainda é trazido sistematicamente a debate 20 anos depois: um país que beneficiou de uma anulação terá em seguida mais dificuldades de acesso ao crédito. Esse argumento era e é totalmente falacioso porque na realidade passa-se exactamente o contrário. Em geral, quando um país beneficia de uma redução da dívida, os bancos privados prontificam-se logo a emprestar mais dinheiro, já que posteriormente a sua capacidade de pagamento melhora.
Stanley Fisher explica, em 1992, que, durante boa parte dos anos oitenta, os governos dos Estados Unidos, da Grã-bretanha (Margaret Thatcher) e da Alemanha (Helmut Kohl) impediram qualquer discussão sobre a possibilidade de anular a dívida [40].
Em 1988, por ocasião do G7, em Toronto, perante o fracasso de todas as políticas anteriores, opta-se pela melhoria das condições da dívida (anulação parcial): a anulação é prometida aos países mais pobres [41] , depois de os Estados Unidos terem mudado de opinião a esse respeito. Em 1990, em Houston, pela primeira vez, o G7 estende a possibilidade de anulação da dívida aos países fortemente endividados de rendimento médio, como o México, a Argentina, o Brasil e as Filipinas. Essa reviravolta foi iniciada por Washington, em março de 1989, durante a administração de Georges Bush pai, quando Nicholas Brady era secretário do Tesouro. Mais uma vez, o Governo dos Estados Unidos dá o tom. O FMI, o Banco Mundial e o G7 apenas acompanham o movimento.
O Plano Brady consiste na reestruturação de uma parte da dívida de uma série de países de rendimento médio através da emissão de novos títulos de dívida, que são conhecidos desde então como «títulos Brady». No momento da emissão dos títulos Brady, os banqueiros do Norte aceitam uma redução dos seus créditos. Em troca, têm assegurada uma remuneração generosa. Para emitir os títulos Brady, os países devem começar por comprar títulos do Tesouro dos Estados Unidos como garantia. Os países endividados financiam dessa forma a política de endividamento da principal potência mundial.
No início, o plano Brady parece funcionar. O sucesso do México e do seu presidente Salinas de Gortari é citado como exemplo, ao ponto do ultraliberal semanário britânico The Economist proclamar, em 1994, Carlos Salinas de Gortari como um dos grandes homens do século XX. Alguns meses mais tarde, o México é atingido duramente pela crise Tequila (dezembro 1994) e entra na sua maior recessão em 60 anos! Alguns anos mais tarde, Carlos Salinas de Gortari e o seu irmão Raul são perseguidos e condenados por fraude e desvio de fundos pela justiça mexicana. Raul Salinas de Gortari cumpriu a sua pena na prisão. Carlos Salinas escolheu o exílio na Irlanda, onde trabalha para a empresa Dow Jones, proprietária do Wall Street Journal entre outras coisas. As autoridades judiciais mexicanas conseguiram que as suas congéneres suíças obrigassem os bancos helvéticos a reextraditarem para o México o montante desviado pelos irmão Salinas e que esse montante fosse depositado nos seus cofres.
Desde a segunda metade dos anos noventa nota-se claramente que a crise da dívida de 1982 não foi superada. As medidas para aliviar a dívida fracassaram. As políticas de ajustamento estrutural fragilizaram os países face à especulação financeira. Isso provocou crises financeiras sucessivas nos países fortemente endividados. Após o México ter sido atingido, em finais de 1994, seguiram-se os países do Sudeste Asiático e a Coreia em 1997, a Rússia em 1998, o Brasil em 1999, a Argentina e a Turquia em 2000-2001. Quanto aos países mais pobres, a anulação parcial das dívidas, concedida aos bons alunos a partir da reunião de Toronto em 1988, mantida nas reuniões de Londres em 1991, de Nápoles em 1994, de Lyon em 1996 e de Colónia em 1999, não se traduziu em soluções duradouras.
Tradução: Maria da Liberdade
Revisão: Rui Viana Pereira
[1] Lissakers, Karin. 1991. Banks, Borrowers and the Establishment: A Revisionist Account of the International Debt Crisis, p. 194.
[2] KAPUR, Devesh, LEWIS, John P., WEBB, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Cen-
tury, vol. 1: History, p. 636, nota 132.
[3] As empresas argentinas endividadas junto das empresas-mãe são: Renault Argentina, Mercedes- Benz Argentina, Ford Motor Argentina, Argentina IBanque, Citibank, First National Bank of Bos- ton, Chase Manhattan Bank, Bank of America, Deutsche Bank. O Estado argentino pagou aos cre- dores privados dessas empresas (isto é, à sua empresa-mãe): Renault França, Mercedes Benz, City bank, Chase Manhattan Bank, Bank of America, First National Bank of Boston, Crédit Lyonnais , Deutsche Bank, Société Generale. Em suma, o contribuinte argentino paga a dívida contraída pelas filiais das multinacionais junto das suas casas-mãe ou de banqueiros internacionais. Suspeita-se que as multinacionais em causa tenham criado a dívida das suas filiais através de um simples jogo de escrituras. Os poderes públicos argentinos não possuíam os meios necessários para controlar essa contabilidade.
[4] PNUD, 1992, p. 74.
[5] BRD, Operations Policy Staff, «Debt and Adjustment in Selected Developing Countries» , SecM84- 698, 1984 in KAPUR, Devesh, LEWIS, John P., WEBB, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, vol. 1: History, p. 615.
[6] Fax message, Ernest Stern to Luis de Azcarate, director, CPDDR, May 15, 1984 in KAPUR, De- vesh, LEWIS, John P., WEBB, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, vol. 1: History, p. 616.
[7] Memorandum, Ernest Stern to members of the Managing Committee, «Conference at the Federal Reserve Bank of New York,» May 11, 1984, p. 1 in KAPUR, Devesh, LEWIS, John P., WEBB, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, vol. 1: History, p. 616.
[8] Andres Bianchi, Robert Devlin and Joseph Ramos, «The Adjustment Process in Latin America 1981-1986» paper prepared for World Bank-IMF Symposium on Growth-Oriented Adjustment Programs, Washington D.C., February 25-27, 1987, table 9 in KAPUR, Devesh, LEWIS, John P., WEBB, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, Volume 1: History, nota 105 p. 627
[9] Memorando, Ernest Stern to Munir Benjenk, «Draft Speech For Davos», January 16, 1984, p. 2, in KAPUR, Devesh, LEWIS, John P., WEBB, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Cen- tury, vol. 1: History, p. 616.
[10] Ao construir a tabela, tivemos em conta os empréstimos concedidos pelo BIRD, filial do Banco Mundial, que concede empréstimos aos países com rendimento médio. Não tivemos em considera- ção os empréstimos concedidos pela AID aos países com rendimento baixo.
[11] KAPUR, Devesh, LEWIS, John P., WEBB, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Cen- tury, vol. 1: History, p. 1194.
[12] Idem, p. 1193, nota 47.
[13] Ibid., p. 624.
[14] WORLD BANK, World Development Report 1982, p. 7, in KAPUR, Devesh, LEWIS, John P., WEBB, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, vol. 1: History, p. 617.
[15] World Bank, World Development Report 1986, p. 33, in KAPUR, Devesh, LEWIS, John P., WEBB, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, vol. 1: History, p. 61.
[16] Letter, Ernest Stern to Carlos F. Diaz-Alejandro, September 10, 1984, pp.3-4, in KAPUR, Devesh, LEWIS, John P., WEBB, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, vol. 1: History, p. 618.
[17] Memorando, Stanley Fisher to Ibrahim Shibata, May 26, 1990 in KAPUR, Devesh, LEWIS, John P., WEBB, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, vol. 1: History, p. 618.
[18] KAPUR, Devesh, LEWIS, John P., WEBB, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Cen-
tury,p. 626.
[19] Idem., p. 662. Para escreverem isto, os historiadores baseiam-se em: Estimates from Miguel A. Rodriguez, «Consequences of Capital Flight for Latin American Debtor Countries» in Donald Les- sard and John Williamson, Capital Flight and Third World Debt (Washington D.C., Institute for International Economics, 1987), tabela 6.1, p. 130.
[20] Ibid., p. 678.
[21] Memorando, Stanley Fischer to Jacob A. Frenkel, «Coordination of Forecasts», June 27, 1989. in KAPUR, Devesh, LEWIS, John P., WEBB, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Cen- tury, vol. 1: Hiistory, nota 45 p. 611
[22] Memorando, Jacob A. Frenkel to Stanley Fisher, «Coordination of Forecasts», July 14, 1989, pp. 1-2. in KAPUR, Devesh, LEWIS, John P., WEBB, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, vol. 1: History, nota 45 p. 611.
[23] DALE, William B. «Financing and Adjustment of Payments Imbalances», in John Williamson, ed., IMF Conditionality, Institute for International Economics, Washington, 1983, p. 7.
[24] Nicholas Stern e Francisco Ferreira. 1997. «The World Bank as “intellectual actor”» in KAPUR, Devesh, LEWIS, John P., WEBB, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, vol. 2, p. 540.
[25] Idem, p. 543.
[26] Para limitar as contradições entre as recomendações (como aconteceu na Argentina, em 1988 , em que o Banco concedeu o seu apoio a condições que o Fundo não considerava satisfatórias), foi de- finida uma divisão geral de responsabilidades em 1989. O termo «concordata», utilizado pelos pró- prios, não é despiciendo: indica que as tensões e contradições entre as instituições eram consideráveis. Concordou-se que o Fundo examinaria prioritariamente os aspetos globais das po- líticas macroeconómicas, nomeadamente, no que dissesse respeito ao orçamento, preços, moeda, crédito, taxas de juro e taxas de câmbio. O Banco, por seu turno, concentrar-se-ia nas estratégias de desenvolvimento, projetos e aspectos setoriais. Essa distribuição de tarefas requeria uma cola- boração estreita em diferentes domínios, mas a concorrência entre as duas administrações perma- necia intensa. A concorrência institucional era devida a tipos de cultura de empresa diferentes.
[27] Para uma apresentação sucinta do Consenso de Washington, ver ATTAC. 2004. Le développement en question(s): vers une société solidaire et économe, Fayard, Paris, Capítulo 7. Ver também: WILLIAMSON, John, «What Washington means by policy reform», 1989, in Latin American Ajustment: How much has happened?, Washington, Institut of International Economics.
[28] Banque Mondiale, Le développement accéléré en Afrique au Sud du Sahara, Programme indicatif d’Action, Washington, 1981, p. 151.
[29] KAPUR, Devesh, LEWIS, John P., WEBB, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Cen- tury, vol. 1, p. 1193.
[30] Idem, p.620.
[31] Ibid. nota 64 p. 615.
[32] Ibid., p. 679.
[33] CALCAGNO, Alfredo Eric e CALCAGNO, Alfredo Fernando. 1995. El universo neoliberal: recuento de sus lugares comunes, p. 378.
[34] É o caso do Brasil que suspendeu o pagamento da dívida externa aos bancos entre fevereiro de 1987 e janeiro de 1988. Ver TOUSSAINT, Eric e ZACHARIE, Arnaud. 2000. Le Bateau ivre de la mondialisation, Escales au sein du village planétaire, CADTM-Bruxelas/Syllepse-Paris, pp. 67-68.
[35] Ver texto completo reproduzido em MILLET Damien. 2005. L’Afrique sans dette, CADTM-Syllepse, Liège- Paris, 2005, p. 205. Le développement des peuples face à la modernisation du monde.
[36] PEEMANS, Jean-Philippe. 2002., Academia- Bruylant/L’Harmattan, Louvain-la-neuve/Paris, p. 367.
[37] Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa do Marfim, Equador, México, Marrocos, Nigé- ria, Peru, Filipinas, Uruguai, Venezuela e Jugoslávia, in KAPUR, Devesh, LEWIS, John P., WEBB, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, vol. 1, p. 626.
[38] Facto significativo a propósito daqueles que tomam as decisões importantes: o Tesouro dos Esta- dos Unidos preveniu o Banco Mundial da existência do «Plano Baker» apenas 48 horas antes de este ser tornado público.
[39] Idem, p. 648.
[40] Letter, Stanley Fischer to Nicholas Stern, May 19, 1992, in KAPUR, Devesh, LEWIS, John P.,
WEBB, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, Volume 1, p. 1195.
docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.