Em julho de 2024, o Banco Mundial e o FMI completarão 80 anos. 80 anos de neocolonialismo financeiro e de imposição de políticas de austeridade em nome do pagamento da dívida. 80 anos já bastam! As instituições de Bretton Woods devem ser abolidas e substituídas por instituições democráticas ao serviço de uma bifurcação ecológica, feminista e antirracista. Para assinalar estes 80 anos, publicamos todas as quartas-feiras, até julho, uma série de artigos que analisam em pormenor a história e os danos causados por estas duas instituições.
Robert McNamara e o presidente Luis Echeverria (1970-1976) entendem-se muito bem. O presidente mexicano desencadeou uma repressão feroz contra a esquerda radical. A partir de 1973, houve um crescimento rápido das divisas do México graças ao preço do petróleo, que triplicou. Esse aumento de divisas deveria deixar o México imune à necessidade de endividamento. No entanto, o volume de empréstimos do Banco Mundial ao México aumentou muito: quadruplicou entre 1973 e 1981 (passando de 118 milhões de dólares, em 1973, para 460 milhões, em 1981). O México endividou-se também junto de bancos privados, com o aval do Banco Mundial. O volume de empréstimos privados ao México aumentou seis vezes entre 1973 e 1981. Os empréstimos dos bancos americanos predominam, seguidos em grau de importância pelos bancos britânicos, japoneses, alemães, franceses, canadianos e suíços. O montante emprestado pelos bancos privados é mais de dez vezes superior ao montante emprestado pelo Banco Mundial. Quando a crise rebenta, em 1982, contam-se 550 bancos credores do México! Para o Banco Mundial, emprestar ao México significa manter a influência sobre as autoridades mexicanas. Entre 1974-1976, a situação das finanças públicas do México deteriora-se gravemente. O Banco Mundial incentiva o México a continuar na senda do endividamento numa altura em que os sinais de alarme disparam.
A 3 de fevereiro de 1978, o Banco Mundial faz a seguinte projecção:
«É quase certo que o governo mexicano terá um aumento significativo dos recursos disponíveis no início dos anos oitenta. As nossas projecções mais recentes indicam que a balança de transacções correntes registará um superavit em 1982; mostram um crescimento grande no rendimento das exportações, principalmente na conta petróleo, tornando tanto o endividamento externo como o financiamento público problemas mais fáceis de gerir nos anos oitenta. O serviço da dívida externa, que representava 32,6 % do rendimento das exportações em 1976, aumentará progressivamente para 53,1 % em 1978 e depois cairá para 49,4 % em 1980, e aproximadamente 30 % em 1982» [1].
É exactamente o oposto do que acontece na realidade. O prognóstico citado foi negado na totalidade pelos factos!
Quando Paul Volcker, director da Reserva Federal dos Estados Unidos, decreta um forte aumento das taxas de juro, em 1979, que inevitavelmente resultará na crise da dívida, iniciada justamente no México, o Banco Mundial pretende tranquilizar. Escreve em 19 de novembro de 1979: «O aumento da dívida pública externa mexicana e principalmente o aumento do serviço da dívida, que atingiu 2/3 das suas importações em 1979, sugerem que a situação é muito crítica. Na realidade a situação é exactamente o contrário». [2] E isso é literalmente um absurdo!
A mensagem passada pelo Banco Mundial é a de que, apesar de tudo sugerir que as coisas vão mal, não há nada a temer porque a situação real é excelente e é preciso continuar o endividamento. O que diríamos de um polícia de trânsito que encoraja os peões a atravessarem uma via férrea quando o sinal vermelho indica a chegada iminente de um comboio? O que faria a justiça se isso levasse à morte de um homem?
Os banqueiros privados do Norte aumentaram exponencialmente os montantes emprestados aos PED, começando pelo México.
Um dos economistas do Banco, responsável pelo acompanhamento da situação, escreve um relatório alarmante em 14 de agosto de 1981 [3]. Explica que discorda da posição optimista do Governo mexicano e do seu representante Carlos Salinas de Gortari, director-geral do Ministério de Planeamento e Orçamento [4]. A hierarquia prejudica-o de tal modo, que o leva a interpor mais tarde um processo contra o BM (que ganha) [5]. Em 1981, o Banco Mundial concede ao México um empréstimo de 1,1 mil milhões de dólares (a ser pago ao longo de vários anos): com certeza o maior empréstimo do Banco desde 1946. No início de 1982, o Banco Mundial afirma que o crescimento do produto interno bruto do México atingirá, por ano, 8,1 % entre 1983 e 1985. Em 19 de março de 1982, seis meses antes da crise, o presidente do Banco Mundial, Alden W. Clausen, enviou a seguinte missiva ao presidente do México, José Lopez Portillo [6]:
«A nossa reunião na Cidade do México com os vossos principais conselheiros reforçou a minha confiança nos dirigentes económicos do vosso país. O Senhor Presidente pode orgulhar-se bastante das conquistas dos últimos cinco anos. Poucos países podem dizer que atingiram taxas de crescimento tão altas ou que criaram tantos empregos [...] Quero felicitá-lo pelas muitas conquistas já alcançadas. Como afirmei nesse último encontro, os retrocessos recentes na economia mexicana só podem ser transitórios e ficaremos felizes em ajudar-vos durante o processo de consolidação». [7]
Menos de um ano antes, Alden W. Clausen era ainda presidente do Bank of America, que obtinha grandes lucros através de empréstimos concedidos ao México.
Em 20 de agosto de 1982, o México, depois de ter nos sete primeiros meses do ano reembolsado somas consideráveis, anunciou que não estava mais em condições de continuar os pagamentos. O México decreta uma moratória de seis meses (suspensão de pagamento de agosto de 1982 a janeiro de 1983).
Restavam-lhe 180 milhões em caixa, devendo pagar 300 milhões em 23 de agosto. O México tinha prevenido o FMI desde o início de agosto que as suas reservas eram apenas de 180 milhões de dólares. O FMI reuniu com a Reserva Federal, o Tesouro dos Estados Unidos, o Banco de Compensações Internacionais (BCI) e o Banco de Inglaterra. O director do FMI, Jacques de Larosière, anuncia às autoridades mexicanas que o FMI e o BCI estão dispostos a realizar um empréstimo em dezembro de 1982, na dupla condição de o dinheiro ser utilizado para reembolsar os bancos privados e de o México aplicar medidas de choque e levar a cabo um ajustamento estrutural. O México aceita. Desvaloriza excessivamente a moeda, aumenta radicalmente as taxas de juro nacionais e salva da falência os bancos privados mexicanos, nacionalizando-os e assumindo as suas dívidas. Como contrapartida, fica com os 6 mil milhões de dólares que os bancos tinham em caixa. O presidente José Lopez Portillo apresenta esta última medida ao povo mexicano como sendo um acto nacionalista. Evita dizer que os 6 mil milhões de dólares servirão para reembolsar os banqueiros estrangeiros.
Na realidade, o que provocou a dívida mexicana? Terá sido o México que tomou a iniciativa?
Em termos gerais as causas são claras: o aumento das taxas de juro decidido em Washington, a queda do rendimento do petróleo e o sobre-endividamento colossal são causas estruturais. Os dois primeiros factores são choques externos e o México não é responsável por eles. O terceiro factor, o sobre-endividamento, é resultado da escolha dos dirigentes mexicanos, que foram encorajados a endividar o país junto dos banqueiros privados e do Banco Mundial.
Além das causas estruturais, que foram fundamentais, uma análise da sucessão dos factos mostra que foram os bancos privados, dos países industrializados, que provocaram a crise, reduzindo de maneira drástica os empréstimos concedidos ao México em 1982. Alertados pelo facto de o Tesouro público mexicano ter utilizado quase todas as divisas disponíveis para pagar a dívida, consideraram que era altura de reduzir bastante os empréstimos. Puseram de joelhos um dos países mais endividados. Percebendo que o México se confrontava com o efeito combinado da subida das taxas de juro, de que se aproveitavam, e da queda dos rendimentos petrolíferos, os bancos preferiram anteciparse e retiraram-se. Facto agravante foi os banqueiros estrangeiros terem sido cúmplices das elites mexicanas (dirigentes de empresas e dirigentes do partido do Estado, o Partido Revolucionário Institucional), que transferiam freneticamente capitais para o exterior, para os manterem em segurança. Estima-se que, entre 1981-1982, não menos de 29 mil milhões de dólares deixaram o México, sob a forma de fuga de capitais [8]. Após precipitarem a crise, os banqueiros privados aproveitaram-se dela. Deixaram a conta para outros pagarem. Nas tabelas abaixo encontra-se a prova disso:
A Tabela 5 mostra a evolução dos empréstimos privados estrangeiros, que não beneficiam da garantia do Estado mexicano. Constata-se que após um enorme aumento entre 1978 e 1981, os empréstimos diminuem drasticamente em 1982. Em contrapartida, os reembolsos não diminuem. Pelo contrário, aumentam aproximadamente 40 % em 1982. Em 1983, os empréstimos bancários são totalmente interrompidos.
No entanto, os reembolsos continuam a ocorrer. A evolução das transferências líquidas sobre a dívida, que era positiva até 1981, torna-se negativa a partir de 1982. No total, entre 1978 e 1987, a transferência líquida negativa representa mais de 10 mil milhões de dólares a favor dos banqueiros.
A Tabela 6 mostra a evolução dos empréstimos dos bancos privados estrangeiros que beneficiam da garantia do Estado mexicano. Constata-se um crescimento dos empréstimos entre 1978 e 1981. Em 1982, os empréstimos diminuem 20 %, mas os reembolsos não param. Pelo contrário, aumentam constantemente. Os empréstimos ban- cários apresentam então uma queda forte até 1986. Em contrapartida, os reembolsos por parte do Estado mexicano continuam a um nível altíssimo. A transferência líquida sobre a dívida pública garantida pelo Estado junto dos bancos estrangeiros, que foi positiva entre 1978 e1982, torna-se extremamente negativa a partir de 1983. No total, entre 1978 e 1987, a transferência líquida negativa representa também mais de 10 mil milhões a favor dos banqueiros.
O acumulado das transferências negativas das duas tabelas é superior a 20 mil milhões de dólares. Os banqueiros privados do Norte realizaram lucros prodigiosos à custa da população mexicana.
A Tabela 7 mostra a evolução dos empréstimos do Banco Mundial ao México.
Constata-se um forte aumento dos empréstimos. Nessa época, o BM tinha-se lançado numa corrida desenfreada com os bancos privados no sentido de aumentar os seus empréstimos. Em 1982 e 1983 observa-se uma pequena diminuição dos empréstimos, que voltam a aumentar consideravelmente a partir de 1984. O Banco comporta-se como emprestador de última instância.
Empresta ao Estado mexicano na condição de o Estado reembolsar os banqueiros privados, na maioria norte-americanos. A transferência líquida permanece positiva porque o México utiliza de facto os empréstimos do Banco Mundial para reembolsar os bancos privados.
Tabela 8. Empréstimos do FMI ao México e respectivos reembolsos
A Tabela 8 mostra a evolução dos empréstimos do FMI às autoridades mexicanas. Esses empréstimos são inexistentes entre 1978 e 1981. Em contrapartida, durante o mesmo período, o México paga ao FMI empréstimos antigos. A partir de 1982, o FMI empresta massivamente ao México sob duas condições: 1) deve utilizar o dinheiro para reembolsar os banqueiros privados; 2) deve implementar uma política de ajustamento estrutural (redução das despesas sociais e de infraestruturas, programa de privatizações, aumento das taxas de juro, aumento dos impostos indirectos ...). A transferência líquida permanece positiva porque o México utiliza de facto, como no caso acima, os empréstimos do FMI para reembolsar os bancos privados.
A Tabela 9 mostra a evolução dos empréstimos concedidos pelos Estados dos países mais industrializados. Tal como os banqueiros privados e o Banco Mundial, os Estados do Norte aumentaram consideravelmente os seus empréstimos ao México entre 1978 e 1981. Fazem, aliás, grosso modo, o mesmo que o Banco Mundial e o FMI. Enquanto os bancos privados reduzem os seus empréstimos, os Estados acompanham o FMI e o Banco nos empréstimos ao México, para que o país reembolse os banqueiros privados e adopte programas de ajustamento estrutural.
Tabela 10. Evolução da dívida externa total mexicana de 1978 a 1987
A Tabela 10 mostra a evolução da dívida externa total do México. A dívida triplicou entre 1978 e 1987. Durante esse período, o total dos reembolsos representa 3,5 vezes o montante da dívida de 1978. A transferência líquida negativa atingiu mais de 26 mil milhões de dólares.
A partir de 1982, o povo mexicano é sujeito a uma enorme sangria em benefício dos credores. De facto, o FMI e o Banco Mundial sabem como assegurar, até ao último cêntimo, os reembolsos dos empréstimos feitos ao México para pagamento aos bancos privados. O México fica irremediavelmente submetido à lógica do ajustamento estrutural. Num primeiro momento, o choque imposto em 1982 produziu uma forte recessão, enorme desemprego e forte queda do poder de compra. Em seguida, as medidas estruturais levaram à privatização de centenas de empresas públicas. A concentração de riqueza e de património nas mãos de alguns grandes grupos industriais e financeiros mexicanos e estrangeiros é impressionante... [9] ...
Numa perspectiva histórica, é evidente que a opção pelo sobre-endividamento nos anos 1960-1970, a eclosão da crise em 1982 e a forma de gestão que se seguiu marcaram uma ruptura radical e definitiva com as políticas progressistas levadas a cabo entre o início da revolução mexicana, em 1910, e os anos quarenta sob a presidência de Lazaro Cardenas. Da Revolução até aos anos quarenta, as condições de vida da população melhoraram muito e o México progrediu bastante do ponto de vista económico, com a adopção de uma política internacional independente. Entre 1914 e 1946, o México não pagou a dívida e, no fim de contas, obteve uma vitória formidável sobre os credores, que aceitaram renunciar a 90 % do montante em dívida em 1914, sem que houvesse o pagamento dos juros devidos. Desde a crise de 1982, o México perdeu o controlo do seu destino. Esse era um objectivo histórico, que os EUA perseguiam desde o século XIX.
Em 1970, a dívida externa do México atinge 3,1 mil milhões de dólares. Trinta e três anos depois, em 2003, a dívida é 25 vezes mais elevada, atingindo 77,4 mil milhões de dólares (a dívida externa pública e privada atinge 140 mil milhões). Durante esse período, os poderes públicos mexicanos reembolsaram 368 mil milhões de dólares (120 vezes mais do que o montante devido em 1970). A transferência líquida no período 1970-2003 alcança 109 mil milhões de dólares. Entre 1983 e 2003, decorridos 21 anos, apenas durante dois anos (1990 e 1995), houve uma transferência líquida positiva em termos de dívida externa pública.
Um dia, não muito distante, com certeza, o povo mexicano saberá reconquistar a liberdade e determinar o seu destino.
Tradução: Maria da Liberdade
Revisão: Rui Viana Pereira
[1] D. Kapur, J. Lewis, R. Webb, 1997, vol. 1. p. 499.
[2] Idem, p. 499.
[3] Memorando do dossier «Mexico: Present Economic Situation – Problems and Policies», August 14, 1981.
[4] Carlos Salinas de Gortari tornou-se presidente do México em 1988, após ter organizado uma fraude eleitoral massiva para impedir a vitória do candidato progressista, Cuauthémoc Cardenas. Deixará a presidência em 1994, pouco tempo depois de ter assinado o Acordo de Comércio Livre da América do Norte (NAFTA). Ver capítulo seguinte.
[5] Eis o que dizem os historiadores do Banco Mundial: «O economista (que ainda trabalhava para o Banco nessa época) assumiu um ponto de vista muito mais preocupante sobre as perspectivas ma- croeconómicas mexicanas para 1981 e deu a conhecer a sua visão divergente num memorando adi- cionado ao dossier. A sua carreira futura no Banco ficou comprometida; após um processo que demorou anos, foi reintegrado no cargo por decisão judicial. Pieter Bottelier foi entrevistado pelos autores em 19 de janeiro de 1993» in D. Kapur, J. Lewis, R. Webb, 1997, vol. 1, p. 603.
[6] José Lopez Portillo presidiu ao México entre 1977 e 1982.
[7] «Letter, A. W. Clausen to His Excellency Jose Lopez Portillo, president, United Mexican States, March 19, 1982», in D. Kapur, J. Lewis, R. Webb, 1997, vol. 1, p. 603.
[8] Morgan Guaranty Trust Co. Of New York, World Financial Markets, março de 1986, p. 15.
[9] Analisei os efeitos do ajustamento estrutural no México na primeira edição, de 1998, do livro La Bourse ou la Vie. La Finance contre les peuples, cap. 15, estudo de caso 2. «Le Mexique: endette- ment extérieur et crise politico-sociale», pp. 270-277.
docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.