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Alguns exemplos históricos de medidas decisivas relativas aos bancos
por Eric Toussaint
31 de Agosto de 2020

O que um governo faz ou não faz com os bancos tem consequências fundamentais para o curso da história de um país.

A Comuna de Paris [1] comete o erro de não tomar o controlo do Banque de France.

A sede do Banque de France, as suas principais reservas e o seu órgão de governo situavam-se no território da Comuna de Paris. Erradamente, a direção da Comuna de Paris renunciou a tomar o controlo dele quando este teria sido completamente necessário.

Em 1876, Prosper-Olivier Lissagaray, um intelectual militante que participou dos combates dos communards, denunciou, no seu livro História da Comuna de 1871, a atitude da liderança da Comuna, que «permaneceu em êxtase perante os cofres da alta burguesia que tinha na mão», referindo-se ao Banque de France. Ele acrescenta: «Todas as insurreições sérias começaram por apoderar-se do nervo do inimigo, o caixa. A Comuna foi a única que recusou.» [2]

Todas as insurreições sérias começaram por apoderar-se do nervo do inimigo: o caixa. A Comuna foi a única que recusou

A única exigência da Comuna ao Banco de França foi obter os adiantamentos financeiros que lhe permitissem manter um orçamento equilibrado sem ter de interromper o pagamento da Guarda Nacional (a Guarda Nacional de Paris era uma milícia cidadã responsável pela manutenção da ordem e defesa militar). «Como tal, durante os 72 dias da sua existência, a Comuna recebeu 16,7 milhões de francos: os 9,4 milhões de ativos que a Cidade tinha na sua conta e 7,3 milhões de fato emprestados pelo Banco. Ao mesmo tempo, Versalhes recebeu 315 milhões de francos franceses da rede de 74 agências do Banque de France», ou seja, quase 20 vezes mais [3].

Karl Marx, por sua vez, numa correspondência sobre a Comuna de Paris em 1881, dez anos após ter sido esmagada, concorda com Lissagaray. Ele considera que a Comuna errou ao não se apoderar do Banque de France: «A requisição do Banque de France por si só teria posto um fim às bravatas de Versalhes». Ele especifica que a requisição do Banco, «Com um pouco de bom senso, teria (...) conseguido obter de Versalhes um compromisso favorável a toda a massa do povo – o único objetivo realizável na altura» [4].

Como escreveu Lissagaray: «a Comuna não viu os verdadeiros reféns que tinha em mãos: o Banco, o cadastro de imóveis e as posses do estado, os depósitos e consignados etc.». [5]

Em 1891, Friedrich Engels apontava na mesma direção: «A coisa mais difícil de entender é certamente o respeito sagrado com que a Comuna parou às portas do Banque de France. Isto foi, de fato, um grave erro político. O Banco nas mãos da Comuna era melhor do que dez mil reféns. Significava que toda a burguesia francesa ia pressionar o governo de Versalhes para acertar a paz com a Comuna.»

Em conclusão, a Comuna de Paris em 1871 deixou o Banque de France financiar os seus inimigos, nomeadamente o governo conservador de Thiers instalado em Versalhes e o exército ao seu serviço [6].


A Revolução Russa, a nacionalização dos bancos e a anulação da dívida dos camponeses russos em 1917

Entre as primeiras medidas tomadas pelo governo soviético após a revolução de Outubro de 1917 estava a nacionalização dos bancos. Entre outras coisas, esta nacionalização tornou possível a anulação das dívidas dos camponeses aos bancos. Um terço do capital dos bancos era detido por capitalistas estrangeiros, principalmente franceses e alemães. Sete bancos tinham uma posição dominante e foram expropriados com prioridade. Todas as ações do banco foram canceladas [7]. A transferência dos bancos privados para o sector público foi acompanhada pelo repúdio das dívidas estrangeiras consideradas ilegítimas e odiosas [8]. A combinação da expropriação dos bancos e do repúdio das dívidas foi um avanço fundamental do poder revolucionário.


Em 1933 o Presidente F. Roosevelt toma uma forte medida em relação aos bancos americanos

Nos Estados Unidos, em Março de 1933, estourou uma grande crise bancária na sequência da onda de choque do crash de Wall Street de Outubro de 1929. O recém-eleito Presidente Franklin Roosevelt fechou os bancos durante uma semana em Março de 1933 [9] e no mesmo ano aprovou a lei bancária (Banking Act, também conhecido como Lei Glass-Steagall [10]), que impõe a separação dos bancos de depósito e dos bancos comerciais.

O que um governo faz ou não faz com os bancos tem consequências fundamentais para o curso da história de um país

O governo de Franklin D. Roosevelt reduziu assim a liberdade total de que gozava a comunidade financeira e bancária. Na esteira e sob a pressão das mobilizações populares na Europa durante e após a Libertação, os governos do Velho Continente impuseram um limite à liberdade do capital para operar. Como resultado, o número de crises bancárias nos trinta anos após a Segunda Guerra Mundial foi mínimo. Isto é demonstrado por dois economistas neoliberais norte-americanos, Carmen M. Reinhart e Kenneth S. Rogoff, num livro publicado em 2009 e intitulado Desta vez é diferente. Oito Séculos de Loucura Financeira. Kenneth Rogoff foi economista-chefe no FMI e Carmen Reinhart, professora universitária, foi conselheira do FMI e economista-chefe no conselho consultivo do Banco Mundial. De acordo com estes dois economistas, que são tudo menos inimigos do capitalismo, o baixo número de crises bancárias pode ser explicado principalmente «pela repressão dos mercados financeiros domésticos (em diferentes graus) e depois pela utilização maciça de controlos de capital durante muitos anos após a Segunda Guerra Mundial» [11].

De facto, durante os «trinta anos gloriosos», os governos da maioria dos países mais industrializados implementaram políticas que regulavam a circulação de capitais saindo ou entrando seus países. Forçaram também os bancos a agir com cautela e transferiram parte do sector financeiro para o sector público. De acordo com Reinhart e Rogoff, a fim de evitar o risco de falências bancárias, os governos impuseram «elevados níveis de reservas compulsórias aos bancos, para não mencionar outros dispositivos, tais como empréstimos dirigidos ou a exigência de fundos de pensões ou bancos comerciais de deter um certo nível de dívida pública».


França: Na Liberação, o governo nacionalizou o Banque de France e outros bancos

Em França, a nacionalização dos bancos na sequência da Segunda Guerra Mundial deve «ser colocada no contexto da Resistência (ao nazismo) com “um movimento vindo de baixo” (...) a Liberação deu origem à criação de comités de gestão dos trabalhadores em certas empresas, comités de fábrica na origem de “socializações espontâneas”» [12]. Como lembra Patrick Saurin, no 2 de Dezembro de 1945, o Banque de France e quatro bancos de depósito são nacionalizados. No ano seguinte, o 25 de Abril de 1946, foi a vez de certas companhias de seguros serem nacionalizadas.

Benjamin Lemoine escreve com razão no seu livro L’ordre de la dette: «Ao sair da Segunda Guerra Mundial e durante mais de vinte anos, o aparelho do Estado, através do circuito do Tesouro, recolheu recursos financeiros suficientes para escapar à pressão dos credores a maior parte do tempo. Controlava a atividade dos bancos e das finanças e harmonizou os seus próprios instrumentos de tesouraria com estes regulamentos. Do mesmo modo, o seu financiamento foi coordenado com as políticas nacionais que determinavam a quantidade de dinheiro e orientavam a atribuição de crédito à economia» [13].

Esta política permitiu à França financiar-se durante quase 40 anos sem depender da boa vontade dos mercados financeiros, dominados por bancos privados e outras empresas financeiras. Também tornou possível evitar crises bancárias.


1959: Desde o primeiro ano da revolução cubana, o governo coloca o Che na presidência do Banco Central de Cuba.

Uma nota de 5 pesos com a assinatura do Che

Colocar um dos principais líderes revolucionários à frente do banco central indicou muito claramente a importância de controlar a política monetária e financeira do país para consolidar a vitória do povo cubano sobre o regime ditatorial de Batista. Os revolucionários cubanos queriam evitar a repetição do erro da Comuna de Paris. O controlo do banco ajudou a realizar uma série de profundas reformas sociais que, apoiadas por poderosas mobilizações populares, marcaram positivamente o início da revolução cubana. [14]


França, 1982: nacionalização dos bancos

O plano de nacionalização constava do «Programa Comum de Governo» assinado no 27 de Junho de 1972 entre o Partido Socialista (PS), o Partido Comunista (PC) e os Radicais de Esquerda (MRG). Está incluído entre as «110 propostas» do candidato Mitterrand em 1980-81 (21ª proposta). A Lei da Nacionalização de 13 de Fevereiro de 1982 foi aprovada durante o primeiro mandato de sete anos do Presidente François Mitterrand e promulgada pelo governo Mauroy. Trinta e nove bancos foram nacionalizados, bem como empresas industriais e financeiras. [15] Esta onda de nacionalizações foi rapidamente seguida de uma viragem à direita por Mitterrand e pelo seu governo: a lei bancária de 24 de Janeiro de 1984 inaugurou um novo sistema bancário, construído sobre o modelo do banco universal, que pôs fim à separação entre bancos de depósito e bancos comerciais e abriu totalmente o caminho para a desregulamentação. Em 1986, os bancos foram novamente privatizados. [16]


Europa e EUA, a partir de 2008: os dispendiosos resgates dos banques e dos seus grandes acionistas

Após a crise dos bancos privados que eclodiu em 2007-2008, vários Estados, e não dos menos importantes, procederam à nacionalização de bancos privados muito grandes a fim de evitar a falência e de ajudar os grandes acionistas. Grandes bancos como o Royal Bank of Scotland (UK), Hypo Real Estate (Alemanha), ABN-Amro na Holanda, Fortis, Dexia, Belfius na Bélgica, Bankia em Espanha, Banco Espírito Santo em Portugal, etc., foram nacionalizados. Em nenhum destes casos as autoridades públicas redirecionaram as atividades das entidades nacionalizadas de uma forma útil para a população. Muitas vezes, nem sequer exercem poder nestas instituições, deixando os representantes do sector privado os dirigir. Nenhum destes bancos foi transformado em um instrumento de financiamento dos investimentos do Estado. Os custos da nacionalização foram imputados às finanças públicas e aumentaram a dívida pública. A próxima fase, conforme desejado pelos governos para servir o capital, será a de reprivatizar estes bancos, uma vez que as suas finanças foram limpas e se tornaram novamente atraentes para o sector privado. O CADTM e outras organizações tinham apresentado uma forma completamente diferente de responder à crise bancária: a recusa em salvar os banqueiros responsáveis pela crise, a expropriação dos bancos sem compensação aos principais acionistas e a sua transferência para o sector público sob controlo cidadão.


Grécia 2015

A decisão de Tsipras e Varoufakis de não mexer nos bancos e de não suspender o pagamento da dívida teve consequências desastrosas para o povo grego. Uma oportunidade histórica foi perdida

Logo na posse do governo de Tsipras deveriam ter sido tomadas medidas sobre os bancos. Enquanto o BCE tomava a iniciativa de aguçar a crise bancária grega, era necessário agir a este nível e implementar o programa de Salonica, com base no qual o governo de Syriza foi eleito a 25 de Janeiro de 2015, que anunciava: «Com Syriza no governo, o sector público assume o controlo do Fundo Helénico de Estabilidade Financeira (FHSF, em inglês HFSF) e exerce todos os seus direitos sobre os bancos recapitalizados. Isto significa que toma decisões relativas à sua administração.» É de notar que o Estado grego, através do Fundo Helénico de Estabilidade Financeira, era em 2015 o principal acionista dos quatro maiores bancos do país, que representavam mais de 85 % de todo o sector bancário grego. O problema é que, apesar das numerosas recapitalizações dos bancos gregos desde Outubro de 2008, o Estado não teve qualquer peso real nas decisões dos bancos porque as ações que detinha não davam direito de voto, devido à falta de uma decisão política nesse sentido por parte dos governos anteriores. Teria sido, portanto, necessário que o parlamento, de acordo com os compromissos de Syriza, convertesse as ações preferenciais (que não dão direito a voto) detidas pelo governo em ações ordinárias com direito a voto. Então, de uma forma perfeitamente normal e legal, o Estado poderia ter exercido as suas responsabilidades e proporcionado uma solução para a crise bancária.

Enfim, três medidas importantes precisavam ser adotadas. Em primeiro lugar, para lidar com a crise bancária e financeira aguçada pela atitude da Tróica (Comissão Europeia, BCE e FMI) desde Dezembro de 2014 a clamar pela falência dos bancos e pela decisão do BCE de 4 de Fevereiro de 2015, o governo deveria ter decretado um controlo dos movimentos de capitais, para pôr fim à sua fuga para o estrangeiro. Em segundo lugar, Stournaras deveria ter sido substituído à frente do banco central grego. Em terceiro lugar, o governo deveria ter criado um sistema de pagamento paralelo.

A decisão de Tsipras e Varoufakis de não mexer nos bancos e de não suspender o pagamento da dívida teve consequências desastrosas para o povo grego. Uma oportunidade histórica foi perdida. Isto não deve se repetir.


Este artigo foi extraído da revista do CADTM: Les Autres Voix de la Planète


Tradução de Alain Geffrouais. Revisão de Rui Viana Pereira.

Notas :

[1Período insurrecional na história de Paris que durou pouco mais de dois meses, de 18 de Março de 1871 até à «Semana Sangrenta», de 21 a 28 de Maio de 1871. Recusando a capitulação da burguesia francesa ao exército alemão que tinha chegado a Versalhes, o povo de Paris proclamou a Comuna de Paris, apoiada pela Guarda Nacional. São tomadas medidas sociais radicais, particularmente sob impulso popular. É uma das primeiras revoluções proletárias da história.

[2Prosper-Oliveir Lissagaray, História da Comuna de 1871, São Paulo, Ensaio, 1995.

[3Georges Beisson, «La Commune et la Banque de France», Association des Amies et Amis de la Commune de Paris 1871 http://www.commune1871.org/?La-Commune-et-la-Banque-de-France.

[4Carta do 22 de fevereior 1881 de Karl Marx à F. Domela Nieuwenhuis,
https://www.marxists.org/francais/marx/works/00/commune/kmfecom12.htm

[5Prosper-Olivier Lissagaray, op. cit.

[6Os representantes dos principais bancos de investimento parisienses que dirigiam o Banque de France celebraram a derrota da Comuna concedendo aos acionistas um dividendo de 300 francos por ação, em comparação com 80 francos em 1870.

[7E. H. Carr, A Revolução Bolchevique, Afrontamento, 1977.

[8Nathan Legrand e Éric Toussaint, «Há cem anos, o repúdio da dívida russa», http://www.cadtm.org/Ha-cem-anos-o-repudio-da-divida. Ver para uma apresentação mais detalhada do repúdio de dívidas : Eric Toussaint, «Rússia: origem e consequências do repúdio das dívidas de 10 de Fevereiro de 1918», http://www.cadtm.org/Russia-origem-e-consequencias-do-repudio-das-dividas-de-10-de-Fevereiro-de-1918

[9Isaac Joshua, Une trajectoire du Capital, Paris, Syllepse, 2006, p. 19.

[11Carmen M. Reinhart, Kenneth S. Rogoff, This Time Is Different: Eight Centuries of Financial Folly, Princeton University Press, 2009.

[12Patrick Saurin, «Pourquoi la socialisation du secteur bancaire est-elle préférable au système bancaire privé actuel?», http://www.cadtm.org/Pourquoi-la-socialisation-du

[13Benjamin Lemoine, L’ordre de la dette. Enquête sur les infortunes de l’État et la prospérité du marché, La découverte, Paris, 2016, p. 18.

[14Sobre o início da revolução cubana, ver Fernando Martinez Heredia, «Cuba de 1959 a 1999 desde una perspectiva histórica», http://www.cadtm.org/Cuba-de-1959-a-1999-desde-una. Sobre o papel do Che da direção do Banco central ver http://www.radiorebelde.cu/especiales/che/el-che-guevara-como-presidente-banco-nacional-cuba-20141126/
http://banconacionaldecuba.com/ernesto-che-guevara/

[16Patrick Saurin, «Pourquoi la socialisation du secteur bancaire est-elle préférable au système bancaire privé actuel?», http://www.cadtm.org/Pourquoi-la-socialisation-du

Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.