printer printer Clique no ícone verde à direita
Uma nova armadilha de dívida do Sul para o Norte – Parte 1
Evolução da dívida externa dos países em desenvolvimento entre 2000 e 2018
por Eric Toussaint , Milan Rivié
14 de Outubro de 2020

No final dos anos noventa, no início do terceiro milênio, os países em desenvolvimento (PED) estão saindo de uma crise de dívida sem precedentes, as «décadas perdidas de desenvolvimento», que começaram em 1982 com o anúncio da interrupção dos pagamentos da dívida por parte do México. Entre 1980 e 1999, houve nada menos que 280 operações de reestruturação da dívida.

Perante a pressão popular e o tamanho da crise, os credores, nessa época, instauraram financiamentos de emergência ou iniciativas de alívio da dívida. Desde 1982, estas medidas têm sido utilizadas principalmente para assegurar a continuação do serviço da dívida, para que os credores não sejam afetados por uma suspensão geral dos pagamentos da dívida, como aconteceu na década de 1930.

Além disso, novos créditos concedidos por instituições multilaterais como o FMI e o Banco Mundial vieram com condicionalidades que enfraqueceram muito os Estados e aumentaram a suas dependências ao endividamento externo.

Estas políticas neoliberais também levaram à deterioração dos serviços públicos de saúde, com consequências muito graves para a capacidade dos governos de enfrentar a pandemia de Covid19.

Além disso, a supressão das proteções alfandegárias e a supressão dos subsídios afetaram seriamente os pequenos produtores locais. Para não mencionar que entre 2000 e 2018 a dívida externa total dos países em desenvolvimento triplicou e 18 países estão em suspensão parcial ou total do pagamento. Uma nova crise da dívida está em curso, mesmo que a sua extensão e aprofundamento sejam abrandados pela continuação da política de taxas de juro muito baixas, próximas de zero, no Norte.

Se a crise é abrandou, é porque esta política de baixas taxas de juro aplicada pelos bancos centrais do Norte, combinada com a injeção maciça de liquidez nos circuitos financeiros pelos mesmos bancos centrais, significa que o grande capital do Norte continua a comprar títulos de dívida do Sul.

O grande capital do Norte (assim como os capitalistas do Sul) continua comprando títulos do Sul porque oferecem rendimentos muito mais elevados do que os títulos da dívida pública do Norte. Os capitalistas do Norte estão convencidos de que se um grande número de países do Sul tiverem de suspender os pagamentos da dívida em consequência da crise global, que está causando uma queda nas suas receitas em divisas, o FMI e o Banco Mundial concederão novos empréstimos massivos para evitar uma situação de incumprimento generalizada. Estão confiantes de que, como credores privados, terão prioridade no recebimento de reembolsos, porque os créditos do FMI e de outras agências serão concedidos na condição de que o dinheiro emprestado seja utilizado, antes de mais nada, para reembolsar os credores privados. E se ainda tiverem de enfrentar algumas perdas, os capitalistas do Norte sabem que poderão contar com a ajuda dos poderosos Estados do Norte, sob a forma de isenções fiscais e ajuda financeira. Para os capitalistas, é «cara: eu ganho, coroa: tu perdes». Ganham todas as vezes ou quase todas as vezes.

Na primeira parte desta série dedicada à evolução da dívida desde o início dos anos 2000, analisaremos em particular a relação entre o estoque da dívida e as transferências líquidas. As partes seguintes estudarão as ameaças à dívida dos países em desenvolvimento numa perspectiva global e por região.

1. Arquitetura da dívida externa dos PED

Começamos por estudar a arquitetura da dívida externa dos países em desenvolvimento do ponto de vista dos credores (arredondamos os números fornecidos pelo Banco Mundial relativos à dívida dos países em desenvolvimento em 2018):

E do ponto de vista dos devedores:

2. Evolução da dívida externa dos países em desenvolvimento entre 2000 e 2018

2.1 Lista dos PED por categoria de renda

População dos 135 PED em 2019: 6.438 milhões

  • Dos quais população de países de baixa renda [1] em 2019: 668 milhões
  • Dos quais população de países de renda média [2] em 2019: 5,769 milhões
    Lista de 29 países em desenvolvimento de baixa renda [3]: Afeganistão, Burkina Faso, Burundi, República Centro-Africana, Chade, República Democrática do Congo, Eritréia, Etiópia, Gâmbia, Guiné, Guiné-Bissau, Haiti, Libéria, Madagascar, Malawi, Mali, Moçambique, Níger, Coréia do Norte, Ruanda, Serra Leoa, Somália, Sudão, Sudão do Sul, Síria, Tajiquistão, Togo, Uganda, Iêmen.

Lista de 106 países em desenvolvimento de renda média [4]: África do Sul, Albânia, Angola, Argélia, Argentina, Armênia, Azerbaidjão, Bangladesh, Belize, Belarus, Benin, Bolívia, Bósnia e Herzegóvina, Botsuana, Brasil, Bulgária, Butão, Cabo Verde, Camarões, Camboja, Cazaquistão, China, Colômbia, Comores, Congo, Costa do Marfim, Costa Rica, Cuba, Djibuti, Domínica, Egito, El Salvador, Equador, Eswatini, Fiji, Filipinas, Gabão, Gana, Geórgia, Granada, Guatemala, Guiana, Guiné Equatorial, Honduras, Ilhas Marshall, Índia, Indonésia, Irã, Iraque, Jamaica, Jordânia, Kosovo, Laos, Lesoto, Líbano, Líbia, Macedônia do Norte, Malásia, Maldivas, Marrocos, Mauritânia, México, Micronésia, Moldávia, Mongólia, Montenegro, Myanmar, Namíbia, Nepal, Nicarágua, Nigéria, Palestina, Papua Nova Guiné, Paquistão, Paraguai, Peru, Quênia, Quiribati, República do Quirguistão, República Dominicana, Rússia, Salomão (Ilhas), Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas, Samoa, Samoa Americana, São Tomé e Príncipe, Senegal, Sérvia, Sri Lanka, Suriname, Tailândia, Tanzânia, Timor-Leste, Tonga, Tunísia, Turcomenistão, Turquia, Tuvalu, Ucrânia, Uzbequistão, Vanuatu, Venezuela, Vietnã, Zâmbia, Zimbábue.

Tabela 1: Evolução do estoque da dívida e das transferências líquidas (externa total e pública) dos países em desenvolvimento entre 2000 e 2018


Tabela 1: Evolução do estoque da dívida e Évolution du stock de la dette et du transfert net (extérieure totale et publique) des PED entre 2000 et 2018

Total PED (dívida a longo prazo)
Dívida externa total Dívida externa pública Dívida ao BM
Estoque total Tranferência líquida Estoque total Tranferência líquida Estoque total Tranferência líquida
2000 1 695,49 - 103,29 1 251,67 - 30,18 192,42 8,07
2001 1 664,51 - 53,23 1 227,63 - 45,95 195,32 7,46
2002 1 678,11 - 78,04 1 264,93 - 57,59 204,93 - 0,02
2003 1 802,47 - 2,39 1 321,96 - 61,15 215,88 - 2,33
2004 1 908,25 17,47 1 362,27 - 36,55 224,13 2,34
2005 1 914,74 35,83 1 247,33 - 53,87 215,34 2,95
2006 2 072,05 84,08 1 212,16 - 84,79 189,87 - 0,01
2007 2 433,46 347,36 1 321,55 12,16 200,12 5,47
2008 2 690,78 62,32 1 372,37 - 25,72 206,87 7,33
2009 2 831,74 48,78 1 476,09 36,30 223,78 17,25
2010 3 084,27 571,81 1 612,27 104,30 241,55 22,50
2011 3 541,84 545,39 1 750,44 76,89 246,00 64,66
2012 3 979,33 373,02 1 960,36 133,31 255,88 11,95
2013 4 410,65 608,87 2 173,52 152,71 270,61 13,98
2014 4 713,42 317,70 2 330,10 126,48 274,56 14,88
2015 4 708,52 - 537,47 2 349,13 17,16 282,70 17,29
2016 5 012,75 - 9,45 2 490,14 58,25 291,62 13,57
2017 5 379,44 479,82 2 816,13 177,60 315,73 12,85
2018 5 519,20 218,91 2 933,94 44,48 324,91 14,77

Montante da dívida pública externa dos países de baixa renda:

  • em 2000: US$ 79 bilhões
  • em 2018: $118 bilhões de dólares

Montante da dívida pública externa dos países de renda média :

  • em 2000: US$ 1,173 bilhão
    • Dos quais países de renda média baixa: US$ 427 bilhões
    • Dos quais países de renda média alta: US$ 745 bilhões
  • em 2018: US$ 2,816 bilhões
    • Dos quais países de renda média baixa: US$ 1,031 bilhão
    • Dos quais países de renda média alta: US$ 1,785 bilhão


2.2 Explicações resumidas

A tabela 1 cobre o período 2000-2018 [5]. Este longo período inclui as medidas de alívio da dívida concedidas pelos credores públicos (Estados do Norte, FMI, Banco Mundial, outros bancos multilaterais regionais) após a crise da dívida do Terceiro Mundo, [6] que começou nos anos oitenta.

A coluna 2 apresenta a variação do estoque da dívida externa total de longo prazo do conjunto dos PEDs para os quais o Banco Mundial fornece dados [7] (dívida de longo prazo, dívida devida e garantida pelas autoridades públicas dos países em desenvolvimento, bem como dívida de empresas privadas nos países em desenvolvimento). Intitulada «dívida externa pública», a coluna 4 apresenta a evolução do estoque total da dívida externa de longo prazo somente devida e/ou garantida pelas autoridades públicas dos PED. A coluna 6, intitulada «dívida para com o Banco Mundial», apresenta a mudança no estoque da dívida externa de longo prazo dos PED devidos ao Banco Mundial (BIRD e IDA).

As colunas 3, 5 e 7 apresentam a transferência líquida da dívida sobre os três tipos de estoques mencionados acima.

A transferência líquida sobre a dívida representa a diferença entre o que um país recebe sob a forma de empréstimos e o que ele reembolsa (incluindo capital e juros, também chamados de serviço da dívida). Se o montante for negativo, significa que naquele ano o país pagou mais empréstimos do que recebeu.


2.3 Interpretação da tabela

Dois períodos podem ser distinguidos. O primeiro período vai de 2000 a 2007-2008. Um segundo período até 2018.

Primeiro período: De 2000 a 2007-2008, a dívida externa total estagna e depois aumenta a um ritmo constante a partir de 2003. De 1.695 em 2000, atingiu US$ 2.433 bilhões em 2007. A dívida pública externa, por outro lado, permanece em um nível constante durante todo o período, subindo de 1.252 em 2000 para US$ 1.322 bilhões em 2007.

Ao mesmo tempo, a transferência líquida (do total da dívida externa e pública) é em grande parte negativa. Isto significa que os PED estão pagando mais do que estão recebendo de empréstimo.

Vários fatores cíclicos entram em jogo. A maioria dos PED acaba de passar ou ainda está passando por uma grande crise de dívida e estão limitados em suas ações. Embora as altas taxas de juros dos principais bancos centrais estivessem em declive entre 2000 e 2008, eles estão atraindo investimentos para os países ocidentais tanto quanto estão resfriando o desejo de empréstimos dos países em desenvolvimento. Neste contexto, a liquidez a ser investida é mais rentável nos países do Norte. Para os países do Sul, trata-se essencialmente de um período de fuga de capitais. Severamente afetados pelos planos de ajuste estrutural exigidos pelos credores, vários países em desenvolvimento estão simultaneamente fazendo reembolsos antecipados para se libertarem das condições impostas pelos credores oficiais (credores bilaterais e multilaterais). Este é o caso em particular do Brasil, Argentina, Uruguai, Filipinas, Indonésia, Tailândia, Nigéria, Argélia e Rússia, que aproveitaram uma recuperação nos preços das commodities a partir de 2005 para utilizar as divisas obtidas para pagar sua dívida externa.

No espaço de 6 anos, os países em desenvolvimento reembolsaram US$370 bilhões aos credores, o equivalente a dois Planos Marshall. Entretanto, a dívida externa (total e/ou pública) não está diminuindo.

Segundo período: A partir de 2008, a situação se inverte significativamente. Em 10 anos, a dívida externa irá mais que dobrar. De US$ 2 691 bilhões a US$ 5 519 bilhões para o total da dívida externa. De US$ 1 372 bilhões a US$ 2 934 bilhões para a dívida externa pública.

A curva de transferência líquida é invertida, ela se torna positiva. Os PED recebem mais empréstimos do que pagam.

Vários fatores devem ser considerados. O principal deles diz respeito aos efeitos da crise do subprime. Em 2007, a bolha do crédito subprime estourou nos Estados Unidos. Muito rapidamente, a crise alastrou a todos os principais bancos ocidentais, todos interligados. O mundo financeiro entrou em pânico e temeu um colapso do sistema. Chamados para o resgate, os Estados do Norte salvaram esses bancos através de uma dívida pública maciça possibilitada pelas políticas de quantitative easing [8] aplicadas com urgência pelos principais bancos centrais (Reserva Federal dos EUA, Banco Central Europeu, etc.). As principais taxas de juros dos bancos centrais atingem níveis historicamente baixos. De 4,75 % e 4,25 % em 2007, as taxas do Fed e do BCE passam resptivamente para 0,25 % e 1 % em 2009, e 0,5 % e 0,05 % em 2015. Aliviados, os investidores procuram então investir sua liquidez substancial nos setores mais rentáveis. A dívida dos países em desenvolvimento lhes oferece esta perspectiva. Do lado do credor, os lucros a serem obtidos nos países em desenvolvimento são mais altos do que em uma economia ocidental em crise. Do devedor, ele beneficia de taxas de juros mais interessantes do que anteriormente. Ao mesmo tempo, assistimos de 2008 a 2013 ao «superciclo das matérias-primas», com os preços a atingirem níveis nunca vistos. Por consequência, os PED aumentaram as suas reservas de câmbios, graças à renda proveniente das exportações em alta. Dentro desta conjuntura favorável, incentivados pelos investidores e pressionados pelas instituições financeiras internacionais a recorrerem a financiamentos privados para desenvolverem as suas infraestruturas, os PED são incitados a endividarem-se massivamente, principalmente por via de obrigações e nos mercados financeiros. Para os países do Sul é um período de afluxo de capitais.


Tradução de Alain Geffrouais.
Revisão e edição de Rui Viana Pereira.


As partes seguintes estudarão as ameaças da dívida dos PED, do ponto de vista global e por região.


Notas :

[1São considerados pelo Banco Mundial países de baixa renda aqueles com um PIB per capita de US$ 1 035 ou menos.

[2São considerados pelo Banco Mundial países de renda média aqueles com um PIB per capita entre US$ 1 036 e US$ 12 535. A categoria é ainda subdividida em países de renda média baixa (PIB per capita entre US$ 1 036 e US$ 4 045, e países de renda média alta com PIB per capita entre US$ 4 045 e US$ 12 535).

[3A lista dos países de renda baixa e renda média tem por referência a lista criada pelo Bnaco Mundial. Veja: «World Bank Country and Lending Groups», consultado a 28 julho 2020. Disponível em: https://datahelpdesk.worldbank.org/knowledgebase/articles/906519-world-bank-country-and-lending-groups

[4Os países de renda média alta estão em itálico

[5No momento da redação, os números disponíveis no site do Banco Mundial vão até 31 de dezembro de 2018.

[6Aqui nos referimos em particular à Iniciativa dos Países Pobres Altamente Endividados (I-PPTE) e à Iniciativa Multilateral de Alívio da Dívida (I-ADM), lançada respectivamente em 1996 e 2005 para 39 países.

[7Salvo indicação em contrário, os dados fornecidos neste capítulo são provenientes das Estatísticas da Dívida Internacional do Banco Mundial. Referem-se a 122 países em desenvolvimento. Entre os países para os quais o Banco Mundial não fornece dados: Cuba, Iraque, Líbia, Coreia do Norte. Para mais detalhes, veja: https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/32382/9781464814617.pdf?sequence=7&isAllowed=y

[8O quantitative easing consiste em uma política de recompra massiva de títulos de dívida pública e privada, possibilitada pela criação monetária e com o objetivo declarado de revitalizar a economia após um período de crise. Para uma análise crítica, ver Éric Toussaint, «2007-2018: Les causes d’une crise financière qui a déjà 11 ans», CADTM, 25 de julho de 2018. Disponível em https://www.cadtm.org/2007-2018-Les-causes-d-une-crise-financiere-qui-a-deja-11-ans

Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

Milan Rivié

CADTM Belgique
milan.rivie @ cadtm.org
Twitter : @RivieMilan