Na seção anterior, vimos que a dívida externa dos países em desenvolvimento (PED) passa por duas fases entre 2000 e 2018. De 2000 a 2007-2008, a dívida estagna ou aumenta moderadamente em paralelo com transferências líquidas negativas. De 2008 a 2018, é o contrário, a dívida dobra e as transferências líquidas são positivas. Neste artigo, analisamos vários fatores que influenciam diretamente a capacidade dos PED de continuar pagando a dívida.
Desde que seja legítimo e investido em setores produtivos, úteis e essenciais da população, o endividamento não é ruim em si mesmo. Mas na maioria das vezes os países caem na armadilha da dívida. Diante do aumento da dívida dos países em desenvolvimento, geralmente os defensores do pensamento econômico dominante dizem: as somas emprestadas serão investidas na economia, gerarão crescimento, empregos, melhorarão a infraestrutura, aumentarão o PIB e, em última instância, produzirão a riqueza necessária para pagar a dívida em paralelo com uma melhora na renda. Na verdade, esta interpretação ignora o diferencial entre as somas emprestadas e aquelas recebidas (através das generosas comissões e taxas cobradas pelos credores, ou através das taxas de juros), o desvio de dinheiro público (permitido pelo sigilo bancário, assegurado e defendido pelos grandes bancos privados com o apoio de governos e instituições como o Banco Mundial, o FMI, a OCDE, bancos multilaterais regionais como o Banco Interamericano de Desenvolvimento, o Banco Africano de Desenvolvimento, o Banco Asiático de Desenvolvimento, o Banco Europeu de Investimentos, etc.), os mecanismos comerciais e acordos sobre investimentos estrangeiros que empobrecem os Estados e suas populações (tratados de livre comércio, tratados bilaterais de investimento, repatriação de lucros de multinacionais, etc.), ou os choques exógenos que enfraquecem gravemente a capacidade dos poderes públicos de defender as populações se continuarem a pagar a dívida (efeitos catastróficos da crise ecológica global, crise sanitária internacional, crise econômica internacional, etc.). Aqueles que explicam que o endividamento público é um passo obrigatório para os países do Sul se quiserem se fortalecer e se desenvolver, não levam em conta o facto de que os países em desenvolvimento são muito vulneráveis a fatores exógenos. Nenhum dos países em desenvolvimento, com exceção da China – que na realidade não faz mais parte dos PED, exceto nas estatísticas do Banco Mundial e outros organismos internacionais –, tem poder suficiente para ter um impacto significativo sobre variáveis como as taxas de juros internacionais, a taxa de câmbio da moeda nacional em relação às moedas fortes, o preço das matérias-primas (ou o que se chama razão de troca), grandes fluxos de investimento, as decisões das instituições multilaterais (FMI, Banco Mundial, OMC, etc.). Em caso de choque em uma ou mais destas variáveis, os países em desenvolvimento podem se ver muito rapidamente sufocados ou, de qualquer forma, muito fortemente desestabilizados.
Gráfico 1: Evolução da dívida pública externa dos CD por tipo de credor (em bilhões de dólares americanos)
No gráfico acima, reencontramos as duas fases mencionadas acima. Além disso, os credores podem ser divididos em três categorias:
Ao contrário dos empréstimos de credores oficiais, os empréstimos privados têm a vantagem de estarem livres de condicionalidades políticas. Por outro lado, as taxas de juros são mais altas e podem variar de acordo com as classificações dadas pelas agências de classificação ou de acordo com a evolução das principais taxas de juros estabelecidas pelos bancos centrais.
Gráfico 2: Variações das taxas de juros Prime Rate e dos principais Bancos Centrais [1] (em %)
Em 1979, o aumento brutal das taxas de juros da FED por decisão unilateral dos Estados Unidos foi um dos dois principais fatores que desencadearam a crise da dívida do Terceiro Mundo. Após a crise do subprime em 2007-2008, os bancos centrais americanos e europeus aplicaram uma taxa de juros muito baixa. Sem nunca conseguirem realmente melhorar a situação econômica, eles continuam essa política. Com a nova turbulência financeira no Outono de 2019 e os efeitos colaterais da covid-19, isso deve continuar, mas até quando? Se as taxas subissem, o custo do pagamento da dívida aumentaria significativamente para os países em desenvolvimento. Esse risco é reforçado pelo perfil da dívida em moeda estrangeira dos países em desenvolvimento. 75 % é denominada em dólares estadunidenses, 9 % em euros e 4,4 % em ienes (veja gráfico 3).
Gráfico 3: Mudanças na composição da dívida externa pública dos PEDS por moeda [2] (em %)
Percebe-se de imediato em azul que a esmagadora maioria dos empréstimos é contraída em dólares americanos (75 %). Seguem em amarelo os empréstimos denominados em euros (9 %) e em vermelho «todas as outras moedas» (8,4 %), cujo nítido aumento pode ser se associado em grande parte ao yuan, a divisa do Estado chinês, que é hoje um dos maiores credores dos países em desenvolvimento.
Gráfico 4: Evolução das taxas de juros dos empréstimos dos PEDs (em %)
O gráfico representa as taxas médias de juros pagas pelos PED. Em cinza, os de credores privados, em laranja os de credores oficiais e em azul a média dos dois.
Vemos uma queda nas taxas de juros, seguindo as decisões do Fed e do BCE. Embora menor do que antes, observe o nível das taxas de juros. Em seu ponto mais baixo entre 2013 e 2015, atingiram 3 % em média, e a partir de 2015 voltam a subir até 4 % em média. A título de comparação, países como a França, Alemanha, Japão ou Estados Unidos tomaram empréstimos em 2019-2020 a taxas negativas ou a taxas que variam entre 0 e 1 %.
É importante notar que este gráfico mostra, portanto, um aumento nas taxas de juros a partir de 2015. O forte aumento da dívida dos países em desenvolvimento, suas baixas classificações nos mercados financeiros, correlacionadas com o fim do superciclo das commodities e a desaceleração do crescimento mundial no contexto da guerra comercial entre os Estados Unidos e a China, faz com que os credores temam inadimplências em série já em 2020. Como resultado, os credores estão se «protegendo» aumentando o prêmio de risco que exigem dos tomadores do Sul. Está em curso uma nova crise da dívida? A armadilha da dívida está se fechando nos países em desenvolvimento? Vários fatores estão se movendo nesta direção, o que veremos agora.
Ao estimar o custo do empréstimo de uma economia, deve-se levar em conta não apenas as taxas de juros (e os prêmios de risco que aumentam o custo do empréstimo), mas também as mudanças no valor da moeda do país endividado em relação à moeda em que o empréstimo é denominado. Se um país toma emprestado principalmente em dólares e sua moeda perde, por exemplo, 5 % de seu valor em relação ao dólar, o ônus do pagamento da dívida aumenta automaticamente. Entretanto, a maioria dos países do Sul viu suas moedas depreciarem-se em relação ao dólar durante o ano de 2020. Isto está claramente mostrado na Tabela 2.
Tabela 2: Variação da taxa de câmbio de 38 moedas de países em desenvolvimento em relação ao dólar americano entre 1° de março de 2020 e 3 de setembro de 2020 [3] .
{{}} | Variação da moeda (%) | Valor em 3/09/2020 | Valor em 1/03/2020 |
MMK Myanmar [kyat birmanês] | 6,87 | 1429,64 | 1337,80 |
CLP Chile [peso chileno] | 5,84 | 815,36 | 770,38 |
PHP Filipinas [peso filipino] | 5,06 | 51,04 | 48,58 |
LYD Líbia [dinar líbio] | 4,44 | 1,42 | 1,36 |
TND Tunísia [dinar tunisino] | 4,34 | 2,85 | 2,73 |
MAD Marrocos [dirham marroquino] | 4,21 | 9,62 | 9,23 |
CNY China [yuan renminbi (RMB) chinês] | 2,10 | 6,98 | 6,84 |
THB Tailândia [baht tailandês] | 0,35 | 31,55 | 31,44 |
UGX Uganda [xelim do Uganda] | 0,22 | 3705,25 | 3697,00 |
IRR Irã [riyal iraniano] | 0,17 | 42069,94 | 42000,00 |
BOB Bolívia [boliviano] | -0,31 | 6,91 | 6,93 |
BDT Bangladesh [taka] | -0,49 | 84,73 | 85,15 |
IQD Iraque [dinar iraquiano] | -0,64 | 1190,01 | 1197,66 |
AFN Afeganistão [novo afghani afegão] | -1,21 | 75,78 | 76,71 |
EGP Egito [libra egípcia] | -1,54 | 15,62 | 15,86 |
INR Índia [rupia indiana] | -1,77 | 72,23 | 73,53 |
NGN Nigéria [naira nigeriana] | -3,45 | 364,00 | 377,00 |
COP Colômbia [peso colombiano] | -4,00 | 3497,47 | 3643,38 |
GHS Gana [cedi do Gana] | -6,64 | 5,35 | 5,73 |
DZD Argélia [dinar argelino] | -6,64 | 120,12 | 128,67 |
PYG Paraguai [guarani] | -6,89 | 6517,64 | 6999,71 |
KES Quênia [xelim queniano] | -6,93 | 101,11 | 108,64 |
PKR Paquistão [rupia paquistanesa] | -7,06 | 154,04 | 165,74 |
ZAR África do Sul [rand sul-africano] | -7,11 | 15,57 | 16,77 |
MZN Moçambique [metical] | -9,31 | 65,21 | 71,90 |
MXN México [peso mexicano] | -9,46 | 19,71 | 21,77 |
UYU Uruguai [peso uruguaio] | -9,58 | 38,57 | 42,65 |
KZT Cazaquistão [Tenge Cazaque] | -9,66 | 381,52 | 422,31 |
RUB Rússia [rublo russo] | -10,98 | 67,06 | 75,33 |
ETB Etiópia [birr etíope] | -12,35 | 32,28 | 36,83 |
CDF Congo/Kinshasa (RDC) [franco congolês] | -13,77 | 1694,59 | 1965.29 |
TRY Turquia [lira turca] | -16,33 | 6,23 | 7,44 |
BRL Brasil [real brasileiro] | -16,46 | 4,49 | 5,37 |
ARS Argentina [peso argentino] | -16,67 | 62,15 | 74,58 |
AOA Angola [kwanza angolano] | -19,47 | 492,22 | 611,20 |
ZMW Zâmbia [kwacha zambiana] | -23,34 | 15,06 | 19,64 |
VES Venezuela [bolívar soberano] | -77.97 | 73617.09 | 334183.06 |
ZWL Zimbabué [dólar do Zimbabué] | -78,48 | 17,95 | 83,40 |
Mapa: Variações da taxa de câmbio em relação ao dólar entre 1° de março de 2020 e 3 de setembro de 2020 [4].
A tabela 2 e o mapa acima mostram a evolução das moedas de 38 países em desenvolvimento e do mundo como um todo em relação ao dólar americano entre 1 de março de 2020, quando a pandemia de Covid-19 se tornou global, e 3 de setembro de 2020, data da redação desta subparte.
Com exceção dos países do Norte, dos países em desenvolvimento da zona do euro, dos 15 países da zona CFAF (na África Ocidental, África Central e Comores), de países que indexaram suas moedas à dos Estados Unidos (por exemplo, Equador) e da China, pode-se notar que a esmagadora maioria das moedas dos países em desenvolvimento se depreciou durante este período. Na verdade, esta depreciação estava em andamento desde 2015. Ela acelerou com as consequências econômicas colaterais do coronavírus.
Vários fatores explicam esta evolução.
As classes dominantes no Sul têm claramente uma parte de responsabilidade porque organizam a fuga de capitais. De facto, as classes dirigentes locais compram dólares (ou outra moeda forte) para colocar «seu» dinheiro com segurança no Norte ou em um paraíso fiscal tropical em vez de investi-lo na economia de seu país. Esta compra de dólares com a moeda local torna o dólar mais caro em relação a essa moeda. Isto leva o banco central do país em questão a tentar limitar a depreciação da moeda local, comprando-a de volta com os dólares que tem em suas reservas. Isto tem o efeito de reduzir suas reservas de divisas. Isto é o que tem acontecido na Turquia desde 2015. É também o que aconteceu dramaticamente no Líbano em 2020. A diminuição das reservas cambiais do banco central reduz sua capacidade de fazer pagamentos da dívida soberana em dólares ou em outra moeda forte. Tanto que o país é forçado a se declarar incapaz de pagar, ou seja, em default total ou parcial de pagamento. Isto também foi o que aconteceu na Argentina e no Líbano em 2020.
Outros atores são responsáveis pela depreciação da moeda local: por exemplo, grandes empresas estrangeiras que repatriam maciçamente seus lucros para a matriz localizada no Norte, ou fundos de investimento estrangeiros que vendem as ações que compraram anteriormente na bolsa de valores do país em questão. Outro fator que funciona contra a moeda local é a queda nas exportações e, portanto, nas receitas em dólares provenientes da venda de produtos exportados no mercado mundial.
Outro fator que explica esta depreciação/desvalorização das moedas do Sul em relação ao dólar é a forte queda nos preços das commodities a partir de 2015 (ver parte 3 desta série). Em grande parte destinados à exportação, uma queda em seus preços significa consequentemente uma queda proporcional nas receitas dos Estados, e desequilibra negativamente sua balança comercial (relação entre o custo das importações e as receitas de exportação). Como resultado, as reservas cambiais necessárias para pagar a dívida externa são reduzidas em conformidade.
Ao mesmo tempo, com as depreciações, a quantidade de moeda local que deve ser convertida em dólares para pagar a dívida externa (ou a dívida interna se estiver indexada ao dólar, o que é bastante comum) aumenta muito acentuadamente, de acordo com um mecanismo aritmético simples. De facto, mesmo que as taxas de juros permanecessem em níveis historicamente baixos (ver mais acima), os países teriam que recorrer cada vez mais às suas reservas de divisas para pagar a dívida. Como as receitas de exportação estão diminuindo como resultado da crise econômica global agravada de forma brutal e monumental pelos efeitos da covid-19, a situação está se tornando crítica para toda uma série de países em desenvolvimento, incluindo os chamados países emergentes, como a África do Sul (-7,11 %), Argentina (-16,67 %), Brasil (-16,46 %), Índia (-1,77 %) e México (-9,46 %). Vários dos países envolvidos já se encontram em situação de superendividamento ou suspensão de pagamentos.
Na parte 3, analisaremos a evolução dos preços das matérias-primas, o cronograma de pagamento da dívida e os fatores agravantes gerados pela crise global do coronavírus.
Tradução de Alain Geffrouais. Revisão de Rui Viana Pereira.
[1] A taxa Prime, aqui em azul, é a taxa interbancária cobrada pelos bancos pelos empréstimos de curto prazo que concedem uns aos outros. Normalmente é 3 pontos mais alta do que a taxa estabelecida pelo FED. O laranja mostra as taxas de juros fixadas pela Reserva Federal dos EUA, cinza pelo Banco Central Europeu e amarelo pelo Banco Central do Japão. Dólares americanos, euros e ienes são as 3 principais moedas mutuárias.
[2] As principais moedas comerciais indicadas pelo Banco Mundial estão presentes neste gráfico. Em azul o dólar americano, em verde os direitos de saque especiais do FMI (DSE – cesta de moedas), em cinza o iene japonês, em amarelo o euro e em vermelho «todas as outras moedas». Para melhor leitura do gráfico e por causa de sua proporção de menos de 1 %, excluímos o franco suíço (0,38 %), a libra esterlina britânica (0,27 %) e «múltiplas moedas» (0,53 %).
[3] Dados coletados do site FXTOP. A moeda de referência é o dólar americano em 3 de setembro de 2020. Acesso em 3 de setembro de 2020. Disponível em: https://fxtop.com/fr/tendances-forex.php
[4] Quanto mais vermelho e preto a cor tende a ser, mais a moeda nacional se desvalorizou em relação ao dólar americano. Quanto mais a cor tende para o verde-escuro, mais a moeda tem se valorizado em relação ao dólar americano. Consultado em 3 de setembro de 2020. Fonte: https://fxtop.com/fr/carte-mondiale-taux-change-devises.php
docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.
CADTM Belgique
milan.rivie @ cadtm.org
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