O FMI e o Banco Mundial têm 80 anos. 80 anos de neocolonialismo financeiro e de imposição de políticas de austeridade em nome do pagamento da dívida. 80 anos já bastam! As instituições de Bretton Woods devem ser abolidas e substituídas por instituições democráticas ao serviço de uma bifurcação ecológica, feminista e antirracista. Para assinalar estes 80 anos, publicamos todas as quartas-feiras, até julho, uma série de artigos que analisam em pormenor a história e os danos causados por estas duas instituições.
O Equador oferece o exemplo de um governo que toma a decisão soberana de investigar o processo de endividamento a fim de identificar as dívidas ilegítimas para depois suspender o pagamento. A suspensão do pagamento de uma grande parte da dívida comercial, seguida da sua recompra a menor custo, mostra que o governo não se limitou a denúncias retóricas. Conduziu de facto uma reestruturação unilateral de parte da sua dívida externa e obteve uma vitória contra os credores privados, principalmente bancos. Em 2007, o governo do Equador, no início da presidência de Rafael Correa, entrou em conflito com o Banco Mundial. Neste capítulo, começamos por analisar os empréstimos concedidos pelo Banco Mundial e pelo FMI e depois relatamos a acção do Governo, principalmente em relação à auditoria da dívida e à suspensão do pagamento de parte da dívida. Em seguida, discutiremos os limites da acção do governo de Rafael Correa e do seu sucessor Lenin Moreno.
No Equador, o FMI vem impondo desde 1983 o seu programa de estabilidade macroeconómica de curto prazo, a fim de restaurar a capacidade do país para pagar as suas dívidas. Este programa materializou-se na assinatura de uma «carta de intenções» entre o país endividado e o FMI, que planeou uma política antissocial (austeridade fiscal, desvalorização, liberalização dos preços, etc.). Entre 1983 e 2003, o Equador assinou 13 cartas de intenção. Sucessivos governos à frente do Equador, até a eleição de Rafael Correa em novembro de 2006, não hesitaram em assinar tais documentos, apesar do impacto largamente negativo das medidas preconizadas sobre a maioria da população. Desde 2017, o Presidente Lenin Moreno voltou totalmente ao seio do FMI e do Banco Mundial, o que levou a grandes mobilizações populares, particularmente em outubro de 2019.
A reviravolta neoliberal radical aprofundou-se especialmente na década de noventa, época da «consagração» do consenso de Washington e da entrada da economia equatoriana na economia globalizada, especialmente a partir da presidência de Sixto Durán Ballén, em 1992. Isto coincide com a agenda do Banco Mundial, que aumenta muito a sua actividade e influência no Equador a partir do final dos anos oitenta e início dos anos noventa. No Equador, como em muitos países em desenvolvimento, o Banco concedeu empréstimos ligados a medidas visando a abertura dos mercados, a redução do papel do Estado na gestão da economia e o aumento do poder dos bancos privados na regulação dos fluxos monetários.
O que é o Consenso de Washington? Trata-se de uma teorização, elaborada em 1989 pelo economista britânico John Williamson, professor nos EUA, sobre as medidas incluídas nos planos de ajustamento estrutural impostas pelo FMI aos países em desenvolvimento (PED) após a crise da dívida de 1982. Esse consenso abarca um conjunto de dez medidas, umas de efeito imediato, ditas medidas de choque, outras consistindo em reformas estruturais:
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O Banco compartilha, ao lado de uma classe política cúmplice, a responsabilidade de um endividamento fraudulento e ilegítimo, feito em detrimento dos direitos humanos fundamentais e da soberania do Estado.
Entre 1990 e julho de 2007, o Banco Mundial (BIRD) desembolsou 1,44 mil milhões US$ para o Equador, enquanto durante o mesmo período o governo equatoriano reembolsou a essa instituição 2,51 mil milhões US$. Isto significa que durante o período de 1990 a julho de 2007, o Banco Mundial teve um lucro de 1,07 mil milhões US$ às custas do povo equatoriano. O Banco Mundial tem sido mais do que reembolsado. O saldo da dívida pública com esse organismo era de 704,4 milhões US$ em 30 de novembro de 2007.
O Banco Mundial já foi mais do que reembolsado
Se o Equador tivesse decidido em 2008 repudiar toda sua dívida ao Banco Mundial (704,4 milhões US$), como foi recomendado pela Comissão de Auditoria da Dívida (ver abaixo), essa decisão teria economizado mais de mil milhões US$ (uma vez que ao principal a ser pago deveriam ser acrescentados os juros). Tal quantia teria financiado durante 15 anos o pequeno-almoço e o almoço de 1,28 milhões de crianças em idade escolar [2] . O montante economizado representa cinco anos de cobertura sanitária para a população pobre e indigente do país [3].
A intervenção do Banco Mundial na definição das políticas económicas e sociais aplicadas no Equador foi intensa e permanente até 2006 e, após uma interrupção de alguns anos no início do mandato de Rafael Correa, foi retomada. A responsabilidade do Banco pela explosão das crises financeiras começa nos anos 1993-1994. Vários empréstimos importantes que o Equador tem que reembolsar até 2025 e mais além ao Banco Mundial foram claramente destinados a financiar a adopção de reformas legais visando a desregulamentação completa do sector bancário. Essas reformas favoreceram, se não causaram, várias crises financeiras durante os anos 90, incluindo a grande crise bancária de 1999, que teve consequências terríveis para a economia e a população do país. A intervenção do Banco Mundial foi claramente nefasta e constitui, em suma, um dolo para o país [4].
No quador o Banco Mundial favoreceu várias crises financeiras ao longo da década de 1990, incluindo a grande crise bancária de 1999
O papel nefasto do Banco Mundial em termos de desregulamentação financeira
A intervenção do Banco Mundial na definição das políticas económicas e sociais aplicadas no Equador foi intensa e permanente até 2006 e, após uma interrupção de alguns anos no início do mandato de Rafael Correa, foi retomada. A responsabilidade do Banco pela explosão das crises financeiras começa nos anos 1993-1994. Vários empréstimos importantes que o Equador tem que reembolsar até 2025 e mais além ao Banco Mundial foram claramente destinados a financiar a adopção de reformas legais visando a desregulamentação completa do sector bancário. Essas reformas favoreceram, se não causaram, várias crises financeiras durante os anos 90, incluindo a grande crise bancária de 1999, que teve consequências terríveis para a economia e a população do país. A intervenção do Banco Mundial foi claramente nefasta e constitui, em suma, um dolo para o país .
A Lei de Modernização do Estado, Privatizações e Prestação de Serviços Públicos por Iniciativa Privada (Ley de Modernización del Estado, Privatizaciones y Prestación de Servicios Públicos por parte de la iniciativa privada) de 1993 abre o caminho para a participação do sector privado em áreas antes reservadas ao Estado e para a fusão ou abolição das instituições públicas. Aumenta os poderes do Conselho Nacional de Modernização (CONAM, Consejo Nacional de Modernización), uma entidade que promove a privatização de serviços públicos, particularmente de hidrocarbonetos, electricidade e água.
A Lei do Regime Monetário e do Banco de Estado (Ley de Regimen monetario y Banco de Estado) reforça a independência do Banco Central e consagra a livre determinação das taxas de juros e o livre acesso ao mercado de divisas.
A Lei de Promoção de Investimentos (Ley de Promocion de Inversiones) de 1993 eliminou o controle sobre os fluxos de capital.
A Lei Geral das Instituições do Sistema Financeiro (Ley General de Instituciones del Sistema Financiero) de 1994 continuou com profundas mudanças na liberalização das atividades bancárias – escritórios offshore, multiplicação de entidades financeiras, créditos do Banco Central a bancos privados (causando a explosão da inflação), etc. – e reduziu as capacidades e as atribuições da supervisão bancária.
Estas disposições legais levaram à criação no Banco Central do Equador de uma conta única para todas as instituições que devem receber transferências do Ministério de Economia e Finanças. Isto resultou no uso de redes bancárias privadas e na redução do número de contas detidas por instituições públicas no Banco Central. Isto foi conforme ao compromisso do Governo equatoriano, na carta de intenções assinada em 1990 com o FMI, de preparar, com a ajuda do Banco Mundial, uma reforma abrangente das finanças dos municípios, conselhos provinciais e outras entidades governamentais, a fim de reduzir as transferências do Governo central e supostamente melhorar as decisões de gastos em nível local e responder a elas com um sistema mais transparente e justo de participação nas receitas públicas.
Como Piedad Mancero, que foi membro da Comissão de Auditoria da Dívida do Equador desde 2007, explica:
«As consequências não tardaram: aumento desproporcional do número de empresas fi-nanceiras, uma primeira crise em 1995, especulação monetária, pressão sobre a taxa de câmbio, fuga de capitais equatorianos e a grande falência bancária de 1998-1999. (...) É óbvio: os recursos do Banco Central alocados para tais créditos vieram de emissões mone-tárias que geraram um crescimento galopante da massa monetária em circulação, uma pressão inflacionária incontrolável e procura especulativa por moeda estrangeira, o que contribuiu para a grande crise financeira de 1999 e a adopção precipitada da dolarização em janeiro de 2000.» [5]
Finalmente, em 1998, a Lei do Mercado de Capitais (Ley de Mercado de Capitales) e a Lei de Reorganização em Matéria Económica (Ley de Reordenamiento en Materia Economico) completaram o trabalho demolidor do Banco Mundial. A Agência de Garantia de Depósitos (Agencia de Garantía de Depósitos), AGD, é criada: ela garante os depósitos, tanto offshore como onshore, de forma ilimitada, e abre a possibilidade de o Banco Central conceder crédito a bancos em dificuldade e adquirir títulos da AGD [6]. Oficialmente criada para evitar o contágio da crise e para proteger os pequenos poupadores, a AGD foi de facto instituída para favorecer os proprietários e grandes devedores dos bancos privados, particularmente os bancos Filanbanco e Finagro [7].
A crise financeira teve consequências desastrosas para todos os equatorianos. O custo total da crise é estimado pela AGD em 8 072 milhões US$, equivalente a 83% do orçamento geral do Estado em 2007, ou o equivalente a duas décadas de cobertura de saúde para toda a população. Estes recursos estatais, que foram abusivamente utilizados, não foram investidos em educação, saúde, criação de empregos, etc., e não foram utilizados para o benefício da população como um todo. Acima de tudo, o Estado teve que financiar o resgate de bancos contraindo novas dívidas. O nível de pobreza aumentou drasticamente, e 1 milhão de Equatorianos e Equatorianas foi forçado(a)s a emigrar entre 1999 e 2005 [8].
A responsabilidade do Banco Mundial pela crise equatoriana é clara, devido à sua intervenção activa junto das autoridades do país para que estas adoptassem as reformas neoliberais que levaram à crise do final dos anos 90.
Convém destacar a relação entre as medidas impostas ao Equador, que levaram diretamente à crise de 1999, e os efeitos das políticas neoliberais também aplicadas nos países do Norte, particularmente nos Estados Unidos, que também passaram por várias crises financeiras (a crise de 2001 e a crise de 2007-2008). A desregulamentação em favor do mundo das finanças, no âmbito do Consenso de Washington, que atendia às expectativas da Casa Branca e de Wall Street (como foi repetidamente denunciado por Joseph Stiglitz, vencedor do Prémio Nobel de Economia de 2001), foi imposta tanto ao Norte quanto ao Sul e produziu os mesmos efeitos catastróficos.
Esta desregulamentação rompeu definitivamente com as medidas tomadas após a crise dos anos 1929 e 1930 nos Estados Unidos. Deve-se lembrar que esta crise do século passado tinha sido precedida por uma onda de desregulamentação e especulação. Como reacção, durante a presidência de F. D. Roosevelt, isto levou à lei bancária de 1933, o Glass-Steagall Act, que proibiu o exercício simultâneo de várias actividades financeiras e deu origem a dois tipos completamente separados de instituições bancárias. Em 1999, sob a presidência de Clinton, esta lei foi revogada sob pressão dos principais bancos. Assim, a mesma orientação é aplicada no Equador e nos Estados Unidos.
No centro dos factores que explicam a crise imobiliária americana de 2007 está a desregulamentação bancária radical iniciada nos anos 80 e aprofundada sob a administração Clinton no final dos anos noventa, em um contexto de crescente especulação nos mercados financeiros e multiplicação de derivados financeiros, com as instituições financeiras fora do controle das autoridades públicas (hedgefunds [9], por exemplo).
O Banco Mundial havia apoiado as forças financeiras nacionais que no Equador se consideram donas do país e se servem do Estado e do Governo para alcançar fins egoístas
O Banco Mundial havia apoiado as forças financeiras nacionais que no Equador se consideram donas do país e se servem do Estado e do Governo para alcançar fins egoístas. Tem intervindo para desestabilizar governos que tentavam implementar políticas económicas e sociais voltadas para uma maior justiça social e soberania face aos Estados Unidos.
Este foi o caso em 2005, com a intervenção do Banco Mundial contra as medidas tomadas por Rafael Correa, então ministro da Economia sob o governo do presidente Alfredo Palacios (ver mais baixo).
Desde o início dos anos noventa, o Banco Mundial vem concedendo empréstimos [10] em vários sectores chave económicos e sociais. As áreas prioritárias do quadro jurídico são reformadas, para reduzir a intervenção estatal, para privatizar empresas estatais, para flexibilizar o mercado de trabalho, desregulamentar o sector financeiro e liberalizar o país.
Estes empréstimos para ajuste estrutural (3819-CE/BM- Ajuste estrutural), redução da dívida e modernização do Estado (3820-CE; 3821-CE- Assistência técnica para reforma das empresas públicas; 3822-0-EC- Assistência técnica para a modernização do Estado) foram projectados para reduzir a margem de manobra do Estado, deixar o campo aberto para os actores privados (especialmente nos sectores de telecomunicações e electricidade) e garantir o pagamento da dívida do Equador para com os credores comerciais através do financiamento das garantias do Plano Brady (ver quadro).
Plano Brady Durante os anos 80, o Plano Brady (nomeado em homenagem ao então secretário do Tesouro nor-te-americano) envolveu a reestruturação da dívida dos principais países endividados através da troca de dívidas antigas, com uma perda no valor nominal ou juros, por novos instrumentos de títu-los com prazo de vencimento mais longo e uma garantia de pagamento por parte das autoridades monetárias internacionais. Os países participantes foram Argentina, Brasil, Bulgária, Costa Rica, Cos-ta do Marfim, República Dominicana, Equador, Jordânia, México, Nigéria, Panamá, Peru, Filipinas, Polónia, Rússia, Uruguai, Venezuela e Vietname. Na época, Nicholas Brady anunciou que o volume da dívida seria reduzido em 30 % (na realidade, a redução, quando existia, era muito menor; em vá-rios casos, a dívida até aumentou) e os novos títulos (os Brady bonds) garantiam uma taxa de juros fixos de cerca de 6 %, o que era muito favorável para os banqueiros. Isto também garantiu a conti-nuidade das políticas de austeridade sob o controle do FMI e do Banco mundial. |
O Banco Mundial tinha emprestado ao Equador para que este adequasse as suas políticas fiscais e comerciais à globalização neoliberal e redireccionasse as suas actividades produtivas para a exportação, em detrimento do mercado local: um primeiro empréstimo (3609-Desenvolvimento sector privado) neste sentido foi desembolsado em 1993 [11], seguido em 1998 por um empréstimo para apoiar a capacidade de exportação do sector privado e remover as restrições comerciais através da implementação de políticas comerciais de acordo com as decisões da OMC e a assinatura de novos acordos comerciais [12] (4346- Comércio exterior e integração - 21 milhões US$).
Ao promover a produção intensiva para exportação (bananas, camarões, flores), estes empréstimos tiveram consequências ambientais desastrosas e, em alguns casos, irreversíveis. Um exemplo notável: a criação de camarões, 90 % da qual é destinada à exportação, levou à destruição do mangual (agora 70 % destruído), um ecossistema rico do qual as comunidades locais tiravam sua renda, e uma barreira natural que impede a inundações e a salinização da terra. Esta atividade foi desenvolvida até em áreas onde a lei proibia a construção de tanques de piscicultura.
Para completar o desastre ecológico, o Banco financiou directamente projectos devastadores no âmbito da agricultura e na gestão de recursos naturais (minerais, hídricos, etc.). Entre outros [13], deve-se mencionar o projecto Prodeminca em 1994 (3655- Assistência técnica meio ambiente), que incluiu a introdução de um novo Código de Mineração e Reformas favorável aos investidores. Duas leis (Trole I e II) criaram as condições para a pilhagem de recursos pelas multinacionais, organizando o enfraquecimento do papel do Ministério do Meio Ambiente e permitindo a actividade de mineração em áreas protegidas.
Para completar o desastre ecológico, o Banco financiou directamente projectos devastadores no âmbito da agricultura e na gestão de recursos naturais
O Banco também desenvolveu um projecto para os povos indígenas (Empréstimo 4277-O-EC- Projecto de desenvolvimento dos povos indígenas e pretos). Mais uma vez, o projecto visava favorecer os investimentos privados, reduzir o papel do Estado e mudar o quadro legal. Além de endividar o país, as comunidades indígenas também se endividaram. O projecto tentou, e até conseguiu, aumentar a dependência das comunidades indígenas e camponesas em sementes, herbicidas e pesticidas das corporações transnacionais. Este projecto apresentava características racistas e discriminatórias contra os povos indígenas e afro-descendentes. Além disso, como denunciado pelos movimentos sociais equatorianos, continha uma agenda oculta que visava enfraquecer o poderoso movimento indígena, especialmente a Confederação das Nações Indígenas do Equador.
As consequências desses empréstimos, muito negativas para a maioria da população equatoriana, foram numerosas. Este é particularmente o caso da redução drástica no acesso aos serviços públicos. Por exemplo, o empréstimo 3285 de 104 milhões US$, de 1991, para financiar a descentralização levou a uma redução nos montantes concedidos às autoridades locais. Este projecto permite que as IFI (instituições financeiras internacionais) tenham melhor controle sobre o orçamento do Estado e que façam lobby para um aumento da parcela destinada ao pagamento da dívida. De acordo com os termos do empréstimo 3821 de 10 de fevereiro de 1995, a redução dos subsídios de electricidade e a futura privatização da empresa nacional INECEL também foram previstos.
Na mesma linha, o ataque aos funcionários do sector público é constante. O projecto de «Assistência técnica para modernização do Estado» levou à supressão de 10 000 postos de trabalho da função pública. As demissões representaram um custo suportado pelo Estado de 396,3 milhões US$ [14]. Assim, o Governo incorreu numa dívida de 20 milhões US$ para este projecto de reestruturação do sector público que visava especialmente a redução de custos, e custou-lhe 20 vezes mais em cortes de pessoal!
Ao mesmo tempo, o empréstimo 7174 de ajuste estrutural e consolidação fiscal concedido em 2003 implementou o decreto de austeridade emergencial emitido pelo presidente Gutierrez no final de janeiro de 2003, introduzindo um aumento de 21 % no preço da gasolina e um aumento de 3 % no preço do diesel. Esta medida levou a um aumento no custo de transporte e, portanto, do custo de vida em geral, uma vez que as mercadorias têm que ser transportadas.
Na educação, o empréstimo 3425 «Primeiro projecto de desenvolvimento social na educação e formação» reduziu o financiamento para o sector educacional de 18 % do orçamento anterior a este empréstimo, para 5,8 % em 2000. A diferença foi, naturalmente, alocada ao serviço da dívida e à implementação de políticas favoráveis aos credores e à classe dominante equatoriana.
Estes empréstimos ligados a condicionalidades destinadas a introduzir políticas agressivas e antissociais do Consenso de Washington levaram a um aumento da pobreza e da pobreza extrema e a um aumento na concentração da riqueza nas mãos de uma oligarquia. Durante todo o período 1970-2005, a pobreza aumentou consideravelmente. Em 1970, 40 % da população vivia abaixo da linha de pobreza e em 2005, esta percentagem havia subido para 61 % [15]. Este empobrecimento foi particularmente agudo durante a crise de 1999. Entre 1995 e 2000, o número de pessoas pobres aumentou de 3,9 milhões (ou seja 34 % da população) para 9,1 milhões (ou seja 71 %), enquanto a pobreza extrema duplicou, afectando 31 % da população em 2000. Entretanto, os ricos tornaram-se cada vez mais ricos. Em 1990, os 20 % mais ricos receberam 52 % dos rendimentos; 10 anos mais tarde, eles abotoaram-se com 61 % das riquezas [16]. Esta pobreza afecta particularmente os habitantes das zonas rurais e os pequenos produtores agrícolas, que são afectados pela abertura dos mercados, o aumento do preço dos insumos, o estabelecimento de um sistema privado de propriedade da terra, etc.
Segundo um relatório da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) de 2003, a pobreza é responsável pelos problemas de subnutrição observados no país: de facto, a oferta de alimentos era suficiente para cobrir as necessidades da população, mas a desigualdade de rendimentos não permitia que os mais pobres se alimentassem suficientemente.
Esta pobreza crescente também teve consequências sobre o acesso à saúde e à educação. A precarização dos empregos, o aumento do desemprego, a disseminação do trabalho informal e precário e a queda dos salários levaram cada vez mais crianças e adolescentes a abandonarem o sistema escolar para sustentar as famílias.
Para «tirar» o Equador da crise, o Banco Mundial tinha suas «soluções»: continuar ou mesmo fortalecer a orientação que levou à crise! (7024-0-EC- Ajuste estrutural, 7174-0-EC- Assistência técnica para a modernização do Estado, 4567-0-EC- Assistência técnica do sector financeiro).
A população expressou várias vezes e maciçamente o seu descontentamento, levando à queda de vários presidentes nos anos 90 e início dos anos 2000, e frustrou alguns dos objectivos do banco, em particular as tentativas de privatização. Três presidentes de direita foram expulsos do poder entre 1997 e 2005, graças a poderosas mobilizações da população: Abdalá Bucaram em fevereiro de 1997, Jamil Mahuad em janeiro de 2000 e Lucio Gutiérrez em abril de 2005. As mobilizações dos povos indígenas foram decisivas na demissão de Abdalá Bucaram em 1997 e de Jamil Mahuad em 2000. Nessas mobilizações, a CONAIE (Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador – Confederación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador) desempenhou um papel muito importante. Na demissão de Lucio Gutiérrez, foram decisivas as mobilizações urbanas. Entre os muitos sinais claros de oposição às políticas neoliberais, pode-se também acrescentar o fracasso do referendo de 1995, que visava em particular privatizar a previdência social [17].
[1] Ver Éric Toussaint, «Bolivia: avances sobre los bienes comunes y la reforma constitucional», 10/02/2008, https://www.cadtm.org/Bolivie-avancees-sur-les-biens.
[2] Cálculos do autor com base em documento da Comisión Investigadora De La Crisis Económica Financiera. Síntesis De Los Resultados De La Investigación. Julho/2007, p. 45.
[3] Idem
[4] Ver Matthieu Le Quang entrevistado por Violaine Delteil, «Entre buen vivir et néo-extractivisme: les quadratures de la politique économique équatorienne», em Revue de la Régulation, primeiro semestre 2019, https://journals.openedition.org/regulation/15076, consultado em 30/12/2020.
[5] Piedad Mancero, El debilitamiento institucional en la decada de los 90. Investigación y análisis del préstamo BIRF -3822 -EC/Proyecto de modernización del Estado.
[6] Esta última parte da lei viola o artigo 265 da Constituição. O artigo estipula que o Banco Central não pode adquirir títulos emitidos por instituições estatais ou conceder créditos a instituições privadas que não sejam créditos de liquidez de curto prazo. A adopção desta lei foi de facto possibilitada pela disposição transitória 42 da Constituição de 1998, que autoriza o Banco Central por dois anos a conceder créditos a bancos em crise. Esta disposição transitória da Constituição está em contradição com o artigo 265 da Constituição de 1998.
[7] Relatório da Comissão da crise econômica financeira (Comisión Investigadora de la Crisis económica financiera), Junho 2007
[8] Relatório da Comissão da Crise Económica Financeira (Comisión Investigadora de la Crisis Económica Financiera), Junho/2007.
[9] Os hedge funds, ao contrário do que o nome, que significa cobertura, indica, são fundos de investimento não cotados em bolsa, com um propósito especulativo, que buscam altos retornos e fazem amplo uso de derivados, particularmente opções, e frequentemente usam alavancagem. Os principais hedge funds são independentes dos bancos, embora os próprios bancos frequentemente criem hedge funds. Esses fundos fazem parte do shadow banking.
[10] Empréstimos de ajuste estrutural (structural adjustment loan), sectorial (sectorial adjusment loan), ou créditos de liquidez para a redução da pobreza e o crescimento (poverty reduction and growth facilities, PRGF).
[11] Foram previstas uma série de condicionalidades: entre outras, uma maior liberalização das taxas de juros, a criação de uma estrutura favorável ao investimento estrangeiro, a liberalização do comércio e uma nova legislação do trabalho.
[12] O projecto previa, para este fim, a reorganização do Ministério do Comércio, Indústria e Pesca (MICIP) e a criação de uma nova entidade público-privada de promoção das exportações, a Corporação de Promoção de Exportações e Investimentos (CORPEI). O projecto financiou o «treino» de funcionários do MICIP e representantes do sector privado na negociação de acordos comerciais internacionais. Além disso, o Banco exigiu a redução do pessoal do MICIP de 400 para 190 funcionários. O Governo havia adoptado anteriormente um código de boa conduta para a adopção e aplicação das normas do Acordo da OMC sobre Obstáculos Técnicos ao Comércio.
[13] O Banco Mundial financiou muitos outros projectos que afectaram o meio ambiente e/ou minaram a soberania alimentar e os recursos naturais: os projectos Asistencia Técnica al Subsetor Riego PAT (Empréstimos 3730), PROMSA (Empréstimo 4075-O-CE), PRAGUAS I e II (Empréstimos 7035-O-CE, 7401-O-CE), Control de Inundaciones Cuenca Bajas Río Guayas (Empréstimos 3276), entre outros.
[14] Piedad Mancero, El debilitamiento institucional en la decada de los 90. Investigación y análisis del préstamo BIRF -3822 -EC/Proyecto de modernización del Estado.
[15] Norma Mena, Endeudamiento, ajuste estructural, calidad de vida y migración, p. 13. CEIDEX, Tercer volumen.
[16] Alberto Acosta, Deuda externa y migración: una relación incestuosa (I), 09/09/2002, http://www.lainsignia.org/2002/septiembre/dial_001.htm
[17] Ver aqui os termos do referendo: https://es.wikipedia.org/wiki/Refer%C3%A9ndum_de_Ecuador_de_1995.
docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.