printer printer Clique no ícone verde à direita
Otelo: teve todo o poder nas mãos e ofereceu-o ao povo
por Rui Viana Pereira
28 de Julho de 2021

No passado dia 25 de julho, às 4:11 da manhã, faleceu Otelo Saraiva de Carvalho, o estratega genial que desenhou e comandou o golpe militar de 25 de abril de 1974, pondo fim à ditadura que sufocou o povo português durante quase meio século. Com o desaparecimento de Otelo, morre um dos últimos símbolos vivos do PREC. [1]

Consumado o golpe militar que derrubou a ditadura, Otelo, segundo as suas próprias palavras, pensou que tinha cumprido a sua missão e podia retirar-se de cena. O curso dos acontecimentos não lhe fez a vontade: em julho de 1974 é criado o COPCON (Comando Operacional do Continente) e o seu comando é entregue a Otelo, que assim se vê investido de um poder militar imenso. Isto não o impediu de continuar a pensar que a sua missão estava cumprida, que apenas lhe competia manter a disciplina nas forças armadas e recolher-se na sombra.

Sucede que, com a queda do regime ditatorial, por um lado o país se encontrava desprovido do normal funcionamento do aparelho de Estado (com excepção das Forças Armadas) ou, como a direita gosta de dizer, «o poder caiu na rua»; mas por outro lado isso não suspendeu os problemas sofridos pela população. Contudo, as pessoas já não podiam dirigir-se a nenhuma autoridade clássica a quem pedir soluções … a única autoridade à vista era o COPCON, e foi para lá que milhares de pessoas se deslocaram, exigindo falar com o comandante que lhes tinha aberto as portas da liberdade. Otelo viu-se assim de novo chamado à ribalta.

Otelo fez uma opção de classe clara: incentivou as pessoas a auto-organizarem-se e decidirem o seu futuro; deu-lhes meios para o fazerem, sem interferências
Numa situação destas, seria de recear que a pessoa detentora da força das armas impusesse a sua visão do mundo e cedesse à tentação de dirigir pessoalmente a transformação da sociedade. Não foi esse o caminho de Otelo. Em vez disso, fez uma opção de classe em sentido oposto: incentivou as pessoas a organizarem-se em função dos seus interesses de classe, a decidirem o seu futuro autonomamente, garantindo-lhes que todo o aparato do COPCON seria posto à sua disposição. Não interferiu na experiência revolucionária em curso, apenas a serviu.

Vinha um grupo de operários queixar-se de que o patrão tinha fechado a fábrica e estava a retirar as máquinas? Eram aconselhados a organizarem-se e decidirem o que pretendiam fazer. Queriam ocupar a fábrica, continuar a laboração? O COPCON lá estaria para os defender na execução das suas decisões, se necessário fazendo frente aos mercenários contratados pelos patrões.

Vinham camponeses dos latifúndios alentejanos, em pânico porque os patrões estavam a fugir com máquinas, alfaias, gado e capitais? Eram aconselhados a organizarem-se, ocuparem as terras e defenderem-se dos latifundiários, se necessário à força. O COPCON lá estaria para os ajudar.

Vinham os moradores queixar-se das más condições de habitação, ou pura e simplesmente da falta de habitação, embora houvesse milhares de casas vagas? Eram aconselhados a organizarem-se, ocuparem as casas, definirem estratégias de distribuição das habitações em função das necessidades de cada família, construírem novas casas e urbanizações à medida das suas necessidades, com materiais abandonados pelos capitalistas em fuga, e sempre que necessário lá estaria o COPCON para os defender dos jagunços contratados pelos senhorios.

Num país com um índice de analfabetismo espantosamente elevado, Otelo percebeu que não era possível ficar anos à espera que se construísse uma rede de ensino público em todo o território. «A sede duma espera só se estanca na torrente», como diz uma canção de Sérgio Godinho, e por conseguinte Otelo incentivou a participação dos seus soldados em campanhas de alfabetização e de animação cultural.

Em suma, o papel escolhido por Otelo podia ter sido o de um novo ditador, mas não foi; nem sequer o de um dirigente político armado em farol do povo. Optou por ser um instrumento solícito subordinado à vontade do povo autonomamente organizado. A acusação de arrogância que tantas vezes lhe foi imputada choca-se com esta prova de humildade.

É preciso notar que Otelo não se propunha prestar auxílio ao «povinho» de uma forma individualizada e caritativa, mas sim dar voz e instrumentos de acção às organizações populares no seu conjunto. Nenhum dos outros centros de poder (académico, económico, político, religioso) foi capaz de assumir esta atitude de humildade e dar voz ao poder popular. [2]

Em 1974-1975 a população forneceu a prova viva de que é capaz de se auto-organizar para construir um mundo novo, socialmente mais justo
Milhares de soldados seguiram entusiasticamente a directiva de Otelo, colocando-se sistematicamente ao lado da população (ainda que com erros e falhas pontuais, como é inevitável). Isto só poderia ter acontecido num exército que já não era inteiramente profissional, um exército que, para manter uma guerra colonial em várias frentes, tivera de recorrer à incorporação dos «filhos do povo». Ou seja, um exército que pusera as suas armas nas mãos de uma grande parte da população mais excluída e oprimida.

Quando o golpe contra-revolucionário de 25 de novembro de 1975 saiu à rua, Otelo entendeu que o país se encontrava profundamente dividido e corria o risco de uma guerra civil fratricida e sangrenta. Bem ou mal, decidiu não usar da força militar de que dispunha para se opor ao golpe. E assim o país entrou na senda da democracia parlamentar, intermediada, facilmente comprável pelo Capital, retirando ao povo a voz directa e o poder.

Há uma campanha ideológica que visa apagar completamente da memória a extraordinária experiência de 1974-1975
Nos anos seguintes ao golpe contra-revolucionário, extinto o fogo da disputa pelo presente e pelo futuro, regressámos a um lugar bem conhecido da História: a disputa ideológica por uma reinterpretação/reconstrução do passado, expressa numa campanha ideológica que visa apagar completamente da memória a extraordinária experiência de 1974-1975 – um período histórico em que a população em geral, incluindo as suas camadas mais humildes e analfabetas, forneceu a prova viva de que é capaz de se auto-organizar, de construir colectivamente novas soluções mais inovadoras, mais socialmente justas, mais rápidas e mais eficazes do que algum estadista poderia jamais imaginar. E pôde fazê-lo praticamente sem verter sangue, porque quem detinha a força bruta das armas e da logística do exército caminhou a seu lado, e não do lado do Capital. Este foi, quanto a mim, o grande mérito de Otelo.

«Obrigado Otelo» – Capa do disco de vinyl, colectânea. (c) Harmonia Mundi
Com o regime pós-25 de novembro, o ódio da direita a Otelo pôde exprimir-se livremente. [3] Acusaram-no de terrorismo assassino e meteram-no na prisão por uns quantos anos. Só o sentimento generalizado de que todos lhe devíamos a consecução da tão almejada liberdade política e de expressão impediu que ele ficasse encarcerado até ao fim da vida. Contra o despautério dessas acusações, respondem as palavras do próprio Otelo: «Nunca mandei matar ninguém. Tenho horror a qualquer assassínio. Liquidar um ente humano é para mim extremamente doloroso, não concebo que alguém o consiga fazer. E no entanto tenho este rótulo que me é dado, sobretudo pela gente de direita.»

Nunca mandei matar ninguém. Tenho horror a qualquer assassínio. Liquidar um ente humano é para mim extremamente doloroso, não concebo que alguém o consiga fazer
Otelo Saraiva de Carvalho não foi um teórico, não se deu ao trabalho de construir modelos sociais abstractos – foi um homem de acção que soube fazer as opções de classe necessárias nos momentos cruciais. Por isso terá certamente cometido alguns erros de passagem; prestou-se a ser usado, abusado e acusado (pelos teóricos de esquerda, evidentemente) de «espontaneísmo», de «radicalismo infantil», etc. – é o que pode acontecer a qualquer um que faça opções claras de classe, sem hesitar, sem se submeter a imbricados jogos político-partidários, e participe concretamente na transformação social, na construção de um mundo mais justo.

Por fim, gostaria de remeter para dois textos que dão de Otelo Saraiva de Carvalho um retrato muito mais humano e menos abstracto do que eu saberia fazer:


Notas :

[2«Poder Popular» é a expressão portuguesa que designa a experiência revolucionária mais ou menos equivalente aos conselhos ou sovietes: a organização das populações, de forma autónoma, não intermediada, para cuidar dos seus interesses e executá-los. Estas formas de organização viriam a dar origem a assembleias populares regionais que reuniram assalariados, moradores, mulheres, homens, estudantes e soldados. O processo de articulação a nível nacional de todas essas organizações regionais e sectoriais, encetado no «verão quente» de 1975, viria a ser travado pelo golpe militar contra-revolucionário de 25 de novembro de 1975.

[3Imagino que os dirigentes de direita mais esclarecidos soubessem perfeitamente que os actos políticos que execravam não eram da responsabilidade de Otelo, mas sim dos movimentos populares. No entanto, não lhes era possível acusarem um povo inteiro, sem cometerem suicídio político. Era muito mais fácil acusar um único homem/mulher, fazendo dele/a o responsável de uma realidade disseminada, partilhada e colectiva. Estabeleceram assim, juntamente com o novo regime político pós-25 de novembro, um maniqueísmo ideológico, assente em figuras simbólicas individuais, que pura e simplesmente ignora o papel do actor principal de toda esta história: as populações.

Rui Viana Pereira

revisor, tradutor e sonoplasta; co-autor de Quem Paga o Estado Social em Portugal? e de «E Se Houvesse Pleno Emprego?», in A Segurança Social É Sustentável (Bertrand, Lisboa, 2012 e 2013 respectivamente); co-fundador do CADPP.
Membro do grupo cívico Democracia & Dívida.