Entrevistámos Milan Rivié, membro do CADTM que trabalha sobre a dívida dos países da África Subsariana, colocando-lhe uma série de questões sobre a dívida dos países da região e seu financiamento no contexto actual.
Na versão francófona desta entrevista é possível ouvir a entrevista em formato áudio.
Temos uma visão muito crítica da ISSD. É claro que a ISSD é bem-vinda, na medida em que os países do Sul sofrem um grande impacto financeiro, económico, social e sanitário com a pandemia. Por isso é necessário agir. Mas esta iniciativa, conforme confessam o próprio FMI, o Banco Mundial e o G20, é claramente insuficiente.
Quanto a mim existem cinco problemas.
Primeiro, há muito poucos países envolvidos. De facto, só os países financiados pela AID (Associação Internacional de Desenvolvimento) do Banco Mundial, ou seja 77 países, são visados. E por fim esta lista foi reduzida a 73 países, porque 4 deles estão em atraso de pagamento ao Banco Mundial. Entre esses países conta-se o Zimbabué e o Sudão, que estavieram na ribalta há poucas semanas, no quadro da cimeira sobre financiamento das economias africanas organizada em Paris. Voltarei adiante a esta operação de comunicação, apresentada como uma anulação total da dívida sudanesa, o que é enganador.
Ao final, no que respeita à ISSD, quase metade dos países desenvolvimento foram pura e simplesmente excluídos, apesar de vários se encontrarem em grandes dificuldades, senão mesmo em falência de pagamento – caso do Líbano, Argentina e Zimbabué.
Em segundo lugar, há poucos credores envolvidos. A ISSD não se aplica aos credores bilaterais, ou seja, aos estados, que são nos dias de hoje frequentemente minoritários no endividamento dos PED (países em desenvolvimento). De facto, pelas suas características, a ISSD aplica-se sobretudo aos credores bilaterais membros do Clube de Paris e a outros credores bilaterais não membros do Clube que queiram voluntariamente participar na iniciativa. Mas na prática, a China, que não é membro do Clube e é a principal credora em África e a terceira a nível mundial, não está verdadeiramente envolvida.
Por seu lado, o Banco Mundial e o FMI mantêm um discurso dúplice, apelando aos países do G20 para anularem os seus créditos, ao mesmo tempo que se recusam a aplicar eles próprios essa directiva. O primeiro escuda-se atrás do argumento falacioso de que está a proteger a sua notação nos mercados financeiros, embora seja um banco de desenvolvimento e disponha da garantia de 189 estados membros. O segundo argumenta que a directiva é contrária aos seus estatutos – argumento igualmente falacioso, visto que o FMI já fez anulações no quadro da IADM (Iniciativa de Anulação da Dívida Multilateral) em 2006.
Os interesses das várias categorias de credores – bilaterais, multilaterais e privados – não são necessariamente distintos. Quando um país toma uma atitude em relação aos seus credores bilaterais mas não envolve os credores privados, está a proteger os seus próprios interesses
Por fim, os credores privados, que são largamente maioritários, não são de forma alguma pressionados a anular os seus créditos, são simplesmente convidados a fazê-lo. Mas mais de um ano após o lançamento da ISSD, nenhum credor privado concedeu qualquer reestruturação, menos ainda anulação.
Por outro lado parece-me importante olhar com atenção para a distinção dos credores por categorias: bilaterais, multilaterais e privados. É certo que as condições de empréstimo diferem consoante as categorias, mas os seus interesses – políticos, económicos, comerciais, estratégicos – não são completamente distintos. Como o nome indica, os credores multilaterais (ou seja, os bancos de desenvolvimento e o FMI) são compostos por estados membros. Quanto aos credores privados, englobam bancos e outros fundos de investimento. Não nos iludamos – quando um país toma uma atitude em relação aos credores bilaterais mas nada faz para envolver os credores privados, isto é uma maneira de proteger os seus próprios interesses. É fácil perceber que a fronteira entre a esfera política e a esfera financeira é muito permeável. Neste quadro, deixo-vos tirar as vossas próprias conclusões sobre os motivos pelos quais não é imposta ao BNP Paribas, ao Deutsche Bank, etc., a participação nas reestruturações da dívida. É aí mesmo que reside a lógica do «sistema da dívida», um sistema de dominação financeira e política.
Terceiro problema, as condições e a chantagem que acompanham a ISSD. É preciso ter em conta que todos os pedidos de ISSD são condicionados à assinatura prévia de um acordo com o FMI; ora, como sabem, o FMI não empresta gratuitamente. Em contrapartida da ISSD é preciso aplicar uma série de reformas estruturais, os famosos planos de ajustamento estrutural. Diga o FMI o que disser, é ponto assente que eles têm sempre de ser aplicados.
A isto há que juntar a chantagem imposta pelas agências de notação, que ameaçaram – e aplicaram em certos casos – com uma degradação da notação dos países que fizeram ou farão um pedido de ISSD, o que tem como consequência directa o encarecimento do custo do empréstimo.
Quarto problema, o volume de dívida previsto é diminuto. A ISSD abarca no máximo 1,6 % da dívida dos PED, ou seja 51 mil milhões de $US, num universo de dívida de 3200 mil milhões de $US …
Finalmente, diga-se que o fardo da dívida é simplesmente adiado. Tal como o nome indica, a ISSD limita-se a diferir o reembolso das dívidas em questão, empurrando-o para 2026. O pagamento protelado irá juntar-se ao serviço da dívida de 2026 e anos seguintes, embora o fardo da dívida já tenha um peso insuportável para muitos países e seja muito improvável que as consequências económicas, financeiras e sociais da pandemia se tenham dissipado completamente em 2026. A título de exemplo, 10 anos após o início da crise financeira resultante da crise dos subprimes em 2007, os seus efeitos ainda se fazem sentir na dívida, no emprego, nos serviços públicos, etc.
Feitas as contas, a ISSD fica muito aquém da iniciativa PPTE lançada em 1996, no seguimento da crise da dívida do Terceiro Mundo dos anos 1980, embora nos encontremos numa situação bastante semelhante e a iniciativa PPTE, sem entrar agora em detalhes, já nessa altura fosse também ela largamente insuficiente.
Não me parece que se possa analisar a coisa dessa maneira, e vou tentar explicar porquê.
Primeiro, apesar dos incessantes apelos do Clube de Paris, a China recusa juntar-se, prefere seguir o seu próprio caminho e não ficar dependente das regras desse clube de credores bilaterais, que de resto não possui qualquer legitimidade e que devia ser pura e simplesmente dissolvido.
É bastante evidente que a China não representa uma alternativa de financiamento viável para os países do Sul. Ela age, para todos os efeitos, de forma semelhante aos credores oficiais
Depois, com a ISSD e o Common Debt Framework, a China assume claramente um discurso dúbio. Como já expliquei, a ISSD apenas se aplica aos credores bilaterais. O problema é que a China, principal credor do continente africano e de uma série de PED, considera que grande parte dos seus empréstimos não é bilateral mas sim privada, nomeadamente os créditos concedidos pelo seu banco de desenvolvimento Exfim-bank. Ao agir desta forma, a maioria dos seus créditos fica excluída da ISSD.
Por fim, a China goza actualmente de um tal poder económico e, embora de momento em menor escala, de um poder político e militar que lhe permitem aplicar as suas próprias regras. Ainda que isto resulte da pressão exercida pelo FMI e pelo G7, a China redigiu e adoptou unilateralmente em 2019 o seu próprio regulamento sobre reestruturação e transparência dos seus empréstimos. Criou também o seu próprio banco de desenvolvimento, para se opor ao Banco Asiático de Desenvolvimento (BAsD), que é fortemente dominado pelos interesses ocidentais. Foi também a China que ditou as regras de funcionamento aquando da criação do banco dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia e África do Sul), o New Development Bank.
Em resumo, eu diria que é preciso ler a política da China a dois níveis. Um nível público, onde, sob pressão do G7 e dos grandes meios de comunicação de massas que não cessam de criticar, com razão, a política de empréstimos da China, sem no entanto varrerem a sua própria casa. A China adopta aí um discurso público, de comunicação, que visa preservar a sua imagem ou pelo menos adocicar a realidade. E um segundo nível, que eu classificaria mais de bastidores, no qual ela mantém o controlo total dos seus créditos e as negociações com os devedores. É evidente que a China não representa uma alternativa de financiamento viável para os países do Sul. Ela age, de diversas maneiras, como os credores ocidentais sempre fizeram.
Para parafrasear Emmanuel Macron, todas as suas declarações sobre dívida e financiamento das economias africanas não passam de «pós de perlimpimpim»
Eu diria que se trata de muito barulho por coisa nenhuma, e deste ponto de vista é um grande sucesso para Macron, que não desiste de tentar voltar a dar à França o seu antigo papel em África. O Estado francês é cada vez mais criticado em África e continua a perder influência face à concurrência da China, dos países do Golfo, dos BRICS, além dos seus «concorrentes» históricos – EUA, Canadá, Grã-Bretanha –, seja directamente, seja através das suas multinacionais. Desde abril de 2020 Macron lançou-se numa verdadeira operação de comunicação, primeiro anunciando falsamente uma anulação massiva dos créditos franceses sobre os países africanos, depois com o Consenso de Paris em novembro de 2020, a cimeira África-França inicialmente prevista em junho de 2020 em Bordéus e finalmente adiada para outubro de 2021 em Montpelier, e por fim em inícios de maio anunciou, antecipando a cimeira sobre financiamento das economias africanas, o lançamento de um new deal para a África. Mas, para o parafrasear, tudo isto não passa de «pós de perlimpimpim».
Primeiro, que legitimidade têm Macron e o Estado francês para se posicionarem como líderes na questão das dívidas africanas e do financiamento desses países? Simplesmente nenhuma.
Depois, nenhuma declaração credível foi feita durante a cimeira. Como disseram de forma brilhante os economistas Daniela Gabor e Ndongo Samba Sylla, o Consenso de Paris, ou se preferem, o new deal, é um «Consenso de Wall Street». São retomadas as receitas do Consenso de Washington da década de 1990, quer dizer, os planos de ajustamento estrutural e ultraliberalização, tudo isto apresentado com um molho reforçado, ou seja sempre mais financeirização e concessão de poderes aos interesses privados. Nesta cimeira voltaram a ser apoiadas os Acordos de Parceria Económica (APE), assim como a Zona de Livre Troca Continental Africana (ZLECAf), dois instrumentos de livre troca cujos efeitos já conhecemos: relações assimétricas de poder entre a Europa e África, uma liberalização total dos movimentos de capitais, uma destruição das economias locais e um reforço da dependência dos países da exportação de matérias-primas e da importação de produtos acabados. O outro anúncio, que também nada tem de inédito, é o recurso acrescido às parcerias público-privadas (PPP), esse mecanismo que grosso modo privatiza os lucros, socializa as perdas e favoriza os investimentos estrangeiros em detrimento dos sectores locais. Como apontou o Tribunal de Contas Europeu, para não citar outras fontes, tudo isto provoca o aumento dos custos dos projectos e portanto da dívida. Quando Macron proclama orgulhosamente que «Estamos a caminho de colectivamente abandonarmos a África a soluções que datam dos anos 60», eu estou de acordo com ele. Tudo quanto ele propôs nos últimos tempos corresponde ponto por ponto às receitas neocoloniais habituais. A forma mudou um poucochinho, mas o fundo permanece incólume. De todas as formas, é muito claro que nem a França nem as principais economias mundiais pretendem ver a África desenvolver-se. O que pretendem, isso sim, é fazer perdurar as relações centro/periferias, assim como a divisão internacional do trabalho, a fim de conservarem o seu predomínio económico e militar e extrair o máximo lucro.
Quanto ao Sudão, o que se passou no último 17 de maio foi uma verdadeira operação de branqueamento de dívidas odiosas
Parece-me igualmente indispensável evocar a questão do Sudão. Foi anunciado que a dívida do Sudão iria ser anulada, mas que isto fique muito claro, dizer isto sob a forma «A dívida do Sudão foi anulada» é claramente enganador. Porquê? Primeiro, porque o Sudão tinha antes de tudo de reembolsar o Banco Mundial, o FMI e o Banco Africano de Desenvolvimento (BAfD). Para isso, vários credores os reembolsaram por meio de empréstimos intercalares. Portanto a dívida passou duma mão para a outra. Depois, a operação dita de anulação deve ser entendida no âmbito do Clube de Paris e da Iniciativa PPTE, 25 anos após o seu lançamento, ou seja há um quarto de século! É preciso entender que uma «anulação» neste âmbito aplica-se sobre a parte bilateral e fica sujeita à assinatura prévia de um acordo económico, um plano de ajustamento estrutural, com o FMI. Ainda por cima, é preciso ter presente que o Sudão se encontrava em falta de pagamento desde 1984. As suas dívidas foram contraídas por regimes ditatoriais (Gaafar Nimeiry – 1969-85, Omar el-Béchir – 1989-2019), regimes estes voluntariamente apoiados pelas potências ocidentais – primeiro no contexto geopolítico da Guerra Fria, depois em função de interesses económicos. O Banco Mundial, o FMI, o Estado francês e até o BNP Paribas [banco francês] apoiaram voluntariamente aqueles regimes, para defenderem os seus interesses privados e contra o interesse das populações. Em direito internacional chama-se a isto uma dívida odiosa. Esta dívida devia pura e simplesmente ser anulada sem qualquer espécie de condicionamento. O que se passou a 17 de maio foi uma verdadeira operação de branqueamento de dívidas odiosas. E que ganha o Sudão em contrapartida? A garantia de ver os seus credores imporem-lhe um calendário de reformas políticas neoliberais, impondo investimentos que aproveitam aos interesses do Norte. O Estado francês mente, quando anuncia uma anulação de 5 mil milhões dos seus créditos. Na realidade, o Sudão vai reembolsar esses 5 mil milhões e o Estado francês vai reinvesti-los no âmbito de um contrato dito de desendividamento e desenvolvimento (C2D), no qual terá um poder considerável para decidir em que sectores e quais empresas vão investir. Não é por acaso que estas declarações foram feitas diante do presidente do Medef, Geoffroy Roux de Bézieux.
Primeiro, sobre a França, é evidentemente falso dizer que o nível elevado de endividamento não levanta problemas. Quem defende este ponto de vista baseia-se no facto de actualmente as taxas de juro serem muito baixas. O problema é que esta situação não se vai eternizar; e quando as taxas de juro voltarem a subir, o custo da dívida também subirá. Depois, porque o Estado francês e os países da UE, por escolha política, dependem hoje em dia totalmente do mercado de obrigações. Presentemente – e note-se que isto não significa que não possa haver alternativas, longe disso – o Estado francês é obrigado a recorrer aos empréstimos privados. São estes que fazem a chuva e o bom tempo, e, tal como noutros países, esses empréstimos são condicionados. O que me leva ao ponto seguinte: não podemos esquecer que a dívida tem um verdadeiro custo social. Não se passa um mês sem que nos digam que, devido ao elevado nível da dívida, é preciso apertar o cinto, reduzir despesas, orçamentos públicos, etc. Basta olharmos para as declarações dos vários governos e para as colunas de opinião dos economistas ortodoxos. Bem vemos que nos sectores dos transportes, da justiça, da educação e da saúde existe um subfinanciamento estrutural, com o objectivo de proceder a privatizações e impor lógicas de lucro nesses sectores, em prejuízo do interesse geral e da justiça social.
Não podemos esquecer que a dívida tem um verdadeiro custo social
Porque é que a África é mais facilmente esmagada que nós pelo peso da dívida? Há múltiplas razões. Primeiro, em comparação com os países do Norte, as economias africanas são mais frágeis, dispõem de orçamentos e margens de manobra muito mais reduzidas do que nos países do Norte. Para explicar abreviamente, dos 48 países da África Subsariana, nenhum deles tem rendimentos de nível superior, isto é, nenhum deles é um país desenvolvido (segundo a definição das instituições financeiras internacionais – IFI). 23 países têm baixos rendimentos e 25 têm rendimento médio. Depois, esses países não têm a possibilidade de angariar fundos de forma soberana nas mesmas proporções dos países do Norte, nem à escala nacional nem à escala regional. Os bancos centrais ou regionais não conseguem dispor de financiamentos ao nível dos que são angariados na UE ou nos EUA. Para se financiarem, dependem fortemente de credores exteriores, bilaterais, multilaterais ou privados que impõem condições leoninas, seja por meio de condicionalismos políticos, seja com taxas de juro extremamente elevadas. Finalmente, estes países são extremamente vulneráveis a factores exógenos. As consequências económicas e sociais directas da pandemia em África são uma contracção do PIB de 2,1 % em 2020, a queda drástica dos fluxos financeiros exteriores (investimentos directos estrangeiros, ajuda pública ao desenvolvimento, envio de poupanças das diásporas), a depreciação da mioria das divísas, uma subida vertiginosa do endividamento externo, a insegurança alimentar nalgumas regiões e mais 69 milhões de africanos – principalmente mulheres – empurrados para a pobreza extrema daqui até ao final de 2021, elevando para 40,2 a percentagem de africanos/as que vivem com menos de 1,90 $US por dia (um indicador muitíssimo discutível, por estar subavaliado). A tudo isto devemos acrescentar uma série de mecanismos de dominação – comerciais, monetários, financeiros, políticos – que mantêm a África dependente.
Em direito internacional, os direitos humanos fundamentais prevalecem sobre os direitos dos credores. Em suma, isto significa que é ilegal, criminoso, sacrificar os direitos humanos no altar da finança
Parece-me em primeiro lugar indispensável colocar cada coisa no seu contexto. A quanto ascende a dívida africana hoje em dia? Anda à volta dos 500 mil milhões de $US, ou seja 0,5 % dos créditos a nível mundial. Quanto pesam esses 500 mil milhões em comparação com os milhares de milhões dos planos de retoma dos países ocidentais ou com os 3000 mil milhões de dinheiros públicos gastos para resgatar os bancos privados em 2007-2008? Nada! Se anulássemos esses 500 mil milhões, os credores nem davam por isso! Acham normal que mais de 60 % dos países africanos consagrem mais recursos ao reembolso da dívida do que às despesas de saúde? Como pode a chamada «comunidade internacional», bem como a ONU, repetir toda a vida que a África tem de se desenvolver, ao mesmo tempo que a sobrecarregam com esse fardo, herdado na sua maior parte da época colonial? É preciso deixar isto bem claro: em direito internacional, os direitos humanos fundamentais prevalecem sobre os direitos dos credores. Em suma, isto significa que é ilegal, criminoso, sacrificar os direitos humanos no altar da finança. Segundo a CNUCED, a quantia necessária para assegurar à totalidade da população os serviços sociais essenciais (educação primária, saúde, água, saneamento) é de 80 mil milhões de $USD por ano durante 10 anos. Comparando com os 1.700 mil milhões de $USD, fazendo as contas por baixo, de despesas militares anuais mundiais, é fácil perceber que isto poderia ser resolvido desde que houvesse vontade política.
Outro ponto fundamental: para o CADTM, a dívida é sobretudo um problema político, e não tanto económico; é preciso êntendê-la como um sistema de dominação, acima de tudo. E para o CADTM, embora a anulação da dívida seja uma condição indispensável para o desenvolvimento dos países do Sul, não é suficiente. É preciso entender que actualmente os governos africanos, presos nas garras dos seus credores, quando estabelecem o seu calendário de reformas políticas, o fazem em função das recomendações e exigências dos credores. De facto, redigem o seu calendário de reformas segundo as recomendações do FMI, do G7, etc. Anular as suas dívidas não é uma operação simplesmente económica, é dar-lhes a possibilidade de se libertarem dos condicionalismos, de serem soberanos nas suas políticas de desenvolvimento. Por isso a anulação total e incondicional da dívida desses países é indispensável. Comecemos por resolver esse problema e depois olhemos para as outras causas estruturais de endividamento que acabaste de mencionar, e bem.
Em África, a economia, a colecta de impostos, o financiamento dos serviços públicos, etc., corriam muito melhor entre 1960 e 1980 do que actualmente. Isto significa que os países africanos, que aplicaram todos ou quase todos os planos de ajustamento estrutural do FMI encomendados pelas grandes potências, perderam força
Mas, mais uma vez, quem são os responsáveis? Em África, a economia, a colecta de impostos, o financiamento dos serviços públicos, etc., corriam muito melhor entre 1960 e 1980 do que actualmente. Isto significa que os países africanos, que aplicaram todos ou quase todos os planos de ajustamento estrutural do FMI encomendados pelas grandes potências, perderam força. Ao liberalizarem a sua economia, ao encerrarem-se num modelo extractivista-exportador destrutivo, aumentaram a sua dependência. Quem permite as saídas massivas de capitais, os fluxos financeiros ilícitos, os acordos de livre troca em proveito do Capital? Quem impôs os regulamentos de mineração, florestais, marítimos em proveito das multinacionais? Quem limita a colecta de impostos? O FMI, a OMC, o G7, a OCDE, não esquecendo os Quatro Grandes dos gabinetes de auditoria (KPMG, Ernest & Young, Deloitte, PWC), as grandes praças financeiras e outros paraísos fiscais (Ilhas Caimão, EUA, Suíça, Hong-Kong, Luxemburgo, Japão, Países Baixos), bem como o papel das multinacionais com a imposição de acordos leoninos, com a Glencore à cabeça. Podíamos também mencionar os 15 países africanos que não possuem soberania monetária em consequência do F-CFA [moeda herdada do tempo das ex-colónias francesas]. E é preciso não esquecer a hipocrisia actual: estima-se que 20 % a 30 % da fortuna privada em África está colocada em paraísos fiscais. Isto permite aos dirigentes corruptos desviar dinheiros públicos e colocá-los nos bancos do Norte. Em maio de 2021 o BNP Paribas voltou a ser colocado em xeque por conta do branqueamento de várias dezenas de milhões de euros da família Bongo do Gabão. Sim, existem problemas de governação e corrupção em África, como de resto em muitas outras partes do mundo em igual medida. E estes problemas são ciosamente alimentados pelos países do Norte, que têm todo o interesse em alimentar esse sistema. Já para não falar no facto de Macron [presidente da República em França] recebeu diversos ditadores no Eliseu [sede da Presidência], vendeu aviões ao Egipto de Al-Sissi, fez uma falsa reforma do F-CFA com o apoio estratégico do presidente Ouattara, da Costa do Marfim, prestou homenagem e saudou as acções de Idriss Déby, ditador do Chade há 30 anos. Não nos deixemos enganar.
Já respondi em grande parte à questão de saber porquê é indispensável anular as dívidas. Quanto à China, ela tem uma política, tanto interna como externa, criticável. Mas dado o seu peso actual, não vejo porque mudaria ela de estratégia. Se queremos reduzir a sua influência, parece-me indispensável agir pelo menos a dois níveis. O primeiro consiste em parar de assinar acordos económicos e comerciais com a China, acordos que continuam a ser feitos com a desculpa de que não se pode fazer doutra maneira. Não é possível queixarmo-nos do seu poder actual ao mesmo tempo que lhe damos meios para se fortalecer. O segundo seria uma mudança radical no comportamento das principais potências em relação à China e aos países em desenvolvimento; o que implicaria denunciar em uníssono as inúmeras violações dos direitos humanos na China, à cabeça dos quais encontramos a questão dos Uigures. O terceiro seria adoptar uma verdadeira política de cooperação com os PED, ou seja apresentar desculpas oficiais e reparações pelos crimes passados, suprimir todos os acordos neocoloniais actuais (livre troca, acordos de guarnição militar [1], FCFA, etc.) e por fim pôr a ajuda pública ao desenvolvimento a 1 % do RNB unicamente sob a forma de doações e sem condições.
A ausência de participação dos credores privados é um grande problema que mostra sobretudo que os governos são hoje em dia muito submissos, de forma consciente e voluntária, aos interesses da finança
Quanto à ausência de participação dos credores privados, ela é de facto um grande problema que mostra sobretudo que os governos são hoje em dia muito submissos, de forma consciente e voluntária, aos interesses da finança. A posição largamente maioritária dos credores privados espelha por um lado a contínua falta de empenho dos estados no financiamento do desenvolvimento, o que resulta em lucros para o sector privado; é um processo que arrancou nos anos 80 e acelerou nas duas últimas décadas. O sector privado tem um lugar cada vez mais importante no financiamento do desenvolvimento. Se olharmos para os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e para a Agenda 2030, isto é absolutamente flagrante. O próprio FMI incita os PED a recorrerem às emissões de obrigações para financiarem as suas necessidades de infraestruturas. As IFI e o G20 agem como autênticos bombeiros pirómanos. Mas se houvesse verdadeira vontade política no sentido da mudança, ela seria viável. Contudo, o problema é bastante semelhante ao da luta contra a evasão fiscal e a taxação das multinacionais. À semelhança do recuo de Biden e da OCDE, fizeram-se grandes anúncios, para finalmente chegarmos a legislações nacionais e internacionais insuficientes, para não dizer obsoletas.
O sistema subjuga completamente os países africanos (e todos os países em desenvolvimento). Descontando as taxas de juro, prémios de risco, comissões especiais, etc., quando um país como a Nigéria pede um empréstimo de 100, nunca chega a encaixar mais de 70
É evidente que o modelo de financiamento ao desenvolvimento tem de ser totalmente repensado. Primeiro é preciso afirmar que o endividamento em si mesmo não é coisa má – desde que seja contraído em boas condições e sirva o interesse geral, é perfeitamente legítimo recorrer ao endividamento para desenvolver. Mas actualmente o sistema subjuga completamente os países africanos, como de resto todos os países em desenvolvimento em geral. Descontando as taxas de juro (que podem chegar aos 10 % ou mais), os prémios de risco, as comissões especiais, etc., quando um país como a Nigéria, por exemplo, pede um empréstimo de 100, nunca lhe chegam aos cofres mais de 70. este tipo de práticas também é aplicado por intervenientes como o Banco Mundial. É uma pilhagem organizada. Embora sejam os PED quem mais necessita de financiamento, são precisamente eles quem o paga mais caro. Por isso é necessário reformar totalmente, para não dizer revolucionar, o financiamento dos PED.
Depois há uma pilha de mecanismos para os quais existe margem de manobra. Sobre a questão dos fluxos financeiros ilícitos, por exemplo, a CNUCED estima que em África as perdas anuais são no mínimo de 89 mil milhões $USD por ano, o que é mais do que o serviço da dívida anual desses mesmos países. Isto significa que se recuperarmos esses 89 mil milhões (no mínimo, repito) a África fica em condições de se desendividar totalmente no espaço de apenas 8-9 anos.
Depois é preciso agir ao nível dos acordos de libre troca, os APE, a ALECA, etc., e pura e simplesmente anulá-los. Em seu lugar os países africanos devem ter a possibilidade de aplicar medidas proteccionistas, como o controle dos movimentos de capitais, em paralelo com uma verdadeira solidariedade entre os povos, ao mesmo tempo pan-africanista e internacionalista.
Agir igualmente ao nível monetário, suprimindo o F-CFA nos 15 países onde ele existe e dar a esses países a possibilidade de cunharem a sua própria moeda. Será necessário criar uma moeda comum regional ou continental? Penso que tudo depende da forma como isso for realizado. Se a África ou algumas regiões de África aplicarem uma lógica semelhante à do euro, ver-se-ão confrontados com os mesmos problemas de contradição entre centros e periferias. A política da França e da Alemanha nitidamente não traz proveito à Grécia nem aos países da ex-Jugoslávia, por exemplo. O mesmo aconteceria na África Ocidental, os interesses da Nigéria e da Costa do Marfim não são os mesmos de outros países da região, muito mais fracos economicamente.
É preciso dar a África a possibilidade de desenvolver o seu sector secundário e industrial, conjugando o desenvolvimento, evidentemente, com a problemática ecológica. É a transformação das matérias-primas que permite realizar um verdadeiro valor acrescentado
É preciso também permitir que os bancos centrais, nacionais ou regionais, financiem mais expressivamente as pequenas e médias empresas (PME) e as populações. O acesso ao crédito é actualmente muito limitado.
Seria também necessário suprimir uma quantidade de acordos bilaterais, como sejam os acordos económicos exclusivos ou preferenciais, os acordos de guarnição militar, etc.
Finalmente, é preciso abandonar o modelo extractivista destrutivo, baseado na exportação de matérias-primas. Este modelo foi imposto pelas potências imperialistas e pelas instituições financeiras internacionais desde a época colonial até aos nossos dias. Não é normal que a maior parte do petróleo extraído em África seja exportado para a Europa, onde é transformado, para depois regressar sob a forma de carburantes aos mesmos países donde saiu. É preciso dar a África a possibilidade de desenvolver o seu sector secundário e industrial, conjugando-o, bem entendido, com a problemática ecológica. É transformando as matérias-primas que se consegue obter maior valor acrescentado. Sem isso, África bem pode ser o continente mais rico em recursos naturais, que isso não o impede de permanecer em níveis de desenvolvimento inquietantes para as populações.
Entrevista de César Chantraine
Tradução de Rui Viana Pereira
[1] N. do T.: Trata-se de acordos militares celebrados com a antiga potência colonizadora (neste caso a França); em troca da instalação de meios e pessoal militar para defender o regime vigente na ex-colónia (muitas vezes ditatorial), esta compromete-se a defender os interesses políticos, económicos e estratégicos do antigo colonizador. Para mais detalhes históricos, ver «L’œuvre négative du néocolonialisme français et européen en Afrique : Les Accords de défense : de la Garnison à la Projection».
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