A auditoria cidadã à dívida pública tem sido, desde o início da crise da dívida na Grécia, não apenas um argumento de debate político, mas, sobretudo, um actor da actualidade política e social. Esta particularidade grega deve-se a dois factores: primeiro, ao facto de, desde Dezembro de 2010, haver uma campanha em torno da auditoria cidadã à dívida, a primeira campanha deste tipo não só na Europa mas em todo o hemisfério Norte. Segundo, devido ao facto de esta campanha ter tido, desde início, um grande sucesso popular, o que fez da auditoria à dívida uma questão quase incontornável. Um acontecimento político recente confirma esta afirmação. Refiro-me à inclusão do ponto «formação de uma Comissão Internacional de auditoria à dívida» entre os cinco pontos programáticos, enunciados pelo líder da Coligação de Esquerda Radical (SYRIZA), Alexis Tsipras, no início da sua tentativa – abortada – para formar um governo de esquerda. O que se seguiu a estas declarações de Tsipras ilustra bem o lugar muito importante que ocupa a questão da auditoria cidadã à dívida no actual confronto político na Grécia. Primeiro, Antonis Samaras, presidente da Nova Democracia, a direita tradicional, que alternava no poder com o social-democrata PASOK, e, em seguida, Fotis Kouvelis, presidente da Esquerda Democrática, que resulta de uma cisão, à direita, no Syriza, fizeram desta Comissão de Auditoria um verdadeiro casus belli contra o SYRIZA, considerando-a a mais «extremista» e «louca» das suas propostas, «aquela que conduz a Grécia para fora da Europa Unida e a leva à destruição»!
Se bem que a sequência dos acontecimentos seja imprevisível, uma coisa agora é certa: a questão da auditoria independente à dívida grega paira sobre os acontecimentos em torno da luta de classes na Grécia, traçando uma linha de demarcação entre aqueles que são a favor e os que são contra as políticas de austeridade e entre aqueles são a favor e os que são contra o cumprimento dos vários compromissos assumidos entre a Troika, o FMI e os responsáveis pelo Estado grego. Não é por acaso que as formações de direita e de extrema direita, que partilham a rejeição dos planos de austeridade (mesmo os neonazis!), se declaram favoráveis à auditoria cidadã, chegando mesmo a falar de dívida ilegítima e odiosa ou a citar longamente o CADTM e Eric Toussaint!
Esta situação pode ser compreendida se tivermos em conta que, de acordo com uma sondagem feita no Verão passado, mais de 3 milhões de gregos (cerca de 30% da população grega) não só são favoráveis à auditoria cidadã à dívida pública, como dizem partilhar a «filosofia» e os objectivos da Campanha para a Realização de uma Comissão de Auditoria! Obviamente, isto não se deve unicamente à actividade da nossa campanha, mas ilustra bem o seu impacto entre a população. Neste ponto, acredito, porém, que se imponha a seguinte reflexão: apesar de aparentemente ingrata e bastante reservada para os especialistas (economistas, advogados...), a campanha de auditoria cidadã inspirou sempre entusiasmo e atraiu multidões, mais ainda do que as campanhas sobre causas que, à primeira vista, parecem mais «compreensíveis» e próximas das preocupações dos cidadãos. Esta constatação é feita, em primeiro lugar, na Grécia, mas o que está também a acontecer, em países como a França ou a Espanha, reforça a nossa convicção de que estamos perante um fenómeno generalizado.
A explicação para esta reacção inesperada por parte de amplos sectores da população é dupla: primeiro, existe a dívida em si mesma considerada «a mãe de todos os problemas» actuais, tanto para «os de acima» como para «os de baixo». Portanto, tudo o que diz respeito a este problema dos problemas e à sua solução gera necessariamente interesse e a participação das pessoas. Depois, há a «filosofia», o núcleo duro da dinâmica em torno da auditoria cidadã à dívida pública. Em momentos de crise profunda e, ainda mais, quando esta crise obriga, de facto, como acontece actualmente na Grécia, grande parte da sociedade a considerar seriamente a possibilidade de tomar nas suas mãos o seu próprio destino para sobreviver, vemos o seguinte fenómeno: a simpatia das massas pela auditoria cidadã transforma-se na necessidade de se apropriar da sua «filosofia» para a transformar em acções nos locais onde os cidadãos vivem, trabalham, aprendem, se divertem, cuidam de si, comunicam, agem... em suma, onde quer que habitem, respirem e se movam coletivamente.
Na Grécia, houve um início precoce de transformação da simpatia em acção, foi na altura em que o movimento popular atingiu o seu clímax. Foi, no auge do movimento dos Indignados, o Aganaktismeni grego, em Junho de 2011. Nesse momento, a auditoria grega à dívida foi, de facto, assediada por milhares de pessoas mobilizadas, que nos perguntavam o que fazer, oferecendo os seus préstimos para descobrir escândalos. Esse foi o momento oportuno de os incentivar a organizarem-se em comités de base de cidadãos com o objectivo de exercerem o direito de controlar as actividades «dos de cima» nos bairros, nos municípios, nos locais de trabalho, nas escolas e nas universidades, nos hospitais, etc.
Infelizmente, este estímulo não foi aproveitado pela campanha de auditoria e perdeu-se uma grande oportunidade de levar a cabo uma iniciativa exemplar de auto-organização e mobilização da população. Houve um movimento de refluxo e as consequências para a campanha de auditoria foram muito negativas. Sem os voluntários «anónimos» que poderiam ajudar a contornar problemas (por exemplo, voluntários que trabalhavam em ministérios que não só sabiam dos «negócios» em primeira mão, como também poderiam procurar documentos para assacar responsabilidades), a auditoria grega foi forçada a retrair-se sem nunca poder honrar as suas promessas iniciais.
Para nós, a lição a tirar da experiência grega é muito clara: se se quiser cumprir a missão libertadora de pôr em movimento a população auto-organizada, a auditoria cidadã à dívida não pode ser um assunto para especialistas nem limitar-se a um controlo de topo (na verdade, praticamente impossível) da dívida pública. Ela tem, desde início, de associar a população ao seu trabalho, incentivando as pessoas a porem em prática as suas próprias auditorias, ou seja, a «abrirem os livros» nos locais onde habitam e trabalham, comunicam e vivem. Sem estender as suas raízes até às profundezas da sociedade, a campanha de auditoria está condenada, desde início, a parar a meio do caminho, permitindo que o entusiasmo inicial vá sendo gradualmente substituído pelo desânimo.
Exactamente porque nós não estamos noutros locais, e porque o movimento das auditorias cidadãs está agora em plena expansão por quase toda a Europa, é preciso aproveitar as experiências de outros para não repetir erros. Porque, e não nos esqueçamos, estas campanhas de auditoria representam hoje uma grande esperança e abrem caminho ao movimento europeu unitário de massas, que pode dar aos trabalhadores e povos da Europa a capacidade de enfrentar e vencer a coligação dos seus adversários de classe...
Tradução: Maria da Liberdade
CADTM Grécia