Este artigo é a continuação de vários trabalhos publicados pelo autor em 2011, incluindo: «No cerne do ciclone: a crise da dívida na União Europeia» , 29 de Novembro de 2011; «Crash do Dexia: a caminho do efeito dominó na União Europeia?», 7 de Outubro de 2011; “As causas da crise são ilegítimas” (Eric Toussaint entrevistado por Marius Fort do diário espanhol La Vanguardia), 21 de Outubro de 2011.
Os projectores estão voltados para Espanha e para o seu sector bancário. Depois da Grécia, Irlanda, Portugal, os planos de resgate perseguem-nos ou estamos apenas no seu trajecto? Devemos ser lúcidos e reconhecer que a crise bancária e financeira está longe do fim, tanto na Europa como nos Estados Unidos. O seu impacto sobre a economia mundial e, consequentemente, sobre as condições de vida das populações está para durar. Contudo, na Europa, durante o primeiro semestre de 2012, os principais meios de comunicação fizeram eco das declarações de dirigentes europeus, representantes do BCE e de bancos privados, convencendo a opinião pública de que a política implementada tinha ajudado a estabilizar o sector bancário.
De acordo com o discurso dominante, as preocupações devem-se ao sobreendividamento dos estados, a um possível incumprimento da Grécia, a um contágio a Espanha e a Itália. Para os bancos, a consolidação está em curso, o BCE tem a situação controlada. De janeiro até ao início de Maio de 2012, a mensagem repetida às pessoas era mais ou menos a seguinte: «Devido ao bilião de euros recebido em empréstimos, duas tranches (dezembro 2011 e fevereiro de 2012), durante três anos, a uma taxa de juro de 1%, concedidos pelo BCE, as instituições financeiras privadas têm capacidade de enfrentar as dificuldades dos Estados em matéria de dívida soberana, os mercados financeiros estão tranquilos, as bolsas estão outra vez a subir depois de um ano particularmente difícil. Graças à adopção generalizada da regra de ouro, aos esforços para reduzir as despesas do Estado, à reforma do mercado de trabalho para o tornar ainda mais flexível e à reforma das pensões para reduzir a sua carga, as finanças públicas estão a ficar consolidadas. São ainda necessários alguns esforços, mas vemos o fundo do túnel. Durmam descansados, bom povo! ».
O mês de Maio de 2012 trouxe um desmentido fulgurante. Na verdade, tornou-se evidente que os bancos privados não tinham saneado as suas contas, nem tinham mudado o seu comportamento de alto risco, os seus dirigentes continuavam sedentos de bónus e incentivos. Os banqueiros acreditam que os governos estarão sempre lá para os salvar. Os resgates bancários com dinheiro público continuam. A Depressão prolonga-se. A dívida pública aumenta devido ao efeito combinado dos resgates e da depressão económica. A chantagem dos mercados financeiros sobre o elo mais fraco da zona euro ganhou fôlego.
O sistema bancário está no meio de um furacão que segue o seu caminho, derrubando, um após outro, os grandes bancos privados e ignorando fronteiras. Ao contrário do furacão, um fenómeno natural bem conhecido, a tempestade financeira não é natural: resulta dos ciclos de funcionamento do capitalismo, potenciado por 30 anos de desregulação neoliberal.
O caso espanhol é emblemático porque mostra que a crise não tem origem na dívida pública provocada por um estado social muito gastador. Em 2007, quando a crise rebentou nos Estados Unidos e antes de a Espanha ser arrastada, a dívida pública espanhola representava apenas 36% do produto interno bruto. Espanha foi um dos melhores alunos da zona euro com uma taxa de endividamento claramente inferior aos 60% previstos pelo Tratado de Maastricht, com um saldo orçamental positivo (+1,9% do PIB quando Maastricht impunha um máximo de 3% de saldo negativo). A dívida pública espanhola representava apenas 18% da dívida total do país. No entanto, não é a dívida pública que se deve responsabilizar, porque a crise que afecta Espanha foi provocada directamente pelo sector privado: o sector imobiliário e o sector do crédito.
Em Espanha, em Maio de 2012, Bankia, o terceiro banco espanhol em termos de activos, pediu ajuda pública no valor de 19 mil milhões de euros (que se juntaram aos 4,5 mil milhões já recebidos). O Banco de Espanha considera que o sistema bancário ibérico possui activos tóxicos no valor de 176 mil milhões de euros. Vários especialistas admitem que são necessários 40 a 200 mil milhões de euros para recapitalizar os bancos espanhóis.
O sector privado financeiro espanhol não é o único que está em causa. O grupo bancário franco-belga-luxemburguês, Dexia, que foi resgatado, pela segunda vez, da falência, em outubro de 2011, reconheceu ter tido perdas de 11 mil milhões de euros durante o exercício de 2011 e o processo ainda não terminou: vai agora pedir aos poderes públicos uma nova recapitalização (pelo menos 10 mil milhões serão necessários). A JP Morgan, um dos principais bancos de investimento dos Estados Unidos, teve de reconhecer uma perda de 2 mil milhões de dólares, em Maio de 2012 (esta informação provocou, em poucos dias, uma queda de 25 mil milhões de dólares na sua capitalização bolsista) e prevêem-se perdas muito mais elevadas no futuro. Os bancos gregos estão numa situação difícil, enfrentam levantamentos massivos (nos quais gerentes e acionistas estão activamente envolvidos) e sobrevivem, por enquanto, graças aos empréstimos de urgência que o Banco Nacional da Grécia lhes concede diariamente num total de 100 mil milhões de euros, com o aval do Banco Central Europeu [1].
Entre os 800 bancos europeus que pediram empréstimos ao BCE, no valor de 1 bilião de euros (1 000 000 000 000 €), muitas entidades (incluindo os maiores bancos) estão novamente a ficar sem dinheiro, ou ficarão em breve, e pressionam o BCE no sentido de voltar a conceder o mesmo tipo de empréstimos a taxas mais baixas (inferiores à inflação) e com um prazo alargado.
Apesar de a atenção da opinião pública ser dirigida para a dívida pública acumulada pelos estados, a principal causa da crise reside no balanço dos bancos privados (e dos grandes grupos seguradores). Eles acumularam enormes quantidades de dívida [2] para financiar operações de alto risco, que produzem com frequência perdas colossais. Essas perdas ocorrem à medida que os contratos sobre produtos estruturados e outros activos tóxicos vão expirando.
A lição a tirar é que mais do que nunca devemos exigir a expropriação dos bancos e a sua transferência para o sector público sob controlo cidadão. Devemos rejeitar os dispendiosos resgates que aumentam cada vez mais a dívida sem resolverem a crise bancária de forma sustentável. As expropriações devem ser feitas sem indemnizar os grandes accionistas (os pequenos acionistas serão indemnizados) e o custo do saneamento das contas das instituições expropriadas deve ser recuperado através do seu património (porque possuem património que vai muito para além dos bancos). É necessário alterar a relação de forças de forma a permitir que os poderes públicos possam repudiar a parte ilegítima da dívida, com o objectivo de alcançar recursos para a implementação de uma política de pleno emprego e de investimento público em actividades que melhorem as condições de vida da população, que protejam o meio ambiente, que rompam com o capitalismo e com o produtivismo. O objectivo é pôr em prática um conjunto de políticas coerentes, em termos de alternativas económicas e sociais, para realizar uma grande viragem pós-neoliberal, pós-produtivista e anti-capitalista [3] . No caminho para uma mudança radical, a auditoria cidadã à dívida é uma ferramenta de sensibilização e de mobilização preciosa e indispensável.
Tradução Maria da Liberdade
Eric Toussaint, professor na Universidade de Liège, é presidente do CADTM Bélgica (Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo) e membro do Conselho Científico da ATTAC França. Escreveu com Damien Millet: AAA Audit Annulation Autre politique, Seuil, Paris, 2012.
[1] Financial Times, 22 Maio de 2012, « Secret €100bn assistance propping up Greek banks », p. 4.
[2] Dívidas em relação aos poderes públicos (BCE, FED, bancos centrais nacionais), dívidas em relação aos Money Market Funds, dívidas em relação a outros bancos privados, dívidas sob a forma de títulos que são vendidos nos mercados financeiros, dívidas a clientes que depositam diariamente o seu dinheiro em conta corrente (por exemplo, o salário de cada mês, mas também o dinheiro disponível de empresas privadas pequenas, média ou grandes) e também as suas poupanças.
[3] Ver Eric Toussaint, «Oito propostas urgentes para uma outra Europa», 12 de Maio de 2011
docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.