No início de Julho de 2013, o ministério público da Confederação Helvética (MPC) pediu uma pena suspensa de dois anos de prisão e o pagamento de 162.000 euros (200.000 francos suíços) [1] contra Jacques de Groote, ex-administrador do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial (BM). Contra os cinco checos inculpados [2], o MPC requereu cinco anos de prisão e multas de 242 000 à 1,2 milhões de euros (1,5 milhões de francos suíços). Segundo várias fontes de imprensa, todos eles são acusados de ter desviado os activos da sociedade mineira checa Mosteck Uhelna Spolecnost (MUS) entre 1997 e 2003.
Na fase preliminar deste caso, o MPC tinha ordenado a apreensão de cerca de 660 milhões de francos suíços (540 milhões de euros ou 705 milhões de dólares) depositados em contas bancárias na Suíça. Esta quantia continua arrestada. O veredicto deveria ser lid em Outubro de 2013. Este confirma o requerimento do MPC, mais 425 milhões de francos suíços (334 milhões de euros) deveriam ser restituídos aos lesados, segundo as conclusões do MPC, ou seja 149 milhões de francos suíços ao Estado checo e 276 milhões de francos suíços à sociedade MUS. Ainda segundo o requerimento, a parte desse dinheiro que não seja restituída à MUS deveria ser definitivamente confiscada.
O processo teve início em Maio de 2013 em Bellinzona (Tessin suíço) e incide sobre um dos mais avultados negócios de branqueamento jamais julgados na Suíça. Prossegue em Julho de 2013 com as alegações dos advogados de defesa. Os acusados declaram-se não culpados e pedem a restituição do dinheiro arrestado.
Por seu lado, o MPC afirma que os acusados aproveitaram a privatização da mina MUS, situada no Norte do país – cujo carvão servia então para produzir 40% da electricidade checa –, para enriquecerem ilegalmente, graças a um esquema complexo de sociedades de fachada internacionais.
Segundo a agência noticiosa checa CTK, o governo checo foi cúmplice no desvio de bens públicos, ao aceitar a venda da empresa vendendo as suas acções por um quinto do seu valor real [3]. O actual presidente da República Checa, Miloš Zeman, neoliberal, era primeiro-ministro por altura da privatização e sempre afirmou que a venda da mina MUS não trouxe qualquer prejuízo para o Estado [4]. O facto é que o Estado checo não actuou contra os responsáveis pela fraude. Se a justiça suíça não tivesse tomado o caso em mãos, os acusados nunca seriam realmente incomodados.
Para além da pessoa de Jacques de Groote
O Banco Mundial e o FMI lançaram um vasto programa de privatizações na República Checa, como de resto na maioria dos demais países do ex-bloco soviético, na época em que Jacques de Groote era director executivo (o seu mandato terminou em 1991 no BM e em 11994 no FMI).
Para além da pessoa de Jacques de Groote e quaisquer que sejam as intenções da justiça suíça, o processo em curso oferece uma boa ocasião para pôr em evidência a que ponto a intervenção do FMI e do Banco Mundial foram prejudiciais. Manifestamente a justiça suíça evita pôr em causa essas instituições. Apenas persegue os indivíduos. Nada disso nos deve impedir de ver que por detrás dos indivíduos existe um sistema e instituições que lhes permitem agir dessa maneira ou que os encorajam a fazê-lo.
É importante entender que o que aconteceu na República Checa com a privatização da mina MUS ocorreu igualmente em inúmeros outros casos nos últimos três decénios, tanto nos países do ex-Bloco de Leste, como nos países ditos «em desenvolvimento» ou, na actualidade, na Grécia, em Portugal, em Chipre e noutros países. Em todos os casos os governantes locais foram cúmplices: permitiram que meia dúzia de indivíduos e de empresas privadas tirassem proveito dos bens comuns. O mesmo se passou nos países mais industrializados – Alemanha, França, Reino Unido, Japão, EUA, Itália, Bélgica... países nos quais, até agora, a intervenção do FMI e do Banco Mundial não foi necessária, uma vez que as decisões foram tomadas directamente por governantes estreitamente ligados às grandes empresas.
Para que o desvio maciço dos dinheiros públicos possa ser executado, é ainda necessária a participação activa dos grandes bancos. No caso que nos traz aqui, o Crédit Suisse (um dos dois principais bancos suíços) está implicado, mas não foi directamente levado ao banco dos réus. Há que sublinhá-lo.
O caso particular de Jacques de Groote
Independentemente da decisão final que vanha a ser tomada pela justiça suíça, é claro que Jacques de Groote participou activamente no processo de privatizações que produziu resultados nefastos para as populações e muito lucrativos para um punhado de indivíduos que enriqueceram à custa dos bens colectivos.
No seu caso, enquanto estava em funções como director executivo do FMI, a fazermos fé no patrão da CAASA, Alain Aboudharam, De Groote terá recebido uma remuneração avultada por serviços que lhes prestou. Não se tratava da mina MUS, mas estavam em causa actividades na República Checa.
Em carta datada dirigida ao CADTM a 19/junho/2013, Alain Aboudarham, proprietário da sociedade Casaa sediada em Lausana, afirma que entregou a Jacques de Groote mais de 1,2 milhões de dólares durante o período de 1992-1994, quando ele ainda estava em funções no FMI. [5]
Eis um trecho da carta: «Através dos seus contactos quando era administrador do FMI até 1994, ajudou-me, através da minha sociedade, a marcar encontros com dirigentes checos. Assim pude encontrar-me, em Maio de 1992, com o presidente da sociedade Skodaexport, uma sociedade especializada no domínio de projectos industriais e infraestruturas. A minha sociedade concluiu vários projectos com esta empresa, dos quais apenas dois foram apoiados pelo sr. de Groote ao nível das relações na região checa. Tratava-se num caso da construção de um pipeline na Índia, entre Kandla e Bathinda, totalmente financiado pelo governo indiano, e noutro caso tratava-se de negociar as dívidas fiscais da Skodaexport com o Ministério das Finanças.» [6]
Alain Aboudarham prossegue a sua carta discriminando os montantes depositados: «O serviço de aconselhamento fornecido pelo sr. De Groote à minha sociedade, durante os anos de 1992 a 1994, permitiu-lhe receber comissões no valor de cerca de 1.292.902 $. Em finais de 1996 esse valor ascendeu a 1.611.537 $. Foi nessa data que a nossa colaboração profissional terminou, cessando todos os laços financeiros entre nós.»
Alain Aboudarham explicita a forma de pagamento: «Os honorários do sr. De Groote eram efectuados, em geral, por meio da regularização de dívidas que ele tinha contraído no passado junto de diversas pessoas físicas ou morais. Assim, desde finais de 1992 até 31 de Dezembro de 1994, paguei as comissões devidas amortizando as suas dívidas, algumas delas devidas desde 1980, junto da Banque Belgolaise, da Banque Nagelmakers, da Banque de Crédit Hypothécaire de Anvers, entre outras, ou de outras pessoas físicas».
Alain Aboudarham acrescenta que depois de terminar a colaboração de «tipo profissional» (para utilizar os seus termos), manteve relações a título pessoal com De Groote: «Em 1998, a título pessoal e de maneira informal, emprestei-lhe dinheiro para ele liquidar a hipoteca sobre a sua casa de Washington. Continuei a ajudá-lo até finais de 2000. A 31 de Dezembro de 2000, já me devia 421.584 $. Quando pedi o reembolso, a coisa revelou-se muito difícil de resolver e, finalmente em 2002, quando recorri à justiça americana, o sr. De Groote pôs-se ao abrigo do famoso capítulo 11 (relativo a falências) a fim de ser protegido contra os seus credores».
No artigo intitulado «Uma figura emblemática do FMI e do Banco Mundial perante a justiça suíça» [7] fazia-se referência às sentenças emitidas pela justiça dos EUA no processo intentado por Aboudarham contra De Groote. Na sua carta, Aboudarham faz questão em precisar as razões pelas quais a sua demanda foi indeferida pela jsutiça norte-americana [8]: «A razão pela qual o sr. De Groote ganhou o processo americano é puramente técnica. Os empréstimos que dispensei ao sr. De Groote foram feitos a título pessoal. As promissórias assinadas por ele, onde reconhecia a sua dívida em relação a mim, estavam timbradas com o nome da minha sociedade Conseil Alain Aboudarham. Cedi-as à minha sociedade aquando do processo judicial. O juiz americano considerou que a sociedade e eu próprio não éramos a mesma entidade e indeferiu o meu pedido não baseado no facto de ele ser meu devedor, coisa que já tinha sido confirmada por um júri do povo, mas pela impossibilidade técnica de aceitar as promissórias de forma a saldar a dívida.»
Por fim Alain Aboudarham faz questão de dissociar o processo jurídico em curso na Suíça das relações que manteve com Jacques de Groote: «Não tendo até hoje jamais desmentido os propósitos avançados pelo sr. De Groote, por uma questão de confidencialidade e anonimato, permito-me fazê-lo agora a fim de evitar confusões entre o que se passou entre 1992 e 1996 entre nós no plano profissional, o processo que nos opôs entre 2002 e 2006 a propósito de um empréstimo pessoal não reembolsado, e o que se passa hoje em Bellinzone, onde ele se senta no banco dos réus juntamente com outras cinco pessoas, acusado de branqueamento de capitais, gestão dolosa e enganosa, corrupção e branqueamento agravado.»
Jacques de Groote como figura emblemática da elite que governa o planeta
Peripécias pessoais à parte, Jacques de Groote simbolisa os aspectos profundamente nefastos das políticas aplicadas de maneira metódica pelo Banco Mundial, pelo FMI e pela elite que governa o mundo em busca do máximo lucro privado e da conslidação do sistema.
Resumindo, ainda que não exaustivamente [9]: apoio ao BM e ao FMI na política espoliadora das potências coloniais até às independências, em flagrante oposição à Carta das Nações Unidas: De Groote participa nessas manobras ao lado da Bélgica, que dominou o Congo «belga» até Junho de 1960; desestabilização e afastamento de Patrice Lumumba (a Bélgica está implicada no assassínio do antigo primeiro-ministro congolês em Janeiro de 1961); apoio à ditadura de Mobutu desde os anos 1960 até ao início dos anos 1990: De Groote foi conselheiro de Mobutu e do seu governo; apoio do BM e do FMI ao regime do general Habyarimana no Ruanda dos anos 1980 ao início dos anos 1990: De Groote foi conselheiro do governo ruandês; recordemos que as ditaduras de Mobutu e de Habyarimana fora culpadas de violações sistemáticas dos direitos humanos e de crimes contra a humanidade. Para completar a lista: aplicação sistemática da agenda neoliberal através da generalização das políticas de ajustamento estrutural, nomeadamente a fim de reembolsar uma dívida odiosa ou ilegítima, e de melhor abrir as economias dos países endividados aos interesses das grandes sociedades privadas internacionais, nas quais De Groote participa quer enquanto director executivo do BM entre 1975 e 1991 e do FMI entre 1973 e 1994; vasto programa de privatizações ditado pelo FMI e pelo Banco Mundial que beneficiou um punhado de indivíduos e umas quantas grandes empresas privadas, as privatizações ficaram frequentemente ligadas a fraudes e logros, como denuncia a justiça suíça no caso da privatização da mina MUS. Junta-se a isto, no caso de Jacques de Groote, um conflito de interesses manifesto, pois enquanto era director do FMI recebeu avultadas somas por ajudas prestadas ao sector privado. É preciso fazer notar que o FMI e o BM não aplicaram nenhuma sanção, nenhuma medida para fazer face ao conflito de interesses, tão-pouco a Bélgica representada por De Groote nas usas instituições.
Neste processo a ganância anda de mão dada, de maneira revoltante, com a violação dos direitos humanos fundamentais. As instituições responsáveis permanecem intocáveis até hoje e os seus dirigentes acreditam beneficiar duma impunidade escandalosa. É tempo de pormos fim a este estado de coisas! É necessário fazer com que os funcionários do FMI e do BM sejam responsabilizados perante a justiça pelos seus actos no exercício das suas funções e que as instituições, enquanto tais, prestem contas perante a justiça pelas suas múltiplas violações dos direitos humanos, que praticaram e continuam a praticar, tanto no Norte como no Sul.
Tradução Rui Viana Pereira. Revisão Maria da Liberdade
Eric Toussaint, historiador e doutorado em Ciências Políticas pelas universidades de Liège e de Paris VIII, preside ao CADTM Bélgica. É autor de Banque mondiale : le Coup d’État permanent. L’Agenda caché du Consensus de Washington, co-edição CADTM / Syllepse / CETIM, Liège/Paris/Genève, 2006, 310 págs. http://cadtm.org/Banque-mondiale-le-coup-d-Etat
É co-autor, com Damien Millet, de A Crise da Dívida: Auditar, Anular, Alternativa Política, ed. Temas e Debates, Lisboa, 2013 (AAA, Audit, Annulation, Autre politique, Le Seuil, Paris, 2012); 65 Questions, 65 Réponses sur la dette, le FMI et la Banque mondiale, Liège, 2012 (versão descarregável gratuita na Internet: http://cadtm.org/65-questions-65-reponses-sur-la,8331 ); La dette ou la vie. co-edição CADTM-Aden, Liège-Bruxelles, 2011. Prémio do livro político atribuído pela Feira do Livro Político de Liège http://www.cadtm.org/Le-CADTM-recoit-le-prix-du-livre
[1] Ver http://www.7sur7.be/7s7/fr/1505/Monde/article/detail/1662168/2013/07/02/Deux-ans-avec-sursis-requis-contre-Jacques-de-Groote.dhtml
[2] Marek Cmejla, Jiri Divis, Oldrich Klimecky, Antonin Kolacek e Petr Kraus.
[4] Ver Anna Kubišta, «Scandale de la privatisation de la société minière de Most: le procès s’ouvre en Suisse», http://www.radio.cz/fr/rubrique/faits/scandale-de-la-privatisation-de-la-societe-miniere-de-most-le-proces-souvre-en-suisse publicado a 13/maio/2013.
[5] Os factos relatados por Alain Aboudarham podem ser consultados neste julgamento: Conseil Alain Aboudaram, S.A. v. De Groote, UNITED STATES DISTRICT COURT FOR THE DISTRICT OF COLUMBIA, June 7, 2004, CONSEIL ALAIN ABOUDARAM, S.A., PLAINTIFF, v. JACQUES DE GROOTE, DEFENDANT. http://dc.findacase.com/research/wfrmDocViewer.aspx/xq/fac.20040607_0000359.DDC.htm/qx
[6] Noutra passagem da sua carta A. Aboudarham especifica: «gostaria que seja feita distinção entre a sociedade Skodaexport, com a qual tive negócios nessa época, e a Skoda (fábrica de automóveis, locomotivas, etc.), que está implicada presentemente num processo em Bellinzone; são, apesar da similitude dos nomes, duas entidades totalmente diversas.»
[7] Ver http://cadtm.org/Uma-figura-emblematica-do-FMI-e-do, publicado a 10-junho-2013.
[8] Ver demanda em http://law.justia.com/cases/federal/appellate-courts/F3/460/46/580705/
[9] Ver exposição detalhada do resumo aqui apresentado no artigo já citado «Uma figura emblemática do FMI e do Banco Mundial perante a justiça suíça», http://cadtm.org/Uma-figura-emblematica-do-FMI-e-do, publicado a 10-junho-2013.
docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.