Túnis, 20 de Março de 2011
Senhor Mustapha Kamel Nabli, Governador do nosso Banco Central Banco central Estabelecimento que, num Estado, tem a seu cargo em geral a emissão de papel-moeda e o controlo do volume de dinheiro e de crédito. Em Portugal, como em vários outros países da zona euro, é o banco central que assume esse papel, sob controlo do Banco Central Europeu (BCE). (BCT)
O senhor Governador, a 21 de Janeiro de 2011, na conferência de imprensa que deu pouco depois da sua chegada a Washington, onde acedeu à direcção da secção Médio Oriente/Norte de África do Banco Mundial, para ocupar o cargo de governador do BCT, declarou que: «A Tunísia reembolsará as suas dívidas dentro do prazo», no montante de 1120 milhões de dinares, «recorrendo a verbas do orçamento de Estado».
Nós, tunisinos e tunisinas reunidos em assembleia, diante desse banco central que é o nosso:
Considerando que a Tunísia tem de mobilizar, com a maior a urgência, todos os seus recursos financeiros, a fim de fazer face às necessidades da situação actual, designadamente: a pobreza extrema, os subsídios aos desempregados, a melhoria da situação dos assalariados, etc.;
Considerando a situação excepcional que o nosso país atravessa e tendo em conta as imensas necessidades sociais;
Considerando o argumento jurídico do estado de necessidade que permite aos Estados que se encontram em graves dificuldades financeiras a suspensão unilateral do pagamento das suas dívidas (com suspensão dos juros) para dar prioridade às necessidades da sua população;
Considerando o exemplo da Argentina, que optou por suspender unilateralmente o reembolso da sua dívida pública Dívida pública Conjunto dos empréstimos contraídos pelo Estado, autarquias e empresas públicas e organizações de segurança social. entre 2001 e 2005 para não sacrificar as necessidades da população, e que pôde, graças a essa moratória, retomar o crescimento económico;
Considerando que o ex-ditador, respectivo governo e parlamento, que decidiram pagar a dívida, foram expulsos pela revolução do povo tunisino, resultando nulas e sem efeito as suas decisões;
Visto que o senhor governador, aquando da referida conferência de imprensa, declarou exercer as suas funções sob a autoridade do Presidente da República e que apenas a ele tem de prestar contas;
Visto que o mandato do actual Presidente da República não possui legitimidade legal desde 15 de Março de 2011,
a sua decisão de pagar os 1120 milhões de dinares previstos na lei nº 2010-58, de 17 de Dezembro de 2010, definidora da execução financeira para o ano de 2011, já não possui legitimidade legal e deverá ser condenada pelo direito civil e penal, por se tratar de um acto hostil ao povo.
Em vez do pagamento da dívida do ditador, com recurso ao dinheiro do povo, vimos informá-lo que pedimos ao poder judicial o repatriamento do dinheiro do povo, que foi indevidamente apropriado por Ben Ali, e outros próximos dele, e depositado em bancos estrangeiros.
Considerando a petição (em curso de recolha de assinaturas) dos deputados europeus que pede a suspensão imediata do reembolso dos créditos
Créditos
Montante de dinheiro que uma pessoa (o credor) tem direito de exigir a outra pessoa (o devedor).
europeus (com suspensão dos juros) respeitantes à Tunísia e uma auditoria desses créditos para identificação da parte ilegítima, a saber, a parte que não aproveita ao povo tunisino e que deve ser anulada sem condições,
Vimos solicitar-lhe que decrete imediatamente uma moratória unilateral sobre a dívida pública da Tunísia (com suspensão dos juros), durante o período de realização da auditoria dessa dívida. Com efeito, uma parte considerável dessa dívida é herdada da ditadura de Ben Ali e recai, por consequência, na classificação jurídica de «dívida odiosa
Dívida odiosa
Segundo a doutrina, para que uma dívida seja considerada odiosa, e portanto nula, tem de preencher as seguintes condições:
1. Foi contraída contra os interesses da Nação ou contra os interesses do povo ou contra os interesses do Estado.
2. Os credores não conseguem demonstrar que não podiam saber que a dívida foi contraída contra os interesses da Nação.
É preciso sublinhar que, segundo a doutrina da dívida odiosa, a natureza do regime ou do governo que contraiu a dívida não é particularmente importante, pois o que conta é a utilização dada à dívida. Se um governo democrático se endividar contra o interesse da população, a dívida pode ser qualificada odiosa, desde que preencha igualmente a segunda condição. Por consequência, e contrariamente a uma interpretação errada desta doutrina, a dívida odiosa não se aplica apenas aos regimes ditatoriais. (Ver Éric Toussaint, «A Dívida Odiosa Segundo Alexandre Sack e Segundo o CADTM»)
O pai da doutrina da dívida odiosa, Alexander Nahum Sack, diz claramente que as dívidas odiosas podem ser atribuídas a um governo regular. Sack considera que uma dívida contraída por um governo regular pode ser considerada incontestavelmente odiosa, desde que preencha os dois critérios acima apontados.
E acrescenta: «Se estes dois pontos forem confirmados, cabe aos credores o ónus de provar que os fundos envolvidos nos referidos empréstimos foram utilizados não para fins odiosos, prejudiciais à população do Estado, no seu todo ou em parte, mas sim para as necessidades gerais ou especiais desse Estado, e não apresentam carácter odioso».
Sack definiu um governo regular da seguinte forma:
«Deve ser considerado regular o poder supremo que existe efectivamente nos limites de um dado território. É indiferente ao problema em foco que esse poder seja monárquico (absoluto ou limitado) ou republicano; que proceda da “graça de Deus” ou da “vontade do povo”; que exprima a “vontade do povo” ou não, do povo inteiro ou apenas de uma parte deste; que tenha sido estabelecido legalmente ou não.»
Portanto não restam dúvidas sobre a posição de Sack, todos os governos regulares, sejam eles despóticos ou democráticos, em todas as suas variantes, são susceptíveis de contraírem dívidas odiosas.
». Segundo a doutrina da dívida odiosa, reconhecida pelo direito internacional: «Se um poder despótico contrair uma dívida não para prover às necessidades e interesses do Estado, mas para fortalecer o poder despótico, para reprimir a população que o combate, etc., essa dívida é odiosa para a população inteira do Estado (…). Essa dívida não é imperativa para a nação; é uma dívida de regime, dívida pessoal do poder que a contraiu, por consequência cai com a queda desse poder.» Ao concederem empréstimos à ditadura de Ben Ali, os credores «cometeram um acto hostil contra o povo; não podem pois esperar que a nação emancipada de um poder despótico assuma as dívidas “odiosas”, que são dívidas pessoais desse poder», segundo a doutrina.
A auditoria, que deveria incidir sobre a totalidade da dívida pública da Tunísia e envolver representantes da sociedade civil tunisina e internacional, como fez o governo equatoriano em 2007-2008, permitirá esclarecer o destino dado aos fundos apoderados, as circunstâncias que rodeiam os contratos de empréstimo, as contrapartidas desses empréstimos (e suas condições), bem como os seus impactes ambientais, sociais e económicos. A auditoria permitirá assim identificar a parte ilegítima da dívida tunisina, a qual deve ser repudiada, mas também evitar a criação de um novo ciclo de endividamento ilegítimo e insustentável, responsabilizando os credores e a futura governação da Tunísia. A parte da riqueza que pertence ao povo tunisino deve ser-lhe restituída. Só ele pode decidir do uso a dar-lhe, a fim de a pôr ao serviço das aspirações legítimas inscritas na revolução.
Queira aceitar, Senhor Governador, os cumprimentos dos cidadãos signatários,
Raid Attac / Cadtm Tunisie
Union des Diplômés de l’université Chômeurs
Tradução : Rui Viana Pereira