Carta ao governador do Banco Central da Tunísia

31 de Março de 2011




Túnis, 20 de Março de 2011

Senhor Mustapha Kamel Nabli, Governador do nosso Banco Central Banco central Estabelecimento que, num Estado, tem a seu cargo em geral a emissão de papel-moeda e o controlo do volume de dinheiro e de crédito. Em Portugal, como em vários outros países da zona euro, é o banco central que assume esse papel, sob controlo do Banco Central Europeu (BCE). (BCT)

O senhor Governador, a 21 de Janeiro de 2011, na conferência de imprensa que deu pouco depois da sua chegada a Washington, onde acedeu à direcção da secção Médio Oriente/Norte de África do Banco Mundial, para ocupar o cargo de governador do BCT, declarou que: «A Tunísia reembolsará as suas dívidas dentro do prazo», no montante de 1120 milhões de dinares, «recorrendo a verbas do orçamento de Estado».

Nós, tunisinos e tunisinas reunidos em assembleia, diante desse banco central que é o nosso:

Considerando que a Tunísia tem de mobilizar, com a maior a urgência, todos os seus recursos financeiros, a fim de fazer face às necessidades da situação actual, designadamente: a pobreza extrema, os subsídios aos desempregados, a melhoria da situação dos assalariados, etc.;

Considerando a situação excepcional que o nosso país atravessa e tendo em conta as imensas necessidades sociais;

Considerando o argumento jurídico do estado de necessidade que permite aos Estados que se encontram em graves dificuldades financeiras a suspensão unilateral do pagamento das suas dívidas (com suspensão dos juros) para dar prioridade às necessidades da sua população;

Considerando o exemplo da Argentina, que optou por suspender unilateralmente o reembolso da sua dívida pública Dívida pública Conjunto dos empréstimos contraídos pelo Estado, autarquias e empresas públicas e organizações de segurança social. entre 2001 e 2005 para não sacrificar as necessidades da população, e que pôde, graças a essa moratória, retomar o crescimento económico;

Considerando que o ex-ditador, respectivo governo e parlamento, que decidiram pagar a dívida, foram expulsos pela revolução do povo tunisino, resultando nulas e sem efeito as suas decisões;

Visto que o senhor governador, aquando da referida conferência de imprensa, declarou exercer as suas funções sob a autoridade do Presidente da República e que apenas a ele tem de prestar contas;

Visto que o mandato do actual Presidente da República não possui legitimidade legal desde 15 de Março de 2011,
a sua decisão de pagar os 1120 milhões de dinares previstos na lei nº 2010-58, de 17 de Dezembro de 2010, definidora da execução financeira para o ano de 2011, já não possui legitimidade legal e deverá ser condenada pelo direito civil e penal, por se tratar de um acto hostil ao povo.

Em vez do pagamento da dívida do ditador, com recurso ao dinheiro do povo, vimos informá-lo que pedimos ao poder judicial o repatriamento do dinheiro do povo, que foi indevidamente apropriado por Ben Ali, e outros próximos dele, e depositado em bancos estrangeiros.

Considerando a petição (em curso de recolha de assinaturas) dos deputados europeus que pede a suspensão imediata do reembolso dos créditos Créditos Montante de dinheiro que uma pessoa (o credor) tem direito de exigir a outra pessoa (o devedor). europeus (com suspensão dos juros) respeitantes à Tunísia e uma auditoria desses créditos para identificação da parte ilegítima, a saber, a parte que não aproveita ao povo tunisino e que deve ser anulada sem condições,
Vimos solicitar-lhe que decrete imediatamente uma moratória unilateral sobre a dívida pública da Tunísia (com suspensão dos juros), durante o período de realização da auditoria dessa dívida. Com efeito, uma parte considerável dessa dívida é herdada da ditadura de Ben Ali e recai, por consequência, na classificação jurídica de «dívida odiosa Dívida odiosa Segundo a doutrina, para que uma dívida seja considerada odiosa, e portanto nula, tem de preencher as seguintes condições:

1. Foi contraída contra os interesses da Nação ou contra os interesses do povo ou contra os interesses do Estado.
2. Os credores não conseguem demonstrar que não podiam saber que a dívida foi contraída contra os interesses da Nação.

É preciso sublinhar que, segundo a doutrina da dívida odiosa, a natureza do regime ou do governo que contraiu a dívida não é particularmente importante, pois o que conta é a utilização dada à dívida. Se um governo democrático se endividar contra o interesse da população, a dívida pode ser qualificada odiosa, desde que preencha igualmente a segunda condição. Por consequência, e contrariamente a uma interpretação errada desta doutrina, a dívida odiosa não se aplica apenas aos regimes ditatoriais. (Ver Éric Toussaint, «A Dívida Odiosa Segundo Alexandre Sack e Segundo o CADTM»)

O pai da doutrina da dívida odiosa, Alexander Nahum Sack, diz claramente que as dívidas odiosas podem ser atribuídas a um governo regular. Sack considera que uma dívida contraída por um governo regular pode ser considerada incontestavelmente odiosa, desde que preencha os dois critérios acima apontados.

E acrescenta: «Se estes dois pontos forem confirmados, cabe aos credores o ónus de provar que os fundos envolvidos nos referidos empréstimos foram utilizados não para fins odiosos, prejudiciais à população do Estado, no seu todo ou em parte, mas sim para as necessidades gerais ou especiais desse Estado, e não apresentam carácter odioso».
Sack definiu um governo regular da seguinte forma:
«Deve ser considerado regular o poder supremo que existe efectivamente nos limites de um dado território. É indiferente ao problema em foco que esse poder seja monárquico (absoluto ou limitado) ou republicano; que proceda da “graça de Deus” ou da “vontade do povo”; que exprima a “vontade do povo” ou não, do povo inteiro ou apenas de uma parte deste; que tenha sido estabelecido legalmente ou não.»

Portanto não restam dúvidas sobre a posição de Sack, todos os governos regulares, sejam eles despóticos ou democráticos, em todas as suas variantes, são susceptíveis de contraírem dívidas odiosas.
». Segundo a doutrina da dívida odiosa, reconhecida pelo direito internacional: «Se um poder despótico contrair uma dívida não para prover às necessidades e interesses do Estado, mas para fortalecer o poder despótico, para reprimir a população que o combate, etc., essa dívida é odiosa para a população inteira do Estado (…). Essa dívida não é imperativa para a nação; é uma dívida de regime, dívida pessoal do poder que a contraiu, por consequência cai com a queda desse poder.» Ao concederem empréstimos à ditadura de Ben Ali, os credores «cometeram um acto hostil contra o povo; não podem pois esperar que a nação emancipada de um poder despótico assuma as dívidas “odiosas”, que são dívidas pessoais desse poder», segundo a doutrina.

A auditoria, que deveria incidir sobre a totalidade da dívida pública da Tunísia e envolver representantes da sociedade civil tunisina e internacional, como fez o governo equatoriano em 2007-2008, permitirá esclarecer o destino dado aos fundos apoderados, as circunstâncias que rodeiam os contratos de empréstimo, as contrapartidas desses empréstimos (e suas condições), bem como os seus impactes ambientais, sociais e económicos. A auditoria permitirá assim identificar a parte ilegítima da dívida tunisina, a qual deve ser repudiada, mas também evitar a criação de um novo ciclo de endividamento ilegítimo e insustentável, responsabilizando os credores e a futura governação da Tunísia. A parte da riqueza que pertence ao povo tunisino deve ser-lhe restituída. Só ele pode decidir do uso a dar-lhe, a fim de a pôr ao serviço das aspirações legítimas inscritas na revolução.

Queira aceitar, Senhor Governador, os cumprimentos dos cidadãos signatários,

Raid Attac / Cadtm Tunisie
Union des Diplômés de l’université Chômeurs


Tradução : Rui Viana Pereira

CADTM

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