As políticas de austeridade em Portugal

14 de Janeiro de 2014 por Rui Viana Pereira




Não se pode dizer que tenha havido em 2013 medidas de austeridade surpreendentes – todas estavam previstas no primeiro Memorando de entendimento entre a Troika Troika A Troika é uma expressão de apodo popular que designa a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional. e o governo português, assinado em Maio-2011 por todos os partidos do arco do poder (PS, PSD e CDS). [1]

O Memorando impõe profundas alterações económicas e políticas:

A alteração da estrutura económica e das relações de trabalho

A transformação acelerada da estrutura económica do país inclui:

  • redução do mercado de consumo interno;
  • canalização de bens e recursos produtivos para os sectores exportadores e para o turismo;
  • criação de uma bolsa de mão-de-obra barata e periférica;
  • substituição de todos os trabalhadores com direitos por trabalhadores precários.

A aposta nas exportações coloca o problema da produtividade e rendibilidade competitiva a nível internacional. Mas como existe uma política de desinvestimento no capital fixo, a única forma de aumentar os índices de produtividade e lucro Lucro Resultado contabilístico líquido resultante da actividade duma sociedade. O lucro líquido representa o lucro após impostos. O lucro redistribuído é a parte do lucro que é distribuída pelos accionistas (dividendos). consiste em baixar os salários, aumentar as horas de trabalho e criar novas formas de trabalho não remunerado. No curto espaço de um ano surgiu um gigantesco exército de reserva de mão-de-obra (desemprego real: > 28 %; desemprego oficial: 16 %). Quem sai do desemprego cai no trabalho precário. O despedimento sem justa causa encontra novas formas legais e os horários de trabalho são legalmente aumentados. Trabalha-se muitas vezes ao fim de semana sem remuneração, apenas para manter o emprego.

Em 2013 a situação de miséria e desemprego provocou uma vaga de emigração que bateu todos os recordes históricos. [3] Todos os dias são penhorados 125 mil euros de pensões, sobretudo porque muitos idosos são fiadores dos filhos e netos impossibilitados de pagarem as suas contas, e o número de pessoas a viverem abaixo do limiar de pobreza ascende já a 1,9 milhões (18 % da população).

Quanto à produção agrícola, a auto-suficiência alimentar é progressivamente substituída pela monocultura para exportação. A indústria do papel criou em Portugal a maior área de eucalipto da Europa [4] e as novas leis permitem estender o eucalipto a todo o território, sem restrições; outras monoculturas estão ligadas às indústrias químicas e à Monsanto. Em vastas zonas onde havia agricultores e pastores, encontramos agora eucaliptos, estâncias turísticas e campos de golfe.

A aposta no turismo é mais subtil, mas ainda assim visível: a esmagadora maioria dos edifícios históricos e dos edifícios públicos (incluindo escolas e hospitais) foram entregues a consórcios que os transformam em hotéis e centros de lazer. Em Lisboa, no espaço de um ano, surgem 80 novos hotéis; os espaços públicos tradicionais vão desaparecendo para dar lugar a espaços reservados ao consumo turístico.

A produção just in time [5] coloca o sector dos transportes no fulcro do sistema produtivo, que pode encontrar aí o seu elo fraco. Este facto permite compreender as transformações radicais na lei e na estrutura de sectores nevrálgicos como a estiva (fluxo de matérias-primas, componentes e exportações) e os transportes (fluxo de mercadorias e trabalhadores). Os trabalhadores destes sectores contam-se entre os mais lutadores, mas estão sob ataque cerrado do Governo e do patronato desde 2011.

A redução drástica do mercado interno

Os medicamentos oferecem um exemplo típico: embora Portugal seja um país exportador de produtos farmacêuticos, é hoje difícil encontrar medicamentos nas farmácias – a indústria prefere exportá-los.

A redução do mercado interno corresponde à redução da retribuição do trabalho, que em 2013 caiu nalguns sectores para níveis próximos do esclavagismo; há casos em que o trabalhador, para ter acesso ao posto de trabalho, tem de pagar uma caução.

Conforme os recursos e indústrias de interesse colectivo e estratégico vão sendo privatizados, o fornecimento de energia, comunicações e outros bens e serviços essenciais torna-se mais caro e de menor qualidade. No final de 2013 muitas localidades passaram o Natal às escuras, porque as avarias da rede eléctrica deixaram de ser prontamente corrigidas, mesmo nos casos em que bastava carregar no botão de um disjuntor na central eléctrica para resolver o problema; as populações da periferia vão-se habituando às falhas de comunicações (telefones, internet, transportes) durante dias a fio.

O saque dos fundos dos trabalhadores

As quotizações dos trabalhadores, depositadas na Segurança Social e nos fundos de pensões, são geridas ou pelo Estado ou pelo patronato. Algumas entidades patronais (caso dos bancos), depois de esbanjarem os fundos de pensões em proveito próprio, «ofereceram» ao Estado a gestão dos fundos falidos – os trabalhadores terão agora de repor o que os bancos roubaram. Todo o discurso sobre a insustentabilidade da segurança social e das pensões, além de assentar em argumentos falsos do ponto de vista científico e contabilístico, visa esconder o saque desses fundos. O pânico criado pela ameaça de exaustão dos fundos da segurança social e das pensões tem ainda outro efeito: empurrar os utentes para os sistemas privados de saúde e reforma – um negócio altamente lucrativo (logo a seguir ao das armas e da droga, segundo declarações dos próprios gestores da indústria de saúde e seguros) que pouca expressão tinha em Portugal.

Em meados de 2013 o ministro das Finanças aumentou a quota do fundo de pensões aplicada em títulos da dívida. Outra parte é aplicada em títulos de empresas. Os trabalhadores vêem uma parte dos seus fundos ser investida em empresas que, depois de recapitalizadas, reduzem os postos de trabalho e substituem trabalhadores com direitos por trabalhadores precários. Em suma: uma parte das quotizações dos trabalhadores serve para recapitalizar empresas que criam desemprego; outra parte serve para subsidiar os desempregados; outra parte serve para subsidiar directamente as empresas, como «incentivo à criação de postos de trabalho» (precário). Ora aí está porque o Governo diz que não sobra dinheiro para o ensino e a saúde.

As indústrias que exigem grande investimento inicial de capital (distribuição de energia e água, infraestruturas das comunicações, construção naval e metalurgia, rodovias, bancos, etc.), algumas delas financiadas e modernizadas à custa do dinheiro dos trabalhadores nos últimos 38 anos, são agora entregues à exploração privada por quantias simbólicas e até com prejuízo imediato (caso dos Estaleiros Navais de Viana).

Alteração da política fiscal

Em 2011-2012 tornou-se menos progressiva a taxação sobre os rendimentos e aumentou a carga fiscal dos trabalhadores, através do IVA e do IRS. O Governo apropriou-se de um a dois meses de salário (ou pensões) de alguns sectores do trabalho. Simultaneamente reduziu a taxação sobre o grande capital, sobretudo os bancos, que no próximo ano fiscal irão poupar centenas de milhões de euros em impostos.

Como fez notar o comissário europeu para os direitos humanos no seu relatório «A Salvaguarda dos Direitos Humanos em Tempos de Crise Económica» [6], os credores internacionais e os governos locais não quiseram acautelar os direitos das populações; as medidas de austeridade já não podem ser vistas como propostas económicas, mas sim como um sistema de esmagamento dos direitos políticos, económicos e culturais das populações.

Rui Viana Pereira, Membro do CADPP – Comité para a Anulação da Dívida Pública Portuguesa.


Notas

[1Memorandosiniciais: «Letter of Intent (FMI)» (en); «Portugal – Memorandum of Economic and Financial Policies» (en) (pt); «Portugal – Technical Memorandum of Understanding (TMU)» (en) (pt); «Letter of Intent (UE)» (en); «Portugal – Memorandum of Understanding on Specific Economic Policy Conditionality» (en) (pt). Aí encontramos expressões como: «Reduzir as pensões acima de 1.500 euros», «reduzir o emprego em 2% ao ano», «reduzir o custo (…) com sistemas de saúde dos trabalhadores em funções públicas», «reduzir custos na área de educação», etc.

[2Mesmo para a área da justiça está prevista uma privatização parcial, que ainda não foi aplicada.

[3O Governo anunciou no Verão de 2013 uma redução na taxa de desemprego, mas os valores apresentados apenas significam que os emigrantes deixam de fazer parte das listas de desempregados.

[4Ver Offxore, «Portugal, campeão europeu do eucalipto», 18-05-2013. Ver Decreto-Lei nº 96/2013. Ver artigo de João Camargo, «A Lei do Eucalipto Livre», 27-11-2013.

[5O just in time substituiu os sistemas clássicos de produção (fordismo, etc.) e consiste no essencial em não armazenar stocks e manter a unidade de produção a funcionar apenas quando haja encomendas. Isto implica a precarização do trabalho e a encomenda apressada de matérias-primas e componentes – daí a importância central dos transportes e dos portos.

[6«Safeguarding human rights in times of economic crisis», Novembro-2013; ver resumo ou pdf completo.

Rui Viana Pereira

revisor, tradutor e sonoplasta; co-autor de Quem Paga o Estado Social em Portugal? e de «E Se Houvesse Pleno Emprego?», in A Segurança Social É Sustentável (Bertrand, Lisboa, 2012 e 2013 respectivamente); co-fundador do CADPP.
Membro do grupo cívico Democracia & Dívida.

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