A Grécia independente nasceu com uma dívida odiosa

14 de Novembro de 2017 por Eric Toussaint


Desde 2010 que a Grécia é o centro das atenções. A crise da dívida, gerada sobretudo pelos bancos privados, não é inédita na história da Grécia independente. Desde 1826 quatro grandes crises da dívida marcaram fortemente a vida dos Gregos. De todas as vezes as potências europeias conluiaram-se para obrigar a Grécia a contrair novas dívidas a fim de reembolsar as antigas. Este conluio das potências ditou à Grécia políticas correspondentes aos seus interesses e aos de uns quantos grandes bancos privados, dos quais eram cúmplices. De todas as vezes estas políticas visaram a captura dos recursos fiscais, para pagar a dívida, e implicaram a redução das despesas sociais e dos investimentos públicos. Sob formas variadas, a Grécia e o povo grego viram negado o exercício da sua soberania. Este facto manteve a Grécia num estatuto de país subordinado e periférico. As classes dominantes locais foram cúmplices.

Esta série de artigos analisa 4 grandes crises da dívida grega, situando-os no contexto económico e político internacional, sistematicamente ausente na narração dominante e muito raramente presente nas análises críticas.



Para financiar a guerra de independência iniciada em 1821 contra o Império Otomano e sustentar o novo Estado, o governo provisório da República Helénica contraiu dois empréstimos em Londres: um em 1824, outro em 1825. Os banqueiros de Londres, que nessa época era a principal praça financeira mundial, apressaram-se a organizar o empréstimo, tendo na mira gordos lucros.

É preciso ter em conta o contexto internacional: o sistema capitalista estava em plena fase especulativa, o que, na história do capitalismo, constitui geralmente a fase final de um período de crescimento económico forte e precede uma reviravolta que acaba por desembocar, via bolhas especulativas, num período de depressão ou de crescimento lento [1]. Os banqueiros londrinos, seguidos pelos de Paris, Bruxelas e outras praças financeiras europeias, buscavam freneticamente colocação para as enormes quantidades de liquidez de que dispunham.

Entre 1822 e 1825 os banqueiros londrinos «recolheram» 20 milhões de libras esterlinas por conta dos novos líderes latino-americanos (Simón Bolívar, Antonio Sucre, José San Martín e outros) que levavam a cabo a luta de independência contra a coroa espanhola [2]. Os dois empréstimos gregos de 1824-1825 atingiram a soma de 2,8 milhões de libras esterlinas, ou seja, 120 % do PIB PIB
Produto interno bruto
O produto interno bruto é um agregado económico que mede a produção total num determinado território, calculado pela soma dos valores acrescentados. Esta fórmula de medida é notoriamente incompleta; não leva em conta, por exemplo, todas as actividades que não são objecto de trocas mercantis. O PIB contabiliza tanto a produção de bens como a de serviços. Chama-se crescimento económico à variação do PIB entre dois períodos.
do país, nessa época.

Tanto no caso grego como no caso das novas autoridades revolucionárias e independentistas latino-americanas, os novos Estados ainda mal tinham nascido e ainda não tinham sido reconhecidos internacionalmente. No que diz respeito à América Latina, a Espanha opunha-se a que os Estados europeus apoiassem financeiramente os novos Estados. Para mais, nessa época era razoável considerar que os combates pela independência não tinham terminado definitivamente. Por fim, os empréstimos foram concedidos às repúblicas, mas até então só as monarquias eram admitidas no clube dos devedores soberanos. Isto dá-nos uma ideia da sofreguidão com que os banqueiros se lançavam no risco financeiro. Emprestar a um governo provisório do Estado grego, em vias de nascer e em situação de guerra, o equivalente a 120 % de tudo o que o país produzia num ano prova claramente a vontade de encontrar, fosse qual fosse o risco, um negócio chorudo. A par dos banqueiros, os grandes industriais e comerciantes apoiavam esta ânsia, uma vez que grande parte dos empréstimos seria utilizada pelos devedores para comprar ao Reino Unido armamento, fardas, equipamentos de todo o tipo, etc.


Como se desenrolavam os empréstimos?

Empréstimo de 1825 ao Governo grego, com um valor nominal de £ 100 por título; assinado por J. S. Ricard­o como contraente

Os banqueiros de Londres emitiam os títulos por conta dos Estados mutuários e vendiam-nos na Bolsa da City. É importante notar que a maioria das vezes os títulos eram vendidos abaixo do seu valor facial (ver ilustração: um título de 1825, no valor de 100 libras). Cada título emitido por conta da Grécia com o valor facial de 100 libras foi vendido por 60 libras [3]. Assim, a Grécia obteve menos de 60 libras, descontada a enorme comissão cobrada pela banca emissora, contra o reconhecimento de uma dívida de 100 libras. Assim se compreende que um empréstimo no valor de 2,8 milhões de libras se tenha traduzido na entrega de apenas 1,3 milhões de libras à Grécia. Dois outros elementos são igualmente importantes para compreender os acontecimentos: as taxas de juro Juro Quantia paga em retribuição de um investimento ou um empréstimo. O juro é calculado em função do montante do capital investido ou emprestado, da duração da operação e de uma taxa acordada. sobre os títulos gregos eram de 5 %, calculados sobre o valor facial; ou seja, as autoridades gregas tinham de entregar todos os anos 5 libras ao detentor de um título com o valor facial de 100 libras, o que constitui um excelente negócio para ele e corresponde a um rendimento real de 8,33 % (e não de 5 %). Em contrapartida, o custo para o Estado devedor é exorbitante. No caso grego, as autoridades receberam 1,3 milhões de libras, mas todos os anos tinham de pagar juros sobre 2,8 milhões. Era insustentável.

Em 1826 o governo provisório suspendeu o pagamento da dívida. Geralmente os estudos consagrados a este período histórico contentam-se em explicar a suspensão com o custo elevado das operações militares e o desenrolar do conflito.

Ora as causas do incumprimento não se situam apenas na Grécia: os factores internacionais, independentes da vontade das autoridades gregas, tiveram um papel muito importante. De facto, em inícios de 1825, rebentou na Bolsa de Londres a primeira grande crise mundial do capitalismo, resultante da bolha especulativa Bolha especulativa A bolha económica, bolha financeira ou bolha especulativa forma-se quando o nível dos preços de troca num mercado (mercado de activos financeiros, mercado de câmbios, mercado imobiliário, mercado de matérias-primas, etc.) se estabelece muito acima do valor financeiro intrínseco (ou fundamental) dos bens ou activos trocados. Neste tipo de situação, os preços afastam-se da valorização económica habitual, com base numa crença manifestada pelos compradores. criada nos anos precedentes. Esta crise provocou uma queda da actividade económica, numerosas falências bancárias e uma aversão ao risco. A partir de Dezembro de 1825, os banqueiros britânicos, logo seguidos pelos outros banqueiros europeus, deixaram de emprestar ao estrangeiro e ao mercado interno. Os novos Estados, que esperavam financiar o reembolso das suas dívidas procedendo a novos empréstimos obtidos em Londres ou Paris, deixaram de encontrar banqueiros dispostos a emprestar-lhes dinheiro. A crise de 1825-1826 afectou todas as praças financeiras da Europa: Londres, Paris, Francoforte, Berlim, Viena, Bruzelas, Amesterdão, Milão, Bolonha, Roma, Dublin, São Petersburgo, … A economia entrou em depressão, centenas de bancos, empresas comerciais e fábricas foram à falência. O comércio internacional afundou-se. Segundo a maioria dos economistas, a crise de 1825-1826 constituiu a primeira grande crise cíclica do capitalismo [4].

Quando a crise rebentou em Londres, em Dezembro de 1825, a Grécia e os novos Estados latino-americanos ainda estavam a reembolsar as suas dívidas. Em contrapartida, ao longo de 1826 vários países tiveram de suspender o reembolso (Grécia, Peru e a Grande Colômbia, que incluía a Colômbia, Venezuela, Equador), pois os banqueiros recusavam-lhes novos empréstimos e a deterioração geral da situação económica e do comércio internacional diminuía os rendimentos dos Estados. Em 1828 todos os países latino-americanos independentes, do México à Argentina, estavam em suspensão de pagamento.
Em 1829 o governo provisório helénico propôs aos credores de Londres a retoma dos pagamentos, na condição de ser feita uma redução da dívida. Os credores recusaram e exigiram 100 % do valor nominal. Não foi possível chegar a acordo.

A partir de 1830, três grandes potências europeias (Reino Unido, França e Rússia [5]) constituíram a primeira Troika Troika A Troika é uma expressão de apodo popular que designa a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional. da história moderna grega e decidiram instaurar na Grécia uma monarquia; o trono foi entregue a um príncipe alemão. Abrem-se então negociações para saber que príncipe será escolhido pelas grandes potências: Leopoldo (da Saxónia-Coburgo-Gota), Otto (príncipe da Baviera) ou outro?

Finalmente optaram por colocar Leopoldo no trono da Bélgica, que se tornou independente em 1830; Otto von Wittelsbach foi escolhido para reinar na Grécia. Ao mesmo tempo, as três potências concordaram em ajudar os banqueiros britânicos e os diversos banqueiros europeus que tinham comprado títulos da dívida grega. Tratava-se também de exercer o máximo de pressão sobre o novo Estado grego, para levá-lo a assumir integralmente o reembolso dos empréstimos de 1824 e 1825.


Como agiu a Troika (Reino Unido, França, Rússia)?

A Troika dirigiu-se aos bancos franceses para que eles emitissem por conta da monarquia grega um empréstimo de 60 milhões de francos franceses (cerca de 2,4 milhões de libras esterlinas). O Reino Unido, a França e a Rússia ofereceram garantias aos bancos, assegurando-os de que, em caso de incumprimento do pagamento por parte da Grécia, assumiriam eles mesmos o reembolso [6]. A Troika acrescentou que tudo faria para que o reembolso dos empréstimos de 1824 e 1825 fosse igualmente efectuado (ver adiante). O acordo das três potências entrou em vigor em 1830 mas, dadas as dificuldades de execução, apenas foi posto em prática em 1833. O empréstimo de 60 milhões de francos foi concedido em 1833 e entregue em três tranches.

A Grécia redesenhada em 1832

O destino das somas das duas primeiras tranches é particularmente esclarecedor. Dum total de 44,5 milhões de dracmas (o empréstimo foi emitido em francos franceses e entregue em dracmas; 1 franco valia cerca de 1,2 dracmas), apenas 9 milhões chegaram às caixas do Estado, ou seja 20 % do total emprestado. O banco Rothschild de França cobrou mais de 10 % de comissão (5 milhões), os compradores de títulos (entre os quais o banco Rothschild) receberam 7,6 milhões a título de pagamento antecipado dos juros para o período 1833-1835 (mais de 15 % do total emprestado), 12,5 milhões (um pouco menos de 30 % do empréstimo) foram entregues ao Estado otomano como indemnização pela independência; a França, o Reino Unido e a Rússia levantaram 2 milhões por serem credores da Grécia; mais de 15 % do montante, ou seja 7,4 milhões, foram entregues ao rei Otto para cobrir as remunerações e os custos de deslocação das suas instalações, dos dignitários bávaros que asseguravam a regência [7] e de 3500 mercenários recrutados na Baviera, além de 1 milhão destinado à compra de armas.

O primeiro empréstimo odioso de 1833 feito à Grécia pela Troika (França, Reino Unido e Rússia – as chamadas Grandes Potências)

Repartição dos montantes
O que se segue é um resumo da utilização dos fundos de empréstimo de 1833, garantido pelas grandes potências (tranches A e B, num total de 44,5 milhões de dracmas).
Honorários pagos ao banco Rothschild: 5 milhões
Juros calculados sobre o empréstimo de 1833 a 1835 (pagamento antecipado): 7,6 milhões
Indemnizações pagas ao Império Otomano: 12,5 milhões
Reembolso da dívida às grandes potências – Fr, RU, Rússia – (pagamento antecipado): 2 milhões
Despesas de deslocação para o rei Otto, seu pessoal e sua escolta: 2,1 milhões
Salários e outras despesas para os membros da regência de Otto: 2 milhões
Recrutamento e custos de deslocação para os mercenários bávaros: 3,3 milhões
Compra de material militar: 1 milhao
Subtotal: 35,5 milhões
Resto transferido para o Tesouro público grego: 9 milhões
Ou seja 20 % dos 44,5 milhões imputados à Grécia
Fonte: segundo Reinhart e Trebesch, 2015, The pitfalls of external dependence: Greece, 1829-2015, p. 22; Kofas, Jon, 1981, Financial Relations of Greece and the Great Powers 1832-1862, Boulder: East European Monographs, p. 25.
Protocole de Londres­ 1832 - London Protocol, 1832

As três potências assinaram a 7 de Maio de 1832 com o rei da Baviera, pai de Otto, futuro rei da Grécia, um acordo que obrigava o novo Estado «independente» a dar prioridade absoluta ao reembolso da dívida (ver o artigo XII da ilustração acima). Como prova, sem a menor ambiguidade, a reprodução de uma parte da convenção de 7 de Maio de 1832, este documento é assinado pelo representante da casa real britânica, Lord Palmerston, pelo representante da monarquia francesa, Talleyrant, pelo representante do czar de todas as Rússias e pelo representante do rei da Baviera, que age em nome da Grécia quando Otto e o seu séquito ainda não saíram de Munique! Otto só chega à Grécia em Janeiro de 1833. Graças a este documento, dispomos de uma prova que evidencia o carácter odioso e ilegal da dívida reclamada ao povo grego a partir de 1833.

A Troika exercia um controlo muito estrito sobre o orçamento de Estado e sobre a colecta dos rendimentos. Exigia regularmente que os impostos e as taxas fossem aumentados e que as despesas fossem comprimidas. Note-se que a 5ª Assembleia Nacional, que reuniu em Dezembro de 1831, aprovou uma «Constituição da Grécia» cujo artigo 246 indicava que o soberano não tem o direito de decidir sozinho em matéria de impostos, taxas, despesas públicas ou sobre a colecta dos rendimentos, sem respeitar as leis ou resoluções aprovadas por um órgão legislativo [8]. A monarquia e a Troika calcaram aos pés esta Constituição, que nunca reconheceram.

Em 1838 e em 1843, a monarquia suspendeu o pagamento da dívida, por não dispor dos meios de tesouraria necessários para cumprir o pagamento de juros extremamente elevados [9]. Aquando do incumprimento de 1843, com os juros vencidos a representarem 43 % dos rendimentos do Estado, a Troika interveio e exerceu uma pressão extrema sobre a monarquia, para que ela aplicasse um programa de austeridade radical, ditado pelos embaixadores das três potências (ver quadro acima).

Os sacrifícios impostos à população grega para reembolso da dívida foram de tal ordem, que por vezes ela rebelou-se. A revolta foi particularmente forte em 1843, contra novo aumento das taxas e pela aprovação de um regime constitucional. Note-se de passagem que o Reino Unido chegou ao ponto de ameaçar o rei Otto de fazer uma incursão militar se ele não decretasse um aumento dos impostos para cumprir as suas obrigações Obrigações Parte de um empréstimo emitido por uma sociedade ou uma coletividade pública. O detentor da obrigação, ou obrigacionista, tem direito a um juro* e ao reembolso do montante subscrito. Obrigações também podem serem negociadas no mercado secundário. em relação à Troika. O Reino Unido e a França ocuparam militarmente o porto Pireu durante 10 anos, a partir de Maio de 1854, meio este muito eficaz para deitar a mão aos rendimentos da alfândega portuária.

O memorando imposto pela Troika em 1843



Segundo Takis Katsimardos, «O antigo memorando na Grécia de 1843»

Em Junho de 1843, a Grécia declarou-se em incumprimento de pagamento, por ser incapaz de pagar a tranche anual dos juros relativos ao empréstimo de 1833.

Face às ameaças dos credores, o governo empenhou-se em aplicar um programa de austeridade brutal, a fim de reatar o pagamento da dívida.
A Grécia entrou numa fase de «austeridade» dura. As fontes da época relatam cenas de miséria em massa nas cidades e nos campos. Na capital, os cidadãos, já sem recursos, deixaram de pagar os seus impostos, ao ponto deixar de haver candidatos a recolectores de impostos.

Tornou-se evidente que era impossível recolher dinheiro para pagar os juros da dívida, num país onde a maioria da população estava extremamente empobrecida. No entanto, os credores continuavam a exigir o pagamento da dívida

Foi assim que se organizou em Londres uma conferência para a dívida grega e que os representantes da Troika elaboraram uma declaração que condenava a Grécia (Junho de 1843). Segundo essa declaração, a Grécia não tinha respeitado a suas obrigações. Os três embaixadores deram ao governo 15 dias para fazer cortes ainda maiores nas despesas públicas, num montante de cerca de 4 milhões de dracmas. Os cortes previstos inicialmente pelo governo eram somente de 1 milhão.

Após meses de discussões, os embaixadores e o governo grego redigiram um protocolo-memorando. O acordo foi aprovado a 2 de Setembro e provocou uma tempestade de protestos. No dia seguinte estalou a Revolução de 3 de Setembro. Estes acontecimentos levaram, entre outras coisas, a uma nova Constituição que ainda ficava longe da democracia [10].

As principais medidas adoptadas pelo governo grego em 1843 em virtude da aplicação do «Memorando» dessa época incluíam [11]:

  1. O despedimento de um terço dos funcionários e reduções salariais de 15 % a 20 % para todos os restantes funcionários.
  2. A suspensão do pagamento das pensões de reforma.
  3. Uma redução considerável das despesas militares.
  4. Foi imposta a todos os produtores o pagamento de um adiantamento dos impostos, a dízima, correspondente a um décimo do valor de toda a produção.
  5. As taxas alfandegárias e o imposto de selo foram aumentados.
  6. Todos os funcionários da imprensa nacional, guardas florestais, assim como parte dos professores universitários (excepto 26!) foram despedidos.
  7. Todos os serviços de saúde do Estado foram suprimidos.
  8. Todos os engenheiros civis do Estado foram despedidos e todas as obras públicas interrompidas.
  9. Todas as missões diplomáticas no estrangeiro foram suprimidas.
  10. Todas as construções ilegais, assim como as apropriações ilegais de «terras nacionais», foram legalizadas mediante o pagamento de uma multa.
  11. Todos os assuntos fiscais em suspenso (no valor de cerca de 5 milhões de dracmas) foram regularizados mediante o pagamento de custas módicas.



Além disso, em virtude do «Memorando», os embaixadores da Troika dessa época passaram a participar nas reuniões do conselho de ministros sempre que este discutisse medidas, e recebiam todos os meses um relatório pormenorizado sobre a sua aplicação e os montantes colectados. Isto não vos faz lembrar qualquer coisa?

Finalmente, Otto foi deposto em 1862, no seguimento de uma série de levantamentos populares nos quatro cantos do seu reino, e teve de fugir do país. Uma nova Constituição foi aprovada, com poucos progressos na limitação dos poderes da monarquia. A Troika procurou um substituto. Londres propôs o segundo filho da rainha Vitória, mas deparou-se com a hostilidade da Rússia e da França, que pretendiam evitar um reforço da influência britânica. Por fim as três potências chegaram a acordo e escolheram um príncipe dinamarquês chamado Guillaume de Schleswig-Holstein-Sonderburg-Glücksburg.

A partir de 1843 a Troika assumiu, conforme tinha prometido aos banqueiros, o reembolso da dívida da Grécia quando esta não conseguia reunir rendimentos suficientes para reembolsar a totalidade dos juros e do capital. O reembolso efectuado pela Troika termina em 1871 [12] e os credores deram-se por satisfeitos: receberam os juros e recuperaram o capital que tinham emprestado. Ficava saldado o empréstimo de 60 milhões de francos.

Mas a dívida em relação à Troika subsistia, pois o Reino Unido, a França e a Rússia tinham assumido uma parte dos pagamentos. Assim, a Grécia teve de continuar a destinar uma parte dos seus rendimentos ao reembolso das três potências da Troika. A Grécia saldou o reembolso à França e ao Reino Unido pelo empréstimo de 1833 nos anos 1930, ou seja um século mais tarde (quanto à Rússia, deixou de ser reembolsada após a Revolução de 1917).


Afinal que aconteceu com o reembolso dos empréstimos de 1824 e de 1825 ?

Recordemos que o reembolso tinha sido suspenso a partir de 1826 e que os credores tinham recusado em 1829 aceitar um acordo com o governo provisório, o qual viria a ser derrubado pela Troika e substituído pela monarquia. O empréstimo de 60 milhões de francos (que representava 124 % do PIB da Grécia em 1833) não substituiu os empréstimos de 1824-1825 (que representavam 120 % do PIB de 1833). Uma vez reembolsado o empréstimo de 60 milhões, a Troika teimou em que fossem satisfeitas as exigências dos credores de 1824-1825. Por isso em 1878 a Grécia, sob pressão das grandes potências, chegou a acordo com os banqueiros que detinham os títulos de 1824-1825. Os antigos títulos foram trocados por outros novos, com o valor de 1,2 milhões de libras esterlinas. Foi um excelente negócio para os detentores de títulos e uma nova injustiça para o povo grego. De facto, o montante efectivamente transferido para a Grécia em 1824-1825 tinha sido apenas de 1,3 milhões de libras. Ao trocar os velhos títulos pelos novos no valor de 1,2 milhões, os credores podiam dar-se por satisfeitos, tanto mais quanto uma parte deles tinha comprado os títulos antigos por meia tuta. Os banqueiros continuaram a especular constantemente sobre os títulos gregos, vendendo-os quando começavam a baixar e recomprando-os quando voltavam a subir.

É notório que a maior parte dos estudos e artigos que analisam superficialmente os problemas da dívida grega afirmam que as despesas públicas eram demasiado elevadas e que os Gregos não pagavam impostos ou pagavam muito pouco. Ora uma análise rigorosa da evolução do orçamento de Estado mostra que entre 1837 e 1877 o orçamento apresentava um excedente primário – excepto em dois casos –, ou seja, as receitas eram superiores às despesas, excluindo o reembolso da dívida. Num período de 41 anos (1837-1877), as receitas (provenientes essencialmente dos impostos) foram superiores às despesas durante 39 anos, se excluirmos o reembolso da dívida. O défice orçamental foi provocado pelo reembolso da dívida, que teve um peso insuportável [13]. É claro que não se pretende com isto dizer que a monarquia fez uma boa gestão do orçamento de Estado no interesse da população. A existência de um excedente orçamental é uma exigência típica dos credores, em todas as épocas. O excedente primário garante aos credores a existência duma margem que poderá ser utilizada para reembolsar a dívida. O peso do reembolso da dívida e a tutela exercida pelas grandes potências europeias constituem os factores determinantes da incapacidade da Grécia para realizar avanços económicos.


Conclusão desta parte

Os empréstimos de 1824-1825 deveriam ter sido considerados nulos, já que os termos do contrato eram leoninos e o comportamento dos banqueiros foi claramente desonesto.

O empréstimo de 1833 encaixa claramente na doutrina da dívida odiosa Dívida odiosa Segundo a doutrina, para que uma dívida seja considerada odiosa, e portanto nula, tem de preencher as seguintes condições:

1. Foi contraída contra os interesses da Nação ou contra os interesses do povo ou contra os interesses do Estado.
2. Os credores não conseguem demonstrar que não podiam saber que a dívida foi contraída contra os interesses da Nação.

É preciso sublinhar que, segundo a doutrina da dívida odiosa, a natureza do regime ou do governo que contraiu a dívida não é particularmente importante, pois o que conta é a utilização dada à dívida. Se um governo democrático se endividar contra o interesse da população, a dívida pode ser qualificada odiosa, desde que preencha igualmente a segunda condição. Por consequência, e contrariamente a uma interpretação errada desta doutrina, a dívida odiosa não se aplica apenas aos regimes ditatoriais. (Ver Éric Toussaint, «A Dívida Odiosa Segundo Alexandre Sack e Segundo o CADTM»)

O pai da doutrina da dívida odiosa, Alexander Nahum Sack, diz claramente que as dívidas odiosas podem ser atribuídas a um governo regular. Sack considera que uma dívida contraída por um governo regular pode ser considerada incontestavelmente odiosa, desde que preencha os dois critérios acima apontados.

E acrescenta: «Se estes dois pontos forem confirmados, cabe aos credores o ónus de provar que os fundos envolvidos nos referidos empréstimos foram utilizados não para fins odiosos, prejudiciais à população do Estado, no seu todo ou em parte, mas sim para as necessidades gerais ou especiais desse Estado, e não apresentam carácter odioso».
Sack definiu um governo regular da seguinte forma:
«Deve ser considerado regular o poder supremo que existe efectivamente nos limites de um dado território. É indiferente ao problema em foco que esse poder seja monárquico (absoluto ou limitado) ou republicano; que proceda da “graça de Deus” ou da “vontade do povo”; que exprima a “vontade do povo” ou não, do povo inteiro ou apenas de uma parte deste; que tenha sido estabelecido legalmente ou não.»

Portanto não restam dúvidas sobre a posição de Sack, todos os governos regulares, sejam eles despóticos ou democráticos, em todas as suas variantes, são susceptíveis de contraírem dívidas odiosas.
 [14]. A dívida tinha sido contraída por um regime despótico contra os interesses do povo. Esse regime despótico era um instrumento ao serviço das grandes potências que tentavam cumprir os seus interesses geoestratégicos à custa do povo grego, ao mesmo tempo que procuravam satisfazer as exigências dos banqueiros internacionais.

A recusa dos credores e das grandes potências em anular a dívida, no todo ou em parte, gerou efeitos de longa duração; a Grécia encontrava-se num estado de sujeição e impedida de se desenvolver economicamente.

A Grécia nasceu com uma dívida odiosa que subjugou o seu povo.

Algumas chaves para compreender o contexto histórico do nascimento de um Estado grego independente no século XIX. Economia e sociedade.



Constantin Tsoucalas, exilado em Paris durante a ditadura dos coronéis, escreveu em 1969: «Desde há quase um século e meio, o estrangeiro, por intervenção directa ou dando o seu apoio, foi quase sempre, em maior ou menor grau, responsável pelo início ou pelo desfecho das crises que abalaram a Grécia. As forças sociais e políticas do país nunca estiveram à altura de se desenvolverem ou de funcionarem de maneira autónoma, o povo grego nunca pôde ser senhor do seu destino, em particular quando mais tinha a ganhar ou a perder. De facto, quaisquer que fossem as posições estratégicas ou diplomáticas, a Grécia era inevitavelmente objecto das atenções internacionais, em virtude da sua situação geográfica. Enquanto peão da diplomacia ocidental dessa época em que o Império Otomano se desintegrava, enquanto base naval indispensável para o controlo dos Dardanelos, enquanto bastião do «mundo livre» na sua luta contra a expansão do comunismo ou enquanto base segura (uma das raras) que permitia o controlo estratégico de um Médio Oriente perpetuamente instável, a Grécia sempre pagou os custos dos interesses internacionais que suscitava» [15].

Sem dúvida o julgamento de Constantin Tsoucalas tem de ser temperado, já que o povo grego conseguiu vencer o ocupante nazi graças a uma luta heróica. Mas os acontecimentos trágicos de 2015, do ponto de vista político, confirmam este texto escrito há quase meio século. As potências europeias voltaram a intervir na Grécia por razões internacionais: impedir o sucesso de uma experiência de ruptura com a austeridade, a fim de evitar o contágio a outros países europeus, entre os quais a Espanha e Portugal; impedir que se pusesse em causa a continuação da integração europeia dominada pelo grande capital e pelas potências europeias dominantes. As instituições europeias e o FMI fizeram abortar uma experiência que podia ter modificado o curso da história.
Prossigamos com a descrição de Constantin Tsoucalas, pois ela dá-nos as chaves para a compreensão das condições nas quais nasceu o primeiro Estado grego independente, há dois séculos: «O carácter histórico e cultural da nação grega não é fácil de definir: é balcânica mas não eslava, próximo-oriental mas não muçulmana, europeia mas não ocidental. Haverá quem pretenda demonstrar, da época clássica ao império bizantino e à Grécia moderna, a existência de uma certa continuidade racial e cultural. Mas isto não é nada certo. A única coisa que podemos dar como certa, é que a estrutura social e económica da Grécia moderna tem as suas origens na longa dominação otomana. (…)

Com a sua concepção rígida das divisões sociais, a ideologia estratocráticai [16] otomana desprezava as actividades mercantis; esse desprezo permitiu aos Gregos e, em menor grau, a outros grupos minoritários como os Judeus e os Arménios, assenhorearem-se praticamente do monopólio dos negócios. A comunidade grega de Constantinopla, feita de restos da aristocracia bizantina e dos grupos nascentes de banqueiros e de negociantes conhecidos pelo nome de Fanariotas, rapidamente obteve o controlo da maior parte das transacções económicas. No entanto o papel dos Fanariotas não se limitava ao domínio financeiro. Foram muitas vezes chamados a desempenhar um papel político e administrativo considerável no sistema otomano. (…)

Os Gregos também dominavam as actividades comerciais e marítimas que se desenvolveram rapidamente na segunda metade do século XVIII e trouxeram um espírito inovador à vida letárgica dos Balcãs. Esta burguesia grega nascente, que, sobretudo após 1789, introduziu nos Balcãs as ideias novas e revolucionárias que fermentavam na Europa, adquiriu progressivamente um prestígio incomparável tanto no seio dos Gregos como no dos Eslavos. A ideia de um movimento de independência dirigido para uma federação pan-balcânica foi ganhando terreno, sobretudo por instigação da Rússia, ao mesmo tempo que o declínio generalizado do Império Otomano suscitava vivamente em todas as camadas sociais da península dos Balcãs a esperança de que a independência estivesse próxima.

O ponto culminante deste processo foi a revolução grega de 1821. Mas ainda que os Gregos tenham alcançado sucessos consideráveis nos primeiros anos de luta, o exército turco-egípcio, depois de ter sido reorganizado, conseguiu ganhar batalhas decisivas que, no tabuleiro político, anularam as vantagens obtidas pelos Gregos. Em 1827 a revolução – que apenas afectou as ilhas do mar Egeu, o Peloponeso e a parte sul da península (Sterea Hellas) – agoniza.
Foi então que as potências estrangeiras intervieram de forma decisiva. (…) Excepcionalmente, as pressões populares iam no mesmo sentido dos interesses diplomáticos, de modo que as grandes potências decidiram tomar conta da situação. A Rússia, a França e a Grã-Bretanha, ao destruírem a frota turco-egípcia em Pilos (1827), ofereceram a independência à Grécia.

Para aquilatar a importância do papel desempenhado pelas grandes potências a partir desse momento, convém examinar sumariamente a política que seguiam. A Rússia baseava a sua no desejo de ver ser criado sob a sua protecção um grande Estado greco-eslavo que lhe servisse de praça-forte no Mediterrâneo, após a derrocada do Império Otomano. A população dos Balcãs era na sua maioria eslava e, no plano religioso, era ortodoxa a 90 %; em matéria de propaganda, estes eram os dois melhores trunfos da Rússia. A política britânica estava, pelo contrário, essencialmente orientada para a manutenção do Império Otomano, a fim de contrariar o expansionismo da Rússia. Entretanto, na medida em que o desenvolvimento das forças centrífugas do Império prenunciava a sua desintegração inevitável a longo prazo, a Grã-Bretanha era favorável à criação de um Estado grego independente, que, no entanto, dependesse política e economicamente da Grã-Bretanha, e portanto iria opor-se abertamente aos outros grupos étnicos dos Balcãs. O protocolo de Londres (1830), no qual a independência da Grécia foi finalmente reconhecida, foi um triunfo da política britânica. A instauração de uma monarquia absoluta visava substituir o primeiro governador grego, Ioannis Kapodistrias [17], antigo ministro do czar e naturalmente inclinado a partilhar os pontos de vista da Rússia. E como as suas fronteiras delimitavam um espaço muito restrito, com uma população relativamente homogénea, o novo Estado independente dependia em absoluto da ajuda económica e diplomática do estrangeiro (ou seja, da Grã-Bretanha), donde resultariam rivalidades entre Gregos e Eslavos. Foi assim que, durante mais de um século, a península dos Balcãs se tornou a região mais agitada da Europa e teatro de lutas incessantes entre potências intervencionistas. A ideia de uma federação que unisse as populações cristãs das províncias europeias do Império Otomano, populações que, em boa medida, viviam há quatro séculos em bom entendimento, foi abandonada. A Grã-Bretanha, a Rússia, a França, a Áustria e mais tarde a Alemanha disputaram entre si o futuro dessas províncias; quem pagou, e continua a pagar, foram as populações da região.»


Estruturas sociais


«Depois da independência, as estruturas sociais e económicas da Grécia não sofreram qualquer modificação essencial. O sistema semifeudal que existia sob o regime otomano desapareceu; mas a terra na posse dos senhores feudais turcos, ou seja metade das terras cultivadas do país, passou em grande parte para as mãos dos chefes e nobres locais. Os chefes dos clãs tinham desempenhado um papel importante no período da dominação otomana. Tinham-lhes sido confiados poderes administrativos consideráveis, em particular nas vilas com alguma autonomia. Depois de terem tido uma atitude ambígua nos primeiros meses da guerra de independência, juntaram-se ao movimento revolucionário e fizeram parte activa. Mas entraram rapidamente em conflito com os elementos populares, donde resultaram por vezes lutas violentas. Quando a independência foi proclamada, o desfecho da rivalidade entre os chefes de clã locais e as forças populares ainda era incerto. Perante as pressões exercidas pelos chefes locais, Ioannis Kapodistrias hesitou em distribuir a terra aos camponeses pobres. Quando Kapodistrias foi assassinado por membros de um dos clãs mais poderosos e quando o rei Otto Wittelsbach, segundo filho do rei Ludwig I, da Baviera, subiu ao trono, a antiga estrutura social foi preservada no seu conjunto. É verdade que os notáveis não conseguiram tomar o lugar dos senhores turcos. A produção agrícola assentou cada vez mais na base da pequena propriedade privada. Mas os notáveis locais que ocupavam por vezes terras imensas e mantinham a maioria dos camponeses numa dependência económica e, por consequência, sob tutela política; foi preciso quase um século para fazer as reformas necessárias e resolver o problema agrário de maneira radical.»


A Grécia em 1832 era 95 % rural


«Era assim a Grécia de 1832: um pequeno país, totalmente devastado por uma guerra terrível que durou quase 10 anos; 95 % da população era camponesa, com uma estrutura arcaica e semifeudal. O novo Estado nem sequer era o centro do helenismo. Nenhuma cidade importante se situava dentro das suas fronteiras. Os seus centros culturais, religiosos e económicos situavam-se todos no exterior. Num total de 3 milhões de gregos, não chegavam a 700 000 os que vivam no Estado grego. Quando Atenas se tornou a segunda capital do país (depois de Náuplia), era uma vila miserável cuja população não totalizava 5000 habitantes e que dificilmente poderia ser comparada a Constantinopla, símbolo do despertar nacional e religioso, sede do Patriarcado, centro dos Fanariotas e da burguesia grega, rico em escolas e editores gregos, com uma universidade prestigiada, a “Grande Escola da Nação”, e com uma população de mais de 200 000 gregos.»


A «Grande Ideia», nacionalismo descontrolado e intransigente que levou ao chauvinismo


«A “Grande Ideia”, assim era chamada, foi o grande slogan ideológico e político ao longo de todo o século XIX. Esta orientação teve enormes repercussões na política interna e na política externa da Grécia. A solução de todos os problemas internos foi geralmente escamoteada, graças a uma hábil demagogia que exortava à unidade nacional, a fim de realizar esse sonho. Um sonho ao qual era feito constante apelo, e com sucesso, com o fito de desviar as atenções gerais do facto de os grupos no poder serem ou incapazes ou pouco interessados em tomar as medidas necessárias, numa situação interna que deixava sempre a desejar. É verdade que a glorificação dos valores “helénicos”, que é o pendor da “Grande Ideia”, fez muito pelo desenvolvimento da unidade e da consciência nacionais. Mas o poder mistificador das noções de “Grécia Eterna” e de “unidade cultural do povo grego” acarretou graves distorções ideológicas que continuam por corrigir. De facto, a orientação mística para a Antiguidade Clássica não constituiu apenas um obstáculo de grande vulto a uma política nacional realista e progressista; impôs além disso uma língua “pura” que, ao reintroduzir elementos gramaticais do grego antigo, se distanciou completamente da língua falada e se tornou, em certa medida, incompreensível para o povo. A contradição entre a língua oficial e a língua falada dominou a segunda metade do século, tornando-se o maior problema cultural. O obscurantismo em matéria de educação – que ainda hoje persiste – deve-se em grande parte ao facto de as forças políticas conservadoras terem conseguido identificar uma “pureza” da língua, símbolo da eternidade da nação, mantendo valores retrógrados e mistificadores no domínio da educação e da cultura.

No plano internacional, a “Grande Ideia” teve repercussões ainda mais graves. O nacionalismo descontrolado e intransigente conduziu ao chauvinismo: o país entrou em conflito com os seus vizinhos balcânicos, cujas motivações eram análogas, e ainda hoje o conflito paira sobre os Balcãs. O antagonismo imperialista das grandes potências – sobretudo o que opunha a Grã-Bretanha à Rússia – contribuiu grandemente para envenenar o problema. Ao longo de todo o século XIX assistimos a uma série de explosões que as grandes potências desencadearam ou reprimiram, não hesitando para isso em recorrer directamente à intervenção militar. Quando a Rússia, ao estalar a Guerra da Crimeia (1853), incentivou a Grécia a apoiar os movimentos revolucionários na Tessália e na Macedónia, a réplica franco-inglesa não se fez esperar. As tropas francesas desembarcaram no porto Pireu e a Grécia foi praticamente ocupada durante três anos (1854-1857).»


O sistema político


«Durante todo esse tempo a evolução das estruturas socioeconómicas do país foi extremamente lenta. A monarquia absoluta do rei Otto, com a sua numerosa corte bávara, caracterizava-se essencialmente pelo mais completo desprezo pelas verdadeiras necessidades e aspirações dos Gregos. O povo, que vivia na maior miséria, e as camadas dirigentes que se tinham amanhado durante e após a revolução (proprietários rurais, notáveis e chefes militares) estavam profundamente descontentes. A administração bávara, completamente alheia às forças autóctones, instalou um despotismo descarado. Este estado de coisas só levemente foi modificado pela revolução de 1843, que levou à promulgação da primeira Constituição grega (1844). As restrições contra o poder absoluto do monarca eram fictícias e os três grandes partidos, que representavam abertamente os interesses dos “protectores” estrangeiros (e que eram chamados respectivamente – o que é revelador – o partido inglês, o partido francês e o partido russo) manobravam com o objectivo não dissimulado de obter os favores do rei.»


A partir de 1860, ascensão duma burguesia


A partir de 1860, «registou-se um certo progresso, com o nascimento de uma nova geração política e os primeiros sinais de desenvolvimento capitalista. É certo que a actividade industrial continuava muito limitada, mas o crescimento rápido da marinha mercante e o desenvolvimento espectacular do comércio favoreceram a criação e a ascensão de uma burguesia. Os principais centros de actividade económica e cultural continuavam além-fronteiras, mas o prestígio do Estado nacional estava em alta. Uma quantidade muito considerável de capitais gregos foi investida no país, criando um pólo de atracção para os gregos que habitavam fora dos limites do Estado. Esta tendência conquistou rapidamente a burguesia grega de Constantinopla e de outras grandes cidades do Império Otomano, que viviam constantemente no medo de sofrerem a hostilidade do governo otomano.»


Os jogos de influências entre o Reino Unido e a Rússia nos Balcãs


«Cada vez que os povos dos Balcãs tentaram unir-se contra o sultão, a Grã-Bretanha impôs o seu veto: receava acima de tudo uma federação balcânica sujeita à influência russa. Assim, nas vésperas da Guerra Russo-Turca em 1877, a Grã-Bretanha obrigou a Grécia a recusar as propostas da Sérvia, que tinha em vista uma ofensiva comum contra a Turquia. Por outro lado, quando a guerra terminou, o Tratado de San Stefano reforçou consideravelmente os Estados eslavos à custa da Grécia; os Britânicos quiseram à viva força que o tratado fosse revisto e, com o Tratado de Berlim (1878), acabaram por obter uma importante redução dos ganhos territoriais eslavos. Ainda por cima, negociando a seguir com a Turquia, insistiram para que a Tessália e uma parte do Epiro fossem cedidas à Grécia (1881). Desta forma a Grã-Bretanha não só conseguiu preservar contra a Rússia o equilíbrio territorial, mas também retardar uma eventual coligação balcânica, pois estes tratados agravaram as malquerenças existentes entre as populações dos Balcãs.»

É muito evidente na análise de Constantin Tsoucalas, frequentemente perspicaz e sempre interessante, que a dívida grega ocupa um lugar marginal, embora na realidade ela constitua um factor decisivo para a subordinação do país aos interesses das grandes potências.

Bibliografia para esta primeira parte:

  • BELOYANNIS Nikos, Le capital étranger en Grèce, http://iskra.gr/index.php?option=com_content&view=article&id=1010:-1833-&catid=55:an-oikonomia&Itemid=283
  • Commission pour la vérité sur la dette grecque, Rapport préliminaire de la Commission pour la vérité sur la dette publique grecque, Athènes, 2015 http://cadtm.org/Rapport-preliminaire-de-la
  • JUGLAR Clément. 1862. Des crises commerciales et de leur retour périodique en France, en Angleterre et aux Etats-Unis, Paris 1862 http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1060720
  • KATSIMARDOS Takis « L’ancien Mémorandum dans la Grèce de 1843 », publié le 18/09/2010, dans le quotidien financier « Imerissia »
  • Mandel, Ernest. 1972. Le Troisième âge du Capitalisme, La Passion, Paris, 1997, 500 p.
  • Mandel, Ernest. 1978. Long waves of capitalist development, The Marxist interpreta­tion, Based on the Marshall Lectures given at the University of Cambridge, Cambridge University Press et Editions de la Maison des Sciences de l’Homme, Paris, 141 p.
  • Marichal, Carlos. 1989. A century of debt crises en Latin America, Prince­ton, University Press, Princeton, 283p.
  • Marx–Engels, La Crise, col. 10/18, Union générale d’éditions, 1978, 444 p
  • Reinhardt Carmen et Rogoff Kenneth, Cette fois, c’est différent. Huit siècles de folie financière, Paris, Pearson, 2010.
  • Reinhardt Carmen M., and M. BELEN Sbrancia. 2015 “The Liquidation of Government Debt.” Economic Policy30, no. 82: 291-333
  • Reinhardt Carmen and TREBESCH Christoph. 2015. The pitfalls of external dependance : Greece, 1829-2015
  • Sack, Alexander Nahum. 1927. Les Effets des Transformations des Etats sur leurs Dettes Publiques et Autres Obligations financières, Recueil Sirey, Paris.
  • TSOUCALAS Constantin. 1970. La Grèce de l’indépendance aux colonels, Editions F. Maspéro, Paris, 1970.

Agradecimentos:

O autor agradece a releitura e as sugestões de: Tassos Anastassiadis, Thanos Contargyris, Olivier Delorme, Romaric Godin, Jean-Marie Harribey, Daphne Kioussis, Yvette Krolikowski, Christian Louedec, Damien Millet, Giorgos Mitralias, Antonis Ntavanellos, Nikos Pantelakis, Claude Quémar, Yannis Thanassekos, Dimitra Tsami, Eleni Tsekeri, Alekos Zannas.

O autor é inteiramente responsável pelos eventuais erros contidos neste trabalho.


Notas

[1Ver as obras de Juglar, Marx, Kondratieff, Kindleberger, Mandel…

[2Os independentistas venceram uma batalha decisiva em Ayacucho, no Peru, a 9/Dezembro/1824, mas o conflito não terminou. Note-se que só uma parte do montante de 20 milhões de libras foi efectivamente transferido para a América Latina.

[3Efectivamente foi isto que aconteceu aos dois empréstimos de 1824 e de 1825. Os títulos foram vendidos à partida a 60 % do seu valor facial. Ver Carmen M. Reinhart e Christoph Trebesch: The pitfalls of external dependance: Greece, 1829-2015, p. 24. O facto de vender os títulos abaixo do seu valor facial/nominal aquando da emissão, logo à partida, a fim de atrair os compradores, continua a ser prática corrente nos nossos dias, mesmo quando o desconto concedido é nitidamente inferior ao que era praticado no século XIX.

[4Ernest Mandel propôs a seguinte datação para as ondas longas de finais do século XVIII e até ao início do século XX: 1793-1825 (período de crescimento forte, que termina na grande crise que estala em 1825), seguido de um período de crescimento lento de 1826 a 1847 (com uma forte crise em 1846-47), período de crescimento forte de 1848 a 1873 com crise forte em 1873; crescimento lento de 1874 a 1893, com crise bancária forte em 1890-1893; crescimento forte de 1894 a 1913… Ver E. Mandel, Le Troisième âge du Capitalisme, 1972. As fases de expansão forte, tal como as fases de expansão lenta, subdividem-se em ciclos mais curtos que variam de 7 a 10 anos e terminam em crises.

[5Sobre as relações complexas e tensas entre o Reino Unido e a Rússia, ver a caixa «Algumas chaves para compreender o contexto histórico do nascimento de um Estado grego independente no século XIX». Ver também Olivier Delorme, La Grèce et les Balkans, du Ve siècle à nos jours, Gallimard, Paris, 2013.

[6É grosso modo o que sucedeu em 2010-2012, quando 13 países da zona euro prestaram a sua garantia ao crédito concedido pelo Fundo Europeu de Estabilidade Financeira. Em caso de incumprimento de pagamento da Grécia, esses países comprometeram-se a reembolsar os títulos na posse dos banqueiros privados. Ver Comissão para a Verdade sobre a Dívida Grega, Rapport préliminaire de la Commission pour la vérité sur la dette publique grecque, Atenas, 2015, caps. 3 e 4.

[7Enquanto Otto não chegou aos 20 anos de idade, ou seja 1835, foi instalado um Conselho de Regência composto por dois aristocratas e um general bávaros. À chegada, Otto instalou-se em Náuplia, uma cidade com 6000 habitantes, antes de decidir, de acordo com o Conselho de Regência, que Atenas, nessa época com 5000 habitantes, se tornaria a capital. Ver https://fr.wikipedia.org/wiki/Othon_Ier_%28roi_de_Gr%C3%A8ce%29

[9A 31/Dezembro/1843, a Grécia já tinha satisfeito o pagamento de 33 milhões de dracmas pelos juros e amortização do capital. Mas resistia a pagar às três potências da Troika garantes do empréstimo de 1833 o montante de 66 milhões de dracmas, ou seja bastante mais do que a Grécia tinha recebido em 1833. informações fornecidas por Dimitra Tsami.

[10É a este episódio que a praça em frente do Parlamento actual deve o seu nome: Praça Syntagma = praça da constituição.

[11Segundo Takis Katsimardos, «L’ancien Mémorandum dans la Grèce de 1843», publicado a 18/09/2010, no jornal financeiro Imerissia, que já não existe. Em linha

[12Ver Carmen M. Reinhart e Christoph Trebesch: The pitfalls of external dependance: Greece, 1829-2015, p. 24.

[13Segundo Reinhart e Trebesch, 2015, The pitfalls of external dependance: Greece, 1829-2015, p. 23, Apêndice B.

[14Ao longo dos séculos XIX e XX, por diversas vezes, foram anuladas dívidas consideradas odiosas. O jurista Alexander Sack, que é uma autoridade no que diz respeito à doutrina da dívida odiosa, resumiu uma série de preceitos numa edição publicada em Paris em 1927. Ver: Sack, Alexander Nahum, 1927, Les Effets des Transformations des États sur leurs Dettes Publiques et Autres Obligations financières, Recueil Sirey, Paris. http://www.worldcat.org/title/effets-des-transformations-des-etats-sur-leurs-dettes-publiques-et-autres-obligations-financieres-traite-juridique-et-financier/oclc/18085050/editions?referer=di&editionsView=true

[15Todos os trechos citados foram retirados do capítulo 1 do livro de Constantin Tsoucalas, La Grèce de l’indépendance aux colonels, Editions F. Maspéro, Paris, 1970.

[16ESTRATOCRACIA (stratos + kratos). Termo invulgar. Governo militar, ou seja, cujos chefes são guerreiros profissionais.

[17Ver a bibliografia de Ioannis Kapodistrias, https://fr.wikipedia.org/wiki/Io%C3%A1nnis_Kapod%C3%ADstrias

Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

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