Eric Toussaint : «As dívidas odiosas da América Latina e da Grécia»

23 de Novembro de 2017 por Eric Toussaint , Marie Charrel


Reeditamos uma entrevista de Eric Toussaint, publicada pelo Le Monde a 18 de novembro de 2017, por ocasião do lançamento do livro Le système dette. O porta-voz do Comité para a Abolição das Dívidas Ilegítimas explica as dificuldades dos Estados que se encontram muito dependentes de matérias-primas. O título original da entrevista é: «A América Latina luta contra o ciclo infernal da dívida há duzentos anos».

Doutor em Ciência Política e porta-voz do Comité para a Abolição das Dívidas Ilegítimas (CADTM Internacional), Eric Toussaint publica Le Système dette, histoire des dettes souveraines et de leur répudiation (Les Liens qui Libèrent, 338 p., 19,50 euros). O autor explica como caem na armadilha da dívida os países que são muito dependentes de matérias-primas.



A Venezuela deixou de pagar parcialmente a dívida. Como se chegou aqui?

A Venezuela é um caso emblemático do ciclo infernal contra o qual a América Latina está a lutar há duzentos anos. Este ciclo começou em 1810, quando o venezuelano Simão Bolívar, figura da luta pela emancipação das colónias espanholas, começou a pedir emprestado a Londres, em condições muito desfavoráveis, para financiar as guerras de independência.

A partir daí, o esquema foi replicado muitas vezes na região: isto é, os Estados endividam-se dando como garantia os seus recursos naturais ou usam parte do rendimento desses recursos para reembolsar os seus empréstimos. Quando os preços das matérias-primas são altos, como entre 2003 e 2014, as condições impostas pelos credores são sustentáveis. Mas assim que os preços caem, os Estados enfrentam dificuldades e ficam à mercê dos credores, como a Venezuela hoje.


Aponta o dedo aos credores. Os culpados não são os dirigentes que, na Venezuela ou na Argentina, não diversificaram a economia durante os anos prósperos?

Sim. A assinatura de acordos de comércio livre pouco favoráveis é a outra constante desse cenário observado há dois séculos. As elites locais têm interesse em manter o seu país em posição de subordinação face aos credores, porque elas também investem na dívida externa dos seu países, não tendo nenhum interesse em vê-la repudiada.

Na Venezuela, uma parte das elites atuais adquiriram, como no século XIX, títulos de dívida emitidos pelo Estado, em dólares, mas vendidos em bolívares. Revendem, depois, esses títulos aos Estados Unidos, o que lhes permite obter dinheiro em cash. Alguns vendem esses dólares na Venezuela no mercado negro, onde a taxa de câmbio é muito desfavorável à população.


Apresenta o repúdio das dívidas ilegítimas como uma solução. Um país que se recuse a cumprir prazos não se arrisca a ser excluído dos mercados financeiros?

Esse é o grande argumento dos banqueiros, mas a história mostra que é o contrário. Quando um país repudia a sua dívida, o contador é posto a zeros. A economia começa a recuperar e, por regra, novos banqueiros, desejosos de emprestar a países, rapidamente voltam a bater à porta, porque têm oportunidade de ganhar dinheiro.

Foi o que aconteceu, em 1867, no México, ou mesmo, em 1917, na Rússia. Após a revolução, o poder soviético recusou honrar as dívidas contraídas pelo czar junto de vários países ocidentais. A França protestou vivamente, especialmente porque 1,6 milhões de residentes franceses possuíam títulos russos. As negociações falharam em 1922. Mas, pouco depois, o Reino Unido, a Itália e a República de Weimar, e depois a França, retomaram a concessão de créditos Créditos Montante de dinheiro que uma pessoa (o credor) tem direito de exigir a outra pessoa (o devedor). comerciais aos soviéticos para que pudessem financiar as importações. Houve uma tal concorrência entre os credores que os países que tinham repudiado as dívidas não ficaram privados de financiamento por muito tempo.


Após não ter pago em 2001, a Argentina não pôde contrair empréstimos internacionalmente durante mais de dez anos!

É diferente: depois de ter suspendido o pagamento da sua dívida aos bancos e ao Clube de Paris, em 2001, Buenos Aires possuía os meios para se livrar dos mercados. O país registou um crescimento muito forte, impulsionado pelo boom das matérias-primas. O governo de Maurício Macri, que chegou em 2015, decidiu regressar aos mercados. O país poderia ter passado sem esse regresso, se a América Latina tivesse conseguido construir um banco Sul consistente, oferecendo financiamento alternativo ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e aos investidores internacionais.


O seu comité luta contra as dívidas odiosas. Quais são, hoje, as que correspondem a esses critérios?

O jurista americano Alexander Nahum Sack (1890-1955) deu uma definição em 1929: uma dívida é odiosa se for contraída contra o interesse geral da população do país e se os credores estiverem cientes disso – devendo estar. De acordo com estes critérios, esse é o caso da dívida contraída pela Grécia a partir de 2010 aos países da zona do euro, incluindo a França, o FMI e o Banco Central Banco central Estabelecimento que, num Estado, tem a seu cargo em geral a emissão de papel-moeda e o controlo do volume de dinheiro e de crédito. Em Portugal, como em vários outros países da zona euro, é o banco central que assume esse papel, sob controlo do Banco Central Europeu (BCE). Europeu. Estes empréstimos não foram contraídos tendo em conta o interesse do povo grego, mas dos bancos estrangeiros com exposição na Grécia. Além disso, esses empréstimos impõem como condição a implementação de reformas que violam os direitos económicos e sociais fundamentais dos gregos em termos de acesso à saúde, habitação ou educação. Atenas ganharia se repudiasse essa dívida.


Mas os empréstimos concedidos pela zona euro Zona euro Zona composta por 18 países que utilizam o euro como moeda: Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Espanha, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Irlanda, Itália, Letónia (a partir da 1-01-2014), Luxemburgo, Malta, Países Baixos, Portugal, Eslováquia e Eslovénia. Os 10 países membros da União Europeia que não participam na zona euro são: Bulgária, Croácia, Dinamarca, Hungria, Lituânia, Polónia, República Checa, Roménia, Reino Unido e Suécia. correspondem também ao dinheiro dos contribuintes europeus!

Tomemos como exemplo o caso da França. Em 2010, Paris concedeu um empréstimo bilateral à Grécia, cujos reembolsos devem começar em 2022. Por conseguinte, o repúdio não terá efeito antes dessa data. Esse repúdio poderia passar por uma consulta ao povo francês, após uma auditoria, para esclarecer as pessoas. Esse empréstimo, na altura, considerado indispensável para salvar a zona euro, também ajudou a Grécia a pagar aos seus principais credores privados, inclusive os bancos franceses. Seria bom esclarecer este assunto.


Fonte:
Le Monde edição de 18 novembro 2017

Tradução: Maria da Liberdade
Revisão: Rui Viana Pereira


Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

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Marie Charrel

Periodista de Le Monde Diplomatique, y novelista.

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