Brasil

O Big Bang das Fake news

1 de Fevereiro de 2021 por José Menezes Gomes


Estamos vivendo um momento na história mundial em que as notícias falsas passaram a ser produzidas e disseminadas, especialmente a partir das mídias sociais, onde a extrema direita usa as tecnologias mais modernas para pedir a volta da idade média. Curiosamente se usa as tecnologias mais modernas de comunicação, que a ciência produziu, para se afirmar o negacionismo tendo como destaque até o movimento terra planista.



Todavia, esse processo de recorrer ao falseamento da realidade não é coisa nova na história mundial e precisa ser localizado. O grande momento dessas teorias conspiratórias teve seu nascedouro durante a Guerra Fria no imediato pós Segunda Guerra, tendo no macartismo seu grande propagador e atingindo muitas personalidades, partidos e até mesmo artistas que eram chamados de comunistas. Charles Chaplin e muitos outros foram perseguidos e até mesmo banidos pelos grandes estúdios de cinema e pela mídia controlada pelo Complexo Industrial Militar, seja jornais, redes de televisão, editoras e rádios. Naquele momento, o mundo estava dividido entre o bloco capitalista e o bloco socialista, enquanto a humanidade vivia uma corrida armamentista que chegou nos anos 1960 à capacidade de destruir o planeta 34 vezes, dentro do que se chamou de Estado de Bem estar social ou os trinta gloriosos.

No caso do Brasil e no restante da América Latina as fakes news atuais têm a mesma origem na guerra fria, que no continente resultou nos golpes militares em praticamente todos os países, desde os anos 1960, tendo como base o apoio ao governo Cívico Militar com grande apoio de grupos religiosos, sejam católicos, evangélicos ou espíritas. Tudo isso era justificado como forma de não permitir uma nova revolução cubana, que na verdade era um movimento em defesa da propriedade privada para os grandes latifúndios e de assegurar novos espaços para a economia dos Estados Unidos da América (EUA), que começavam apresentar elementos de crise. Essa crise inicial acabou resultando no fim de Bretton Woods em 1971, com o fim da convertibilidade do dólar, início da crise do dólar, perda de competitividade da economia estadunidense, surgimento dos primeiros déficits comerciais no início dos anos 1970 e aprofundamento da crise fiscal.

Vale lembrar que todos esses golpes militares no continente tiveram o apoio dos EUA, via CIA (Central Intelligence Agency) como grande fonte de notícias falsas que justificassem a derrubada de governos que não fossem aliados com os interesses dos EUA. Quando observamos melhor, no seio familiar de muitos brasileiros, a trajetória e argumentos dos que hoje apoiam o atual Governo Federal e seu negacionismo da Ciência temos um fato novo em relação ao fundamentalismo religioso, pois esse encontra-se mais intenso com a incorporação da teologia da prosperidade, que potencializou o pensamento neoliberal próprio dos anos 1980/90, tendo como base o individualismo, o egoísmo e a perda de qualquer referência humanista, num momento que vivemos uma regressão social profunda.

Nesse processo temos que observar que parte das famílias que saíram do campo nos anos de 1970 e foram para as cidades acabou se transformando também em apoiadores da ditadura, quando não perceberam que o Regime Militar introduziu um modelo concentrador de renda e da propriedade que acabou expulsando parte dos pequenos agricultores em função do fortalecimento do latifúndio, da modernização agrícola e da destruição ambiental. Aqui podemos observar que parte das famílias passou a apoiar a ditadura militar, mesmo tendo sido expulsas do campo e indo morar nas periferias das médias e grandes cidades.

Para descrever melhor isso, vou usar um exemplo familiar que acabou sendo também o divisor de água político dentro da família, dos anos de 1970 até os dias atuais, entre os parentes que tiveram relativa ascensão social e aqueles que ficaram à margem do que se chamou de milagre brasileiro. Lembro bem o dia em que meu pai, que estava numa plantação de milho, numa terra que não era dele, disse que tinha recebido roupas usadas de um irmão que já estava na cidade e que era pertencente a ARENA Jovem. Meu pai reproduzia a frase do seu irmão da cidade “Brasileiro tem que usar verde ou amarelo, pois quem não usasse essas cores não seria um bom exemplo”.

Tratava-se de uma interpretação rural do “Brasil ame-o ou deixe-o”, que vigorava no mundo urbano durante a fase mais violenta do regime militar com o AI 5 (Ato Institucional Número Cinco) emitido pelo presidente Artur da Costa e Silva em 13 de dezembro de 1968 e suspensão dos direitos políticos, do uso da tortura e assassinatos de todos aqueles que discordavam de um Governo Militar, que resultou de um golpe organizado pelo braço do Estado, com apoio da burguesia brasileira. Nesse momento, temos um irmão tendo ascensão social por fazer parte de um aparelho estatal, fruto de sua atuação política na tentativa de legitimar o golpe militar e o outro que trabalhava na terra de um fazendeiro com o compromisso de no final do ano plantar capim e devolver a terra para criação de gado do latifundiário. Todavia, meu pai acabou reproduzindo a ideologia do regime feito a força que em seguida levou a sua expulsão do campo e deslocamento para a cidade grande.

Este divisor de água político dentro da família gerou um permanente conflito de interesse entre os irmãos mais velhos, que tinham ligação com o campo e com a origem nordestina e os irmãos mais novos, dos quais se afastavam cada vez mais que se ampliava a ilusão de pertencimento a uma nova classe. O fato surpreendente é que filhos de nordestinos, que procuravam terras no Centro Oeste para poder trabalhar e garantir seu sustento, acabaram perdendo sua identidade cultural com o Nordeste e com o campo, assimilando assim, padrões de valores próprios onde passaram a se identificar como burgueses, mesmo sem possuir meios de produção. O fio condutor de tudo isso foi a questão religiosa e a relocalização artificial de classe que acabou gerando um ódio de classe errado dentro da família.

O impressionante é que o conjunto de valores defendidos por esses foi amplamente massificado pelos órgãos de defesa da classe dominante impulsionados pela CIA, em especial. Os apoiadores do golpe na família se diziam anticomunistas, enquanto a maior parte da família era de fato sem-terra e precisavam sim das reformas de bases como a Reforma Agrária e políticas públicas. Dessa forma, os irmãos mais novos passaram a agir dentro da família como propulsores dos novos valores vindos da ditadura militar, enquanto os mais velhos acabaram todos vindos para a cidade e não tiveram facilidade na inserção laboral no mundo urbano.

A frase que sempre lembro dita por um tio era que “Filho de pobre tem que apoiar o Governo”. A resposta a isso veio com a entrada de grande parte da família no serviço público, sem concurso, já que naquele momento o acesso ao serviço público se dava pela adesão das famílias ao apoio à ditadura, já que nos anos 1980 a eleição começa a ser restabelecida. Se queremos saber por que muitos servidores públicos, ainda hoje, são apoiadores do atual Governo e da ditadura militar, devemos lembrar que muitas famílias estiveram no serviço público como parte da busca de cooptação pela ditadura. É sabido que também temos servidores públicos concursados que são apoiadores da ditadura. Todavia, podemos observar que temos uma repetição das notícias falsas próprias do momento atual como aquelas dos anos de 1960. Os mesmos que hoje apoiam o atual Governo e massificam fake News nos grupos de família apoiaram a ditadura, votaram para presidente em Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso e apoiavam a candidatura de Aécio Neves. São identificados com os partidos de direita desde aquele momento.

O maior fake News de todos é que esses apoiadores se consideram pertencentes a uma classe média determinada, quando na verdade a maioria é constituída por pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza cheia do DIEESE ou ganham menos que o Salário-Mínimo Necessário. Dessa forma aqueles que passaram a se identificar com a classe dominante, pois acreditavam que um dia chegariam lá, passaram a sempre apoiar Governos e grupos políticos que fossem identificados como “anticomunistas” ou antissociais. Por esse motivo sempre apoiaram os vários Governos envolvidos com a corrupção, aparelhamento do Estado e mais recentemente tentaram se colocar como inimigos da corrupção.

Comunistas para esses seriam os Governos voltados para a defesa dos direitos sociais, tais como: reforma agrária, saúde, educação, habitação popular, cultura, saneamento básico, direito à aposentadoria etc. Em outras palavras, passaram a apoiar a destruição de tudo aquilo que o restante da família mais precisava. Dessa forma foram cúmplices de toda política de empobrecimento social que os demais membros da família sofreram, buscando sempre legitimar o sistema que produziu as desigualdades sociais e regionais que levaram os antepassados da Bahia para Mato Grosso.

A nova geração de descendentes, em grande parte, não tem mais identidade com o Nordeste, nem com o campo e muito menos com os trabalhadores rurais. Ao contrário apoiam Governos que discriminam os nordestinos, os pobres e os sem-terra, ou seja, negam sua origem, apoiam a tortura, pena de morte e todo tipo de intolerância: racismo, xenofobia, homofobia, sexismo, machismo, misoginia etc. Esse segmento que se considera o novo rico e anticomunista são filhos de oprimidos que se convertem em auxiliares dos opressores e apoiam todas as reformas que acabam com todos os direitos: trabalhista, previdência, tributária, Universitária etc.

O que tenho hoje na minha família é o que existe em muitas famílias e que se expressa nas palavras de ódio da classe errada, na divulgação de falsas notícias, na negação da Ciência e no apoio ao Governo que tem como projeto acabar todos os direitos que os mais pobres da família tanto necessitam. Isso tudo ironicamente em nome da defesa da família, da propriedade e dos valores que consideram cristãos. Todavia, tudo que fazem é comprometer as condições de vida de parte da família e da maioria da população brasileira, já que o anticomunismo que praticam é fundamental para legitimar as políticas que aprofundam o enriquecimento privado e o empobrecimento social, num momento de cotidianização da barbárie e de aprofundamento do quadro social dos seus parentes mais pobres. Ou seja, são comensais da burguesia sempre esperando migalhas daquilo que a burguesia se apropria gerado pelos trabalhadores, para manter a aparência de classe média.

A motivação deste texto vem do contato recente com um parente que repete os mesmos argumentos de 40 anos para justificar o apoio ao Governo atual, que põe em risco toda a família e a maioria da população brasileira, seja pelo negacionismo junto ao COVID 19, ou com a introdução de políticas que destrói o serviço público e os direitos sociais, mesmo com o registro no dia de hoje, 29 de janeiro de 2021 de 221.547 mortos no Brasil e 2.194.790 no Mundo. Devemos lembrar que esse anticomunismo ocorre justamente quando a restauração capitalista que se tornou cada vez mais ampla em todo o planeta e a China (segunda grande potência mundial) é acusada de propagar o vírus COVID 19 para propagar o comunismo. Na essência a China se tornou o principal centro de extração de mais valia do capitalismo mundial.

O big bang das notícias falsas passou pela Guerra Fria, pela introdução do regime militar e agora tem seu novo apogeu com um Governo autoritário eleito com fake News pelos oprimidos se converteram em operacionais dos novos opressores movidos por um fundamentalismo religioso e pelo ódio da classe errada. É fundamental lembrar que o Regime Cívico Militar foi o responsável pelo endividamento externo convertido em dívida pública, na tentativa de legitimar aqueles Governos com a ideia do crescimento econômico como justificativa para a existência de um Governo autoritário.


José Menezes Gomes

Doutor pela USP, professor da UFAL, membro da Rede de Cátedras sobre Dívida Pública e Coordenador do Núcleo da Auditoria Cidadã da Dívida - Alagoas - Brasil

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