Carta Política do CADTM Internacional adotada em Belém, em Janeiro de 2009.
Preâmbulo
Em 1989, o «apelo da Bastilha» foi lançado em Paris: o texto convida todas as forças populares do mundo a unirem-se em torno da anulação imediata e incondicional da dívida dos países «em desenvolvimento». Essa dívida, esmagadora, e as reformas macroeconómicas neoliberais impostas a sul, a partir da crise da dívida de 1982, provocaram a explosão das desigualdades, da pobreza em massa, das injustiças gritantes e da destruição ambiental . É em resposta a esse apelo, e para lutar contra a degradação geral das condições de vida da maioria dos povos, que o CADTM é criado em 1990. Hoje, o CADTM Internacional é uma rede constituída por cerca de trinta organizações ativas em mais de 25 países, nos quatro continentes. O seu principal objetivo, centrado na problemática da dívida, consiste na realização de ações e no desenvolvimento de alternativas radicais, que visam a emergência de um mundo baseado na soberania, na solidariedade e na cooperação entre os povos, no respeito pela natureza, na igualdade, na justiça social e na paz.
Após a criação do CADTM, o contexto internacional evoluiu. Em termos de endividamento, convém ter em conta uma mudança significativa: a dívida pública interna tem aumentado muito. Duas grandes tendências opostas estão em marcha à escala internacional. Por um lado, a ofensiva neoliberal capitalista, liderada principalmente pelo G7, FMI, Banco Mundial e OMC, todos ao serviço das multinacionais e do capital financeiro internacional, continua e aprofunda-se. Por outro lado, uma contratendência desenvolve-se desde finais dos anos noventa: fortes mobilizações populares contra a ofensiva neoliberal, em particular na América Latina, reforço do movimento social internacional que luta por «outros mundos possíveis», a eleição de presidentes que defendem uma rutura com o neoliberalismo, iniciativas em matéria de auditoria e de suspensão do pagamento da dívida pública externa, começo da recuperação do controlo do Estado sobre setores estratégicos e sobre recursos naturais, fracasso de projetos neoliberais como a Alca, resistência ao imperialismo no Iraque, na Palestina e no Afeganistão. Mudanças na relação de forças entre essas duas tendências dependerão em grande parte das reações populares face à crise internacional multifacetada (financeira, económica, social, política, alimentar, energética, climática, ecológica, cultural).
Carta Política
1 - A dívida pública (externa e interna) provoca uma transferência massiva de riqueza dos povos do sul para os credores, para as classes dominantes a nível local, que cobram uma comissão pelo processo. Tanto a norte como a sul do planeta, a dívida consiste num mecanismo de transferência da riqueza gerada pelos trabalhadores-oras e pequenos(as)-produtores-oras para os capitalistas. O endividamento é usado pelos credores como um instrumento de dominação política e económica, que estabelece uma nova forma de colonização. Apesar dos seus muitos recursos naturais e humanos, os povos do sul estão arruinados. Na maioria dos países do sul, o pagamento da dívida pública representa, todos os anos, uma soma superior às despesas com educação, saúde, desenvolvimento rural e criação de emprego. As iniciativas no sentido de aliviar a dívida, levadas a cabo nos últimos anos, têm-se revelado autênticas armadilhas, com consequências nefastas para os países que delas têm «beneficiado».
2 - o objectivo principal do CADTM é a abolição imediata e incondicional da dívida pública do Terceiro Mundo e o abandono das políticas de ajustamento estrutural. Para atingir esse objectivo, o CADTM Internacional age no sentido de realizar as seguintes ações:
- Impulsionar processos de difusão, consciencialização, organização e ação dos povos endividados.
- Realização de auditorias à dívida, com participação cidadã, visando o repúdio de todas as dívidas odiosas e ilegítimas.
- Decisões unilaterais e soberanas dos governos que declaram a nulidade da dívida pública e suspendem o seu reembolso.
- Rompimento dos acordos com o FMI e o Banco Mundial.
- Estabelecimento de uma frente unida de países pelo não pagamento da dívida.
- Reconhecimento da doutrina da dívida odiosa
Dívida odiosa
Segundo a doutrina, para que uma dívida seja considerada odiosa, e portanto nula, tem de preencher as seguintes condições:
1. Foi contraída contra os interesses da Nação ou contra os interesses do povo ou contra os interesses do Estado.
2. Os credores não conseguem demonstrar que não podiam saber que a dívida foi contraída contra os interesses da Nação.
É preciso sublinhar que, segundo a doutrina da dívida odiosa, a natureza do regime ou do governo que contraiu a dívida não é particularmente importante, pois o que conta é a utilização dada à dívida. Se um governo democrático se endividar contra o interesse da população, a dívida pode ser qualificada odiosa, desde que preencha igualmente a segunda condição. Por consequência, e contrariamente a uma interpretação errada desta doutrina, a dívida odiosa não se aplica apenas aos regimes ditatoriais. (Ver Éric Toussaint, «A Dívida Odiosa Segundo Alexandre Sack e Segundo o CADTM»)
O pai da doutrina da dívida odiosa, Alexander Nahum Sack, diz claramente que as dívidas odiosas podem ser atribuídas a um governo regular. Sack considera que uma dívida contraída por um governo regular pode ser considerada incontestavelmente odiosa, desde que preencha os dois critérios acima apontados.
E acrescenta: «Se estes dois pontos forem confirmados, cabe aos credores o ónus de provar que os fundos envolvidos nos referidos empréstimos foram utilizados não para fins odiosos, prejudiciais à população do Estado, no seu todo ou em parte, mas sim para as necessidades gerais ou especiais desse Estado, e não apresentam carácter odioso».
Sack definiu um governo regular da seguinte forma:
«Deve ser considerado regular o poder supremo que existe efectivamente nos limites de um dado território. É indiferente ao problema em foco que esse poder seja monárquico (absoluto ou limitado) ou republicano; que proceda da “graça de Deus” ou da “vontade do povo”; que exprima a “vontade do povo” ou não, do povo inteiro ou apenas de uma parte deste; que tenha sido estabelecido legalmente ou não.»
Portanto não restam dúvidas sobre a posição de Sack, todos os governos regulares, sejam eles despóticos ou democráticos, em todas as suas variantes, são susceptíveis de contraírem dívidas odiosas.
em termos de direito internacional. - Rejeição de todo o tipo de condicionalismos impostos pelos credores.
- Entrega, aos cidadãos e cidadãs dos países do Sul, dos bens que lhes foram retirados pelos dirigentes corruptos do Sul, com a cumplicidade das instituições bancárias e dos governos.
- Pagamento sem condições pelas potências do Norte a título de reparação pela dívida histórica, social e ecológica acumulada em prejuízo dos povos do Sul.
- Ações judiciais contra as instituições financeiras internacionais.
- Em caso de nacionalização dos bancos privados em processo de falência, recuperação do custo dessas operações à custa do património dos grandes acionistas e administradores.
- Substituição do Banco Mundial, do FMI e da OMC por instituições democráticas, que tenham como prioridade a satisfação dos direitos humanos fundamentais nas áreas do desenvolvimento, finanças, crédito e comércio internacional.
- Denuncia de todos os acordos (económicos, políticos, militares, etc.) que hipotequem a soberania dos povos e perpetuem mecanismos de dependência.
3 – Para o CADTM, a anulação da dívida não constitui um fim em si mesmo. Trata-se de uma condição necessária, mas não suficiente, para garantir a satisfação dos direitos humanos. É necessário ir mais além da anulação da dívida pública, se a humanidade deseja pôr em prática uma justiça social respeitadora do meio ambiente. A dívida faz parte de um sistema que deve ser combatido na sua totalidade. Simultaneamente à anulação da dívida, é indispensável pôr em prática outras alternativas radicais, entre as quais:
- Eliminar a fome, a pobreza e as desigualdades.
- Garantir a igualdade das mulheres e dos homens em todas as esferas da vida.
- Instalar uma nova disciplina financeira, restaurando o controlo estrito dos movimentos de capitais e de mercadorias, taxando o capital (taxas globais, impostos sobre as grandes fortunas), levantando o segredo bancário, proibindo os paraísos fiscais, a especulação
Trading
especulação
Operação de compra e venda de produtos financeiros (acções, futuros, produtos derivados, opções, warrants, etc.) realizada na mira de obter um lucro a curto prazo.
e a usura. - Prestar ajuda pública ao desenvolvimento, exclusivamente sob a forma de doações e sem imposição de condições, à razão de 1 % do rendimento nacional bruto dos países mais industrializados, rebatizando-a de «Contribuições de reparação e solidariedade», excluindo do cálculo destas as anulações da dívida e os montantes que não servem os interesses das populações do sul.
- Promover uma mobilização de recursos que não provoque endividamento.
- Promover alternativas que libertem a humanidade de todas as formas de opressão: opressão social, opressão patriarcal, opressão neocolonial, opressão racial, opressão de casta, opressão política, opressão cultural, sexual e religiosa.
- Promover uma política ambiental ambiciosa que vise restabelecer o clima.
- Assegurar a soberania económica, política e alimentar dos povos.
- Proibir o patenteamento da vida.
- Desmilitarizar integralmente o planeta.
- Garantir o direito de circulação e estabelecimento das pessoas.
- Afirmar a superioridade dos direitos humanos sobre o direito comercial e impor aos governos, às instituições financeiras internacionais e às empresas o respeito pelos diferentes instrumentos internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH, 1948), a Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher (1952), o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC, 1966), o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP, 1966), a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação em Relação às Mulheres (CEDAW, 1981), a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento (DDD, 1986), a Convenção Relativa aos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e suas Famílias (1990), a Declaração sobre os Defensores dos Direitos Humanos (1998) e a Declaração sobre os Direitos dos Povos Autóctones (2007).
- Assegurar a soberania dos povos sobre a sua vida e o seu futuro, o que implica nomeadamente trazer para o domínio público os recursos naturais, os resultados da Investigação e Desenvolvimento, os outros bens comuns da humanidade e os setores estratégicos da economia.
- Sair do sistema capitalista baseado na procura do lucro
Lucro
Resultado contabilístico líquido resultante da actividade duma sociedade. O lucro líquido representa o lucro após impostos. O lucro redistribuído é a parte do lucro que é distribuída pelos accionistas (dividendos).
privado máximo, no crescimento e no individualismo, a fim de construir uma sociedade onde as necessidades sociais e o meio ambiente se situem no centro das opções políticas.
4 – Para alcançar estas mudanças e realizar a emancipação social, o CADTM Internacional considera que devem ser os próprios povos a enfrentar o desafio da mudança. Não devem ser libertados, devem libertar-se a si mesmos. Por outro lado, a experiência demonstra que não se pode esperar que as minorias privilegiadas tomem a seu cargo o bem-estar das populações. Como afirma o Apelo da Bastilha de 1989, «só a solidariedade dos povos pode quebrar o poder do imperialismo económico. Esta solidariedade não significa em caso algum um apoio aos regimes que provocam a miséria dos seus países, abafam a voz e os direitos dos povos». O reforço dos movimentos sociais é uma prioridade para o CADTM. O CADTM participa, numa perspetiva internacionalista, na construção dum vasto movimento popular, consciente, crítico e mobilizado. Convencido da necessidade de fazer convergir as lutas emancipadoras, o CADTM Internacional apoia todas as organizações e coligações que atuem em prol da igualdade, da justiça social, da preservação da natureza e da paz.
Tradução: Maria da Liberdade, Rui Viana Pereira