2 de Janeiro de 2016 por Commission pour la vérité sur la dette grecque
Aviso: Alguns dos termos usados nesta tradução carecem de rigor (por exemplo, na distinção entre tratado, acordo e convenção). No entanto, no essencial, a tradução corresponde com rigor ao conteúdo do relatório da Comissão de auditoria da dívida grega, o que justifica a sua publicação. O tradutor e o CADTM agradecem qualquer sugestão adequada para repor o rigor nos termos jurídicos em causa.
O capítulo final do Relatório apresentado a 18/junho/2015 pela Comissão para a Verdade sobre a Dívida Pública Dívida pública Conjunto dos empréstimos contraídos pelo Estado, autarquias e empresas públicas e organizações de segurança social. [1] oferece à Grécia argumentos jurídicos sólidos para suspender ou repudiar as dívidas ilegítimas, odiosas, ilegais ou insustentáveis. [2]
Resumo:
Vários mecanismos legais permitem aos Estados, de forma unilateral, repudiar ou suspender o reembolso de dívidas ilegítimas, odiosas, ilegais ou insustentáveis.
Um primeiro conjunto de mecanismos visa o repúdio das dívidas ilegítimas, odiosas e ilegais. Estes mecanismos integram elementos subjectivos que levam em conta o comportamento dos credores. O repúdio unilateral é justificado por considerações imperativas de justiça e equidade, mas também se fundamenta na soberania e na autodeterminação. É o que acontece quando se verifique ausência de boa-fé, em conformidade com o artigo 26.º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados [3] (CVDT), que dispõe que os tratados obrigam todas as partes e devem ser executados de boa-fé. No caso grego, a má-fé consistiu na submissão financeira da Grécia e na imposição de medidas contrárias aos direitos sociais, económicos, civis e políticos fundamentais do povo grego e à legislação nacional. Acresce uma pressão contínua sobre as autoridades gregas, induzindo-as a contornar a Constituição e a as suas obrigações
Obrigações
Parte de um empréstimo emitido por uma sociedade ou uma coletividade pública. O detentor da obrigação, ou obrigacionista, tem direito a um juro* e ao reembolso do montante subscrito. Obrigações também podem serem negociadas no mercado secundário.
em matéria de direitos humanos; a ingerência dos credores nos assuntos políticos e económicos do país constitui uma forma de coerção. Ora a coerção é, só por si, motivo bastante de nulidade, nos termos do artigo 52.º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. A referência feita nesse artigo à «força» pode ser interpretada como incluindo formas de coerção económica. É preciso ter ainda em conta que, no caso vertente, as declarações feitas pelos credores – algumas delas especulativas e que se sabia culminarem, ou terem consabidamente o efeito de degradarem e prejudicarem a economia grega e as condições de vida dos gregos – constituem um tipo unilateral de medidas coercivas. Estas medidas são proscritas pelo direito internacional e violam a Carta das Nações Unidas. Admite-se geralmente que quando um país é alvo de medidas que são reconhecidamente prejudiciais à sua economia (em especial quando beneficiam os credores) e aos meios de subsistência do seu povo, esse país pode recorrer a contra-medidas legítimas. Com efeito, ao abrigo do direito internacional consuetudinário e dos artigos 49.º e seguintes [do texto com o projecto de Artigos sobre Responsabilidade dos Estados por Actos Ilícitos (AREAI), adoptado pela Comissão do Direito Internacional (CDI) [4], um Estado lesado pode não executar uma obrigação internacional que o obriga face a outro Estado, se este for responsável por um acto internacional ilícito. A violação cometida pelo Estado lesado visa levar o Estado responsável a respeitar as suas obrigações.
Finalmente, deve sublinhar-se que o povo grego não obteve vantagem injusta nem beneficiou da dívida acumulada, e por consequência a Grécia não tem a obrigação de repor o capital inicial (na parte considerada odiosa, ilegal ou ilegítima), nem se lhe aplica a noção de enriquecimento sem causa.
Um segundo conjunto de mecanismos diz respeito às dívidas insustentáveis. Contrariamente aos mecanismos que acabamos de descrever, aplica-se de maneira objectiva e não depende do comportamento dos credores. Neste caso a dívida não pode ser repudiada, mas o seu reembolso pode ser suspenso. Dentro deste âmbito a Grécia pode apresentar dois argumentos que suspendem a obrigação de reembolsar. O primeiro diz respeito ao estado de necessidade. Conforme o artigo 25.º dos AREAI da CDI, o termo «necessidade» remete para casos excepcionais nos quais o único meio de um Estado proteger um interesse essencial contra perigo grave e iminente consiste em suspender, momentaneamente, a execução de uma obrigação internacional cujo peso ou urgência seja menor. No caso vertente, tendo em conta a crise económica e social da Grécia, as condições requeridas para invocar o estado de necessidade estão preenchidas. O segundo argumento tem a ver com o direito à insolvência unilateral. Embora os credores se oponham geralmente a essa opção, que os priva do reembolso, a insolvência soberana é uma realidade dos assuntos internacionais, reconhecida tanto na teoria como na prática. Ora se um Estado tem o direito de se tornar insolvente, é claro que a insolvência declarada unilateralmente é uma condição que exclui a ilicitude do incumprimento das obrigações internacionais do devedor, nomeadamente o reembolso duma dívida.
A existência de dívidas odiosas, ilegais ou ilegítimas pode justificar o seu repúdio unilateral pelo Estado devedor, se esse repúdio não for arbitrário nem discriminatório e se não der origem a enriquecimento ilícito. A ausência de jurisprudência substancial ou de um corpo considerável de denúncias unilaterais explica-se pelo facto de, na maior parte dos casos, os Estado devedores (e os seus credores) julgarem preferível, política e financeiramente, renegociar os termos dos contratos. Esses acordos não elidem o direito dos Estados de repudiar unilateralmente as dívidas odiosas, ilegais ou ilegítimas. De facto, o repúdio unilateral fica justificado por condições imperativas de justiça e equidade, [5] e funda-se também no direito à soberania e à autodeterminação. No presente relatório, o fundamento jurídico para um repúdio unilateral declarado pela Grécia sobre a parte da dívida que for dada como odiosa, ilegal ou ilegítima, assenta nos seguintes considerandos:
1. Ausência de boa-fé
Nos termos do artigo 26.º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, os tratados obrigam as partes e devem ser executados de boa-féi. [6] O comentário da Comissão do direito internacional insiste no facto de que a boa-fé é um princípio jurídico que faz parte integrante do princípio pacta sunt servanda. Este princípio, que determina que os acordos devem ser honrados, aplica-se apenas se ambas as partes agirem de boa-fé. De facto, o parágrafo 2 do artigo 69.º da Convenção de Viena estipula que «os actos realizados de boa-fé antes de a nulidade ter sido invocada não se tornam ilícitos em consequência da nulidade do tratado», o que significa implicitamente que os actos efectuados com má-fé são sempre ilícitos. Embora a ausência de boa-fé não implique automaticamente a nulidade de um acordo, ela justifica, em circunstâncias excepcionais, a denúncia do acordo, em conformidade com o artigo 56.º, § 1, alínea b, da Convenção (um direito de denúncia implicitamente ligado à natureza do tratado). No caso presente, era do conhecimento de todas as partes que os acordos firmados entre a Grécia e os seus credores violam a Constituição grega. Além disso, todas as partes sabiam que os acordos contrariavam as obrigações da Grécia decorrentes de alguns tratados relativos aos direitos humanos e ao direito internacional consuetudinário. No caso grego, a má-fé é patente também nos fins dos credores, que não consistiam em auxiliar o povo grego mas antes, entre outros, em transformar dívidas privadas em dívidas públicas e assim salvar os grandes bancos privados, bem como os seus accionistas.
Estes fins foram alcançados subordinando a Grécia financeiramente e impondo medidas que atentam contra os direitos sociais, económicos, civis e políticos fundamentais do povo grego. Acresce que os Estados e instituições financeiras emprestadoras beneficiavam de uma excelente notação de crédito e por isso tinham acesso a taxas de juro
Juro
Quantia paga em retribuição de um investimento ou um empréstimo. O juro é calculado em função do montante do capital investido ou emprestado, da duração da operação e de uma taxa acordada.
baixas; emprestaram à Grécia a taxas de juro muito superiores, a título de «resgate»; assim, o BCE
Banco central europeu
BCE
O Banco Central Europeu é uma instituição europeia sediada em Francoforte e criada em 1998. Os países da zona euro transferiram para o BCE as suas competências em matéria monetária e o seu papel oficial de assegurar a estabilidade dos preços (lutar contra a inflação) em toda a zona. Os seus três órgãos de decisão (o conselho de governadores, o directório e o conselho geral) são todos eles compostos por governadores dos bancos centrais dos países membros ou por especialistas «reconhecidos». Segundo os estatutos, pretende ser «independente» politicamente, mas é directamente influenciado pelo mundo financeiro.
comprou obrigações do Estado nos mercados secundários por metade do seu valor nominal, para depois exigir à Grécia uma taxa de juro exorbitante, usando ao mesmo tempo o argumento de que tinha comprado obrigações gregas para contribuir para a recuperação da economia grega e para o resgate financeiro do país. Além disso, os credores tiraram partido da necessidade de liquidez da Grécia para imporem uma série de medidas cujo fim era a extinção da soberania económica e política do país.
2. Consequência jurídica de os credores violarem as leis nacionais
A violação flagrante do direito interno, em particular a Constituição grega, reforça a manifesta má-fé dos credores. Exemplo típico foi a promulgação do artigo 1.º (9) da Lei 3847/2010, que contorna os artigos 28.º e 36.º da Constituição no que se refere à necessidade de o Parlamento aprovar os acordos internacionais. Tais violações da Constituição foram claramente orquestradas pelas duas partes; abriram a porta à adopção de leis «recomendadas» pelos credores (ou de acordos ditados pelos credores), sem aprovação do Parlamento. Embora, de maneira geral, as obrigações decorrentes do direito internacional tenham precedência sobre as leis nacionais, este princípio não se aplica quando as partes, por mútuo acordo, violem consciente e propositadamente as normas essenciais do direito nacional (em especial as de natureza constitucional). Isto explica-se pelo facto de tais acordos atentarem contra o princípio da legalidade, não satisfazerem o critério da boa-fé e prejudicar as legítimas expectativas de terceiros. O artigo 46.º, §1, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados estabelece expressamente que a violação das leis nacionais, quando esteja em causa a competência para celebrar tratados, é motivo de nulidade do consentimento do Estado, se, como foi o caso vertente, «essa violação tiver sido manifesta e disser respeito a uma norma de importância fundamental do seu direito interno».
3. O primado dos direitos humanos sobre outras obrigações contratuais
Como se mostra no presente relatório, a Grécia foi efectivamente obrigada a violar os direitos humanos fundamentais, através de uma série de acordos, entre os quais o Acordo de Credores e o Acordo de Empréstimo de 2010 e os protocolos de acordo, ao passo que os Estados credores tenham a obrigação de não forçar o devedor a violar as suas obrigações em matéria de direitos humanos. A violação dos direitos humanos imposta pelas condições dos acordos afecta a validade dos contratos de empréstimo. [7]
A obrigação de os credores respeitarem os direitos humanos é em primeiro lugar e antes de tudo o mais de ordem ética, pois nenhum Estado pode legitimamente afirmar que honra as suas obrigações em matéria de direitos humanos no seu território, ao mesmo tempo que exerce pressão sobre outro Estado para que este viole as suas próprias obrigações. Em segundo lugar, convencer um Estado a suspender total e efectivamente a execução das suas obrigações em matéria de direitos humanos, ou abdicar dessas obrigações, constitui uma clara ingerência nos seus assuntos internos, quer o Estado nisso consinta formalmente ou não. Na medida em que os acordos celebrados pela Grécia com os seus credores entram em conflito com as normas imperativas do jus cogens (por exemplo, a autodeterminação económica), tornam-se nulos em virtude do artigo 53.º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados.
O primado dos direitos humanos não só é claramente consagrado no artigo 103.º da Carta das Nações Unidas, mas também reconhecido por numerosos relatórios e declarações de instituições das Nações Unidas. Segundo o artigo 103.º da Carta das Nações Unidas: «No caso de conflito entre as obrigações dos Membros das Nações Unidas, em virtude da presente Carta e as obrigações resultantes de qualquer outro acordo internacional, prevalecerão as obrigações assumidas em virtude da presente Carta.» Estas obrigações obrigam nomeadamente a que os Estados promovam o respeito universal e efectivo pelos direitos humanos para todos.
Os Princípios Orientadores sobre Dívida Externa e Direitos Humanos da ONU, que, embora não sejam propriamente normativos, reflectem o direito consuetudinário no que diz respeito às obrigações dos Estados em matéria de direitos humanos, sublinham o seguinte:
«Todos os Estados […] têm a obrigação de respeitar, proteger e cumprir os direitos humanos. Devem zelar para que todas as suas actividades decorrentes das suas decisões de pedir empréstimos e de emprestar, provenham elas de instituições internacionais ou nacionais, públicas ou privadas, às quais pertencem ou nas quais têm interesses, a negociação e a aplicação dos acordos de empréstimo e outros instrumentos relativos à dívida, a utilização de fundos de empréstimos, os reembolsos de dívida, a renegociação e a reestruturação da dívida externa e as medidas de alívio da dívida, quando seja esse o caso, não firam aquela obrigação» (§6).
«As instituições financeiras internacionais […] têm a obrigação de respeitar os direitos humanos […]. Devem para isso abster-se de formular, adoptar, financiar e executar pol+iticas e programas que contrariem directamente ou indirectamente o usufruto dos direitos humanos» (§9).
«Os Estados deverão providenciar que os seus direitos e obrigações decorrentes dos acordos ou protocolos relativos à dívida externa […] não entravem a progressiva realização dos direitos económicos, sociais e culturais» (§16).
4. A coacção na reestruturação da dívida
A maioria dos instrumentos relativos à dívida contêm um certo grau de coacção. De facto, quando um Estado é coagido a violar as suas obrigações constitucionais que decorrem dos tratados e do direito consuetudinário, a fim de obter crédito e liquidez, em particular quando é forçado a renunciar a partes significativas da sua soberania legislativa e socioeconómica, considera-se que que foi forçado a dar o seu acordo sob forte grau de coacção. No pressente caso, a coacção traduziu ainda na imposição de condições estritas, associada à ingerência nos processos constitucionais (como a firme oposição expressa face à proposta de referendo em 2011 e as ameaças desveladas feitas ao eleitorado grego desde 2010). A coacção, entendida como motivo de nulidade, nos termos do artigo 25.º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, remete para a ameaça ou o emprego da força. A referência feita à «força» na Convenção pode ser interpretada como incluindo as formas de coacção económica e não deveriam necessariamente limitar-se à «força armada». De facto, em diversos instrumentos internacionais, as pressões económicas são consideradas uma forma de agressão. [8]
Este tipo de coacção económica pode também ser qualificada como intervenção ilícita nos assuntos internos de um Estado, o que, apesar de não constituir um vício de consentimento, pode contudo ser motivo de denúncia de um tratado, em virtude do artigo 56.º, 1-b, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados.
O uso da coacção nas negociações e a assinatura de um instrumento, quer se trate de um tratado ou de um contrato, tem graves consequências sobre o instrumento em questão e sobre a relação entre as partes. [9] Apesar de os artigos 51 e 52 da Convenção de Viena remeterem para a coacção exercida sobre as negociações de um Estado ou para a coacção por meio de ameaça ou emprego da força, torna-se claro que, nos casos em que um governo no seu conjunto é forçado a aceitar condições nitidamente desequilibradas, por medo de ser castigado com uma crise financeira grave, real ou especulativa (e em especial quando são as outras partes que dominam a sua origem e os seus efeitos [10]), de consequências imprevistas, o nível de coacção é equivalente ao exposto no artigo 52.º da Convenção.
5. Medidas unilaterais de coacção feitas pelos credores
A má-fé dos credores e a pressão ilegítima (acção Acção Valor mobiliário emitido por uma sociedade em parcelas. Este título representa uma fracção do capital social. Dá ao titular (o accionista) o direito, designadamente, de receber uma parte dos lucros distribuídos (os dividendos) e participar nas assembleias gerais. coercitiva ou coacção) que eles exerceram sobre a Grécia para que ela aceitasse as disposições dos diversos acordos e instrumentos, assim como as consequências financeiras de actos unilaterais, culminaram numa situação cujos efeitos jurídicos equivalem a medidas de coacção unilaterais. No caso grego, as declarações feitas pelos credores, incluindo as que se fundamentam em especulação Especulação Operação que consiste em tomar posição no mercado, frequentemente contracorrente, na esperança de obter um lucro. , e que consabidamente desembocariam na degradação da economia grega e das condições de vida da população grega, constituem medidas coersivas unilaterais. As medidas coercitivas unilaterais são proibidas pelo direito internacional, são contrárias à Carta das Nações Unidas e não são consideradas contramedidas legais. [11]
6. Contramedidas legais
Como se demonstrou no presente relatório, os credores cometeram actos internacionalmente ilícitos ao imporem ao Governo grego diversas medidas que atentam contra os direitos do povo grego.
Além disso, no período que antecedeu a crise da dívida grega, os estados-membros da UE e o FMI, entre outros, multiplicaram as declarações negativas a propósito da economia grega, o que teve um efeito negativo directo na capacidade de o país se financiar com baixas taxas de juro. Outras declarações especulativas evocando a eventualidade da saída do país da zona euro Zona euro Zona composta por 18 países que utilizam o euro como moeda: Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Espanha, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Irlanda, Itália, Letónia (a partir da 1-01-2014), Luxemburgo, Malta, Países Baixos, Portugal, Eslováquia e Eslovénia. Os 10 países membros da União Europeia que não participam na zona euro são: Bulgária, Croácia, Dinamarca, Hungria, Lituânia, Polónia, República Checa, Roménia, Reino Unido e Suécia. produziram efeitos similares, entre os quais a fuga para o estrangeiro de uma quantidade considerável de depósitos bancários gregos. Após as eleições parlamentares e a formação de um novo governo em 2015, voltaram a registar-se declarações do mesmo calibre, com consequências análogas.
Resulta destas observações que, sempre que um país é alvo de acções que se sabe de antemão serem nocivas para a sua economia (em particular em benefício dos credores) e para as condições de vida do seu povo, ele pode recorrer a contra-medidas. A Grécia tem por conseguinte o direito de recorrer a contra-medidas, designadamente o repúdio das dívidas decorrentes dos acordos de empréstimo e memorandos de acordo de 2010.
Com efeito, segundo o direito internacional consuetudinário e os artigos 49.º e seguintes sobre a responsabilidade do Estado por feito internacionalmente ilícito, um Estado lesado pode não satisfazer uma obrigação internacional que normalmente o ebrigaria face a outro Estado (responsável) se esse outro Estado tiver cometido um acto internacionalmente ilícito. A violação cometida pelo Estado lesado tem como fim incitar o Estado responsável a cumprir as suas obrigações.
7. A ausência de enriquecimento sem causa
A má-fé, a procura de interesses pessoais, a ausência de legalidade e os efeitos danosos sobre a economia e sobre os meios de subsistência do povo são outros tantos factores que tornam a parte da dívida em causa odiosa, ilegal ou ilegítima. Uma vez que povo grego não obteve vantagens injustas ou qualquer outro benefício – antes pelo contrário – da acumulação da dívida, a Grécia não tem obrigação alguma de reembolsar a parte do capital inicial considerada odiosa, ilegal ou ilegítima, a título de enriquecimento sem causa. [12] O mesmo se pode dizer dos juros (simples ou compostos) sobre um capital odioso, ilegal ou ilegítimo, sob a forma de empréstimos, seguros ou outro. O argumento que refuta a existência de um enriquecimento sem causa é reforçado pelo facto de, apesar de a Grécia ter produzido um excedente e drasticamente reduzido as despesas públicas, a sua dívida continuar a aumentar.
1. A suspensão unilateral fundada sobre o estado de necessidade
A definição da necessidade está prevista no artigo 25.º do projecto de artigos da CDI e foi utilizada e reconhecida pelos tribunais internacionais. [13] Como se explica no comentário ao artigo 25.º, «a expressão “estado de necessidade” é utilizada para designar os casos excepcionais nos quais o único meio que um Estado tem de salvaguardar um interesse essencial ameaçado por perigo grave e iminente é, momentaneamente, a não execução duma obrigação internacional cujo peso ou urgência é menor». [14] Segundo o artigo 25.º, quatro condições são necessárias para invocar o estado de necessidade. O caso da Grécia satisfaz os quatro critérios. A Grécia pode portanto suspender o reembolso da parte insustentável da sua dívida.
a) A medida deve proteger um interesse essencial do Estado contra um perigo grave e iminente
No processo Socobel, [15] o conselho do governo grego, M. Youpis, afirmou, com razão, que «a doutrina admite a este propósito que o dever de um governo de assegurar o bom funcionamento dos seus serviços públicos tem primado sobre o de pagar as suas dívidas. Nenhum Estado está obrigado a executar, ou a executar por inteiro, os seus compromissos pecuniários se isso comprometer o funcionamento dos seus serviços públicos e resultar na desorganização administrativa do país. No caso de o pagamento da dívida pôr em perigo a vida económica ou comprometer a administração pública, o governo fica, na opinião dos autores, autorizado a suspender ou mesmo reduzir o serviço da dívida. [16] O conselho do Governo belga de responder que «num sábio estudo […], M. Youpis expôs ontem que um Estado não é obrigado a pagar a sua dívida se, ao pagá-la, comprometer serviços públicos essenciais. Sobre o princípio assim enunciado o Governo belga estaria de acordo sem qualquer dúvida».
No caso LG&E, um tribunal do Centro Internacional para a Resolução de Diferendos relativos a Investimentos (CIRDI) [17] concordou neste parecer, considerando que os interesses económicos e financeiros também também ser considerados interesses essenciais. [18] A este respeito o tribunal avançou vários elementos socioeconómicos que permitiram à Argentina invocar legalmente o estado de necessidade, [19] entre os quais os seguintes:
No caso Continental, um tribunal do CIRDI teve a mesma opinião e apresentou um conjunto semelhante de factores concretos:
«Na opinião deste Tribunal, é impossível negar que uma crise que acarretou o abandono súbito e desordenado do princípio cardeal da vida económica, como seja […] o quase colapso da economia nacional; as privações sociais que levaram metade da população abaixo do limiar de pobreza; as ameaças imediatas contra a saúde das crianças, das pessoas doentes e dos membros mais vulneráveis da população […], tudo somado [constitui] uma situação na qual a manutenção da ordem pública e a protecção dos interesses essenciais em matéria de segurança da Argentina enquanto Estado e enquanto país estavam postos em causa de maneira crucial.» [20]
Como se demonstrou nos capítulos 5, 6 e 7 do presente relatório, é manifesto que os interesses essenciais da Grécia estão igualmente ameaçados de perigo iminente.
b) A medida deve ser o único meio de proteger o interesse essencial em questão
Resulta claramente dos comentários ao projecto de artigos sobre a responsabilidade do Estado que o Estado pode tomar várias medidas; a expressão «único meio» não deve ser entendida literalmente. No caso LG&E, o tribunal entendeu que um Estado pode ter várias soluções à sua disposição para manter a ordem pública e proteger os seus interesses essenciais em matéria de segurança. No que diz respeito à situação grega, parece evidente que o não pagamento da dívida seria o único meio de proteger o interesse essencial em causa. Como ficou duramente demonstrado, a violação dos direitos humanos está estreitamente ligada às condições económicas e sociais, resultantes de uma crise da dívida. Nos últimos cinco anos, a maior parte dos actores económicos internacionais entendeu que as medidas aplicadas eram então o único meio de evitar à Grécia o incumprimento dos pagamentos, e continuam ainda hoje a entender assim. Isto significa que aos olhos dos credores da Grécia apenas existem duas opções: aplicar medidas de austeridade ou entrar em incumprimento de pagamento. O incumprimento prejudicaria os interesses dos bancos. Como essas medidas de austeridade provocaram directamente violações graves e flagrantes dos direitos humanos e puseram em perigo interesses essenciais da Grécia, é evidente que a suspensão do reembolso da dívida constitui a única solução à qual a Grécia pode recorrer para proteger os interesses em causa.
c) A medida não deve implicar violação grave de um interesse essencial do Estado ou dos Estados em relação aos quais exista a obrigação ou da comunidade internacional no seu conjunto
Esta condição significa que o interesse dos outros Estados ameaçados pelo não reembolso deve ser considerado secundário em relação ao interesse do primeiro Estado. No caso da Grécia, como mostrámos no presente relatório, as consequências para os credores da Grécia são pouco importantes e não podem em caso algum ser entendidas como interesses essenciais.
d) O Estado não deve ter contribuído para a criação do estado de necessidade e a obrigação internacional em questão não deve excluir a possibilidade de invocar o estado de necessidade
O comentário do artigo 25.º enuncia claramente que a contribuição do Estado em causa para a situação de necessidade tem de ser «substancial e não apenas acessória ou secundária». [21] No caso da Grécia, é evidente que a Troika
Troika
A Troika é uma expressão de apodo popular que designa a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional.
é a primeira responsável pelo desastre económico e social que se abateu sobre o país. Como mostrámos, a margem de apreciação de que a Grécia dispunha era particularmente estreita e não lhe permitia pôr em prática o mínimo programa económico e social. Mostrámos que a Grécia foi obrigada a aceitar condições impostas, por meio de pressões políticas e económicas exercidas principalmente por dois dos países mais importantes da UE, a França e a Alemanha. Neste contexto, não se pode considerar que a Grécia tenha contribuído substancialmente para a situação criada.
3. O direito à insolvabilidade soberana unilateral
Não existe no direito internacional uma regra que proíba os Estados de se declararem insolventes de modo unilateral. Isto é particularmente verdadeiro quando o Estado se encontra de facto insolvente, seja por a sua dívida ser insustentável, seja por já não poder satisfazer as necessidades fundamentais da sua população. A prática dos Estados que de facto entraram em incumprimento permite confirmar este direito à insolvabilidade. A insolvabilidade soberana não foi objecto de grandes atenções do direito internacional, embora esteja bem documentada e seja prática frequente no início do século XX. [22] Este direito à insolvabilidade unilateral é corroborado pelo grupo de estudo sobre insolvabilidade soberana da Associação de Direito Internacional (ADI), cujo relatório de 2010 propões quatro vias para uma reestruturação da dívida, sendo uma delas o incumprimento. Em 2013, dois grupos de trabalho retomaram esta questão; um deles estudou a possibilidade de regular através de um tratado os problemas ligados à reestruturação da dívida soberana Dívida soberana Dívida de um Estado ou garantida por um Estado. . [23] A insolvabilidade soberana é portanto uma realidade em direito internacional que é reconhecida tanto em teoria como na prática, apesar de uma resistência tenaz devida à protecção dos bens dos estados insolventes, por meio de imunidades e privilégios soberanos, contra a gula dos credores. Por conseguinte a reestruturação da dívida, caso não esteja associada à insolvabilidade, é um mecanismo artificial que permite aos credores explorar os recursos do Estado, nomeadamente os impostos, os direitos alfandegários, os recursos naturais, as patentes autorais, as privatizações forçadas, etc. A ideia de a Grécia se declarar unilateralmente insolvente é combatida pelos seus credores com medidas coercivas unilaterais. Embora fosse benéfico para o país se a Grécia se declarasse insolvência, os seus credores continuaram a alimentar a sua dívida insustentável, prolongando assim efectivamente a insustentabilidade da dívida.
Se um Estado tem o direito de se declarar insolvente, torna-se evidente que a insolvabilidade unilateral constitui uma circunstância que exclui a ilicitude das obrigações internacionais do devedor, ou seja, a obrigação de reembolsar. Conforme se explicou mais acima, este é manifestamente o caso da Grécia, uma vez que é possível demonstrar a existência de um estado de necessidade conforme ao artigo 25.º do projecto de artigos da CDI. Seria inconcebível que um tribunal obrigasse uma pessoa a reembolsar a sua dívida se os seus rendimentos não lhe permitirem satisfazer as necessidades elementares dela e da sua família.
Estas observações concordam com o julgamento efectuado pelo CIRDI no caso Postova Banka AS et Istrokapital SE v Grécia, onde se constata que não existe garantia de reembolso duma dívida soberana. [24]
Tradução do francês para português de Rui Viana Pereira.
[1] A Comissão para a Verdade sobre a Dívida Pública é uma comissão independente, criada por iniciativa da presidente do Parlamento grego, Zoe Konstantopoulou. É presidida por Zoe Konstantopoulou, tem como coordenador científico o professor Eric Toussaint e a deputada Sofia Sakorafa tem o encargo das relações com o Parlamento europeu e outros parlamentos e instituições. Fazem parte da Comissão membros gregos, a par de membros vindos de outros países. Na sua maioria são reconhecidos a nível internacional pela sua competência e experiência nos domínios da auditoria, da dívida pública, da protecção dos direitos humanos, do direito internacional, da macroeconomia, da luta contra a corrupção e pelas garantias de transparência que dão; outros trazem a experiência preciosa dos movimentos sociais, a nível local ou internacional.
[2] Ver a Síntese do Relatório da Comissão para a Verdade sobre a Dívida Pública grega. Ver também a conferência de imprensa de encerramento no Parlamento grego.
[3] Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, versão portuguesa: http://www.gddc.pt/siii/docs/rar67-2003.pdf
[4] «Responsabilidade dos Estados por Actos Internacionais Ilícitos», texto adoptado em 2001 pela Comissão de Direito Internacional e recomendado pela Assembleia Geral da ONU, em 2001 e 2004, à atenção e comentário dos Estados. (N. do T.)
[5] Robert Howse, The Concept of Odious Debt in Public International Law, documento de análise da CNUCED n°185 (julho-2007).
[6] Dado que as convenções entre a Grécia e os seus credores, do ponto de vita formal, não são tratados, a Convenção de Viena sobre o direito dos tratados não se aplica oficialmente. No entanto fazemos-lhe aqui referência, pois a maioria das disposições contidas naquelas convenções reflectem princípios gerais que regem os acordos entre entidades estatais.
[7] Entre as muitas e variadas fontes, Bedjaoui, que foi relator da CDI sobre a Convenção de Viena para as questões da propriedade, dos arquivos e das dívidas do Estado, e cuja opinião é por isso decisiva, faz notar que uma dívida é considerada odiosa se o Estado devedor a contraiu «com um fim e com objectivos não conformes ao direito internacional» (Mohammed Bedjaoui, Neuvième rapport sur la succession d’États dans les matières autres que les traités. A/CN.4/301, 1977, publicado no anuário da CDI, p. 74, http://legal.un.org/ilc/documentation/french/a_cn4_301.pdf).
[8] Art. 32.º da Carta dos Direitos e Deveres Económicos dos Estados (resolução 3881 da Assembleia Geral da ONU (XXIX), 12/dezembro/1974); Declaração Relativa aos Princípios do Direito Internacional no tocante às relações amigáveis e à cooperação entre Estados, resolução 2625 da Assembleia Geral da ONU (XXV), 24/outubro/1970; Declaração sobre a Inadmissibilidade da Intervenção nos Assuntos Internos dos Estados e a Protecção da Sua Independência e Soberania, resolução 2131 da Assembleia Geral (XX), 21/dezembro/1965. Além disso, a Acta final da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados contém uma declaração, inicialmente porposta pela Holanda (em reacção a um pedido dos países em desenvolvimento para que se considerasse como «coerção» um consentimento a estar obrigado por um tratado concluído sob pressões económicas), que afirma o seguinte: «A Conferência das Nações Unidas sobre o Direito dos Tratados […] condena solenemente o recurso à ameaça ou o emprego de todas as formas de pressão, militar, política ou económica, venha ela de que Estado vier, com vista a forçar um outro Estado a cumprir qualquer acto ligado à conclusão de um tratado, violando os princípios da igualdade soberana dos Estados e da liberdade de consentimento.» (Artigo 49.º, Capítulo II, Examen pela comissão plenária do projecto de artigos sobre o Direito dos Tratados, p. 187, http://legal.un.org/diplomaticconferences/lawoftreaties-1969/vol/french/confdocs.pdf, Projecto de Declaração sobre a Interdição do Recurso à Ameaça ou ao Emprego da Coacção Económica ou Política aquando da Conclusão de um Tratado, adoptado pela conferência plenária das Nações Unidas sem voto formal; Conferência das Nações Unidas sobre o direito dos tratados, Viena, Áustria, Segunda Sessão, 9/abril-22/maio/1969).
[9] O mesmo vale como princípio geral do direito contratual. Na common law, por exemplo, a coerção pode tornar nulo um contrato, se a pressão exercida for ilegítima, o que depende da natureza da ameaça e da exigência. Universe Tankships Inc of Monrovia v International Transport Workers Federation, [1983] 1 AC 366.
[10] Um aspecto, entre outros, é, por exemplo, a capacidade dos Estados e das instituições credoras de suscitarem um sentimento de medo nos mercados e portanto forçarem as notações de crédito a baixarem, assim como encorajar os indivíduos a retirar as suas poupanças e a depositar em bancos estrangeiros (geralmente em território dos credores) ou a investirem em imobiliário nos países credores.
[11] Ver os artigos 49-50.º sobre a responsabilidade do Estado por actos internacionais ilícitos.
[12] R. Howse, op. cit., p. 22.
[13] CIJ, 25-setembro-1997, Gabcíkovo-Nagymaros Project; BVerfG, 2 BvR 120/03 of 4/5/2006; Conselho de Estado (França), 23-outubro-1987, Société Nachfolger navigation company; decisão sobre pedido de anulação Enron v. Argentina, 30-julho-2010, processo CIRDI n.° ARB/01/3 §356; decisão sobre o pedido de anulação Sempra v. Argentina, 29-junho-2010, processo CIRDI n.° ARB/02/16; LG&E v. Argentina, 3-outubro-2006, pasta CIRDI n.° ARB/02/1; Continental v. Argentina, 5-setembro-2008, processo CIRDI n.° ARB 03/9.
[14] Projecto de artigos sobre a responsabilidade do Estado por factos internacional ilícito e respectivos comentários, 2001. Disponível em pdf.
[15] Société Commerciale de Belgique, (1939) PCIJ Ser A/B, n° 78.
[16] Citado por R. Ago, Additif au huitième rapport sur la responsabilité des États, A/CN.4/318/ADD.5-7.
[17] O CIRDI é uma das cinco instituições do Grupo do Banco Mundial, criada em 1966 pela Convenção para a Resolução de Diferendos relativos a Investimentos entre Estados e Nacionais de Outros Estados. A finalidade do Centro é proporcionar os meios de conciliação e arbitragem dos diferendos relativos a investimentos entre Estados contratantes e nacionais de outros Estados contratantes. Em Portugal encontramo-lo reconhecido no DR n.º 79, I Série, de 03/04/1984 . (N. do T.)
[18] LG&E Energy Corp and Others v Argentina, julgamento efectuado pelo CIRDI (25/07/2007), par. 251.
[19] Ibid., par. 234.
[20] Continental Casualty Company v Argentina (ARB/03/9), sentença lavrada pelo CIRDI (5/09/2008), par. 180.
[21] Comentário 21, p. 220, http://legal.un.org/ilc/texts/instruments/francais/commentaires/9_6_2001_francais.pdf.
[22] M. Waibel, Sovereign Defaults before International Courts and Tribunals (Cambridge University Press, 2011), 3-19.
[23] R. Lastra, L. Buchheit (eds.), Sovereign Debt Management (Oxford University Press, 2014), xx-xxiii.
[24] Postova Banka AS et Istrokapital SE v Grécia, sentença lavrada pelo CIRDI (9/abril/2015), paras 324.
29 de Dezembro de 2015, por Commission pour la vérité sur la dette grecque
18 de Junho de 2015, por Commission pour la vérité sur la dette grecque