À la Cumbre de los pueblos, VUB, Bruxelles, juillet 2023 :

Entrevista Especial com Fernanda Melchionna Sobre a Auditoria da Dívida Pública Brasileira

Deputada Federal pelo PSOL, madrinha da Frente Parlamentar sobre o Limite dos Juros e a Auditoria Integral da Dívida Pública com Participação Popular

19 de Agosto de 2023 por Eric Toussaint , Fernanda Melchionna , Anne Theisen


Fernanda Melchionna, membro do partido de esquerda PSOL e deputada federal no Congresso brasileiro, madrinha da auditoria da dívida ilegítima do Brasil, foi convidada pelo CADTM para falar em um workshop intitulado «A crise internacional deixa o capitalismo sem fôlego», na Cumbre de los Pueblos, em Bruxelas, em julho de 2023. Ela gentilmente concordou em responder às perguntas de Éric Toussaint, porta-voz do CADTM, em uma entrevista especial após sua apresentação pública na Universidade de Bruxelas.



Éric Toussaint: Qual é a situação da dívida pública Dívida pública Conjunto dos empréstimos contraídos pelo Estado, autarquias e empresas públicas e organizações de segurança social. externa e da dívida pública interna do Brasil?

Fernanda Melchionna: A situação da dívida no Brasil é gravíssima. Atualmente o sistema da dívida consome cerca da metade do orçamento público brasileiro para pagamento de juros e amortizações, e segue crescendo. Em 2022, o valor gasto com o sistema da dívida foi de 1,879 trilhão, 46,3% do orçamento da União. Ou seja, em um país tão desigual, no qual mais de 70 milhões de pessoas sofrem com a fome e a insegurança alimentar, quase metade do orçamento federal, que é riqueza social produzida pelos trabalhadores, tem sido utilizado para financiar os parasitas do sistema financeiro.

Segundo dados da Auditoria Cidadã da Dívida, em junho a Dívida Pública Federal Interna é de 8,2 trilhões de reais.
Já a dívida externa brasileira, que inclui a dívida dos governos federal, estadual, municipal e do setor privado, soma 595 bilhões de dólares (aproximadamente 2.8 trilhões de reais).

A dívida externa brasileira, que explodiu durante a Ditadura Militar, aumentando mais de 30 vezes, foi em grande medida convertida para dívida interna durante os primeiros governos petistas, a partir de 2003. O governo na época contraiu empréstimos com bancos nacionais para pagar credores internacionais, sem questionamentos das ilegalidades das dívidas anteriores. Isso fez com que o Brasil internalizasse a dívida, agora remunerada por taxas de juros ainda maiores, e mantivesse o compromisso de pagamento de juros altíssimos ao sistema da dívida, fazendo superávit primário para isso.

ET: Os bancos privados brasileiros e para os capitalistas que compram títulos internos, não é mesmo?

Fernanda Melchionna:É um belíssimo negócio para os capitalistas e uma tragédia para o povo. O Brasil tem os maiores juros do mundo, com a taxa Selic em 13,75%. A cada 1% que aumenta a taxa de juros são 40 bilhões mensais a mais para o escandaloso sistema da dívida. Isso gera lucros astronômicos tanto para os banqueiros nacionais quanto para especuladores e parasitas do sistema financeiro internacional, que muitas vezes recorrem a empréstimos a preços menores em outros países, para comprar títulos da dívida brasileira e lucrar com os juros daqui.

Enquanto isso, na outra ponta da balança, as famílias trabalhadoras são levadas a uma espiral de endividamento da qual tem muita dificuldade de sair, devido aos juros exorbitantes. Os juros do crédito rotativo do cartão, por exemplo, chegam a ultrapassar os 400% ao ano, de maneira que uma dívida simples pode se tornar algo impagável em pouco tempo.

ET: Lula mudou alguma coisa para melhor em relação ao governo Bolsonaro no que diz respeito à dívida?

Fernanda Melchionna: Infelizmente não. A eleição de Lula foi fundamental para assegurar liberdades democráticas para respirar e lutar. Evitamos a catástrofe que seria a continuidade do governo de Bolsonaro, que poderia ter significado um fechamento do regime por dentro do sistema político. Por isso, definimos a eleição de 2022 como a mais importante desde 1985. Mas sabíamos da necessidade de manter a independência política frente a um governo com partidos burgueses, um governo de conciliação de classes Para pactuar com as elites econômicas tem produzido políticas econômicas pró-mercado e antipopulares. Foi assim com oArcabouço Fiscal, que limitou os gastos primários, comprometendo a ampliação dos investimentos em saúde, educação, gastos sociais, serviços públicos e outras áreas essenciais. Ao manter a lógica do teto de gastos de Temer e Bolsonaro, o Arcabouço de Lula e Haddad deixou intocado o sistema da dívida, sem qualquer limite para o pagamento dos juros e amortizações que consomem de maneira ilegítima o orçamento público.

O PT em sua origem criticou e combateu a dívida externa. No ano 2000 participou ativamente do plebiscito no qual 95% dos quase seis milhões de votantes condenaram a dívida externa. Porém, ao assumir o governo em 2003, Lula e o PT optaram pela pactuação com o mercado e manutenção dos princípios econômicos de FHC, com a Carta ao Povo Brasileiro, a Reforma da previdência e outras medidas de teor neoliberal. Dilma, que teve a oportunidade de sancionar a auditoria da dívida prevista no Plano Plurianual de 2016, vetou a proposta.

Após o golpe parlamentar contra Dilma em 2016, Temer trouxe o famigerado teto de gastos, na época chamado de PEC da Morte, que estrangulava todo o funcionamento do Estado Brasileiro para, entre outras coisas, seguir remunerando o capital rentista. Para “economizar” para pagar os rentistas, Bolsonaro fez uma reforma da previdência que retirou milhões de pessoas da previdência social e rebaixou o valor das aposentadorias no país. O arcabouço fiscal do governo Lula, mantém a lógica do Teto, com limite de investimento para as áreas sociais para seguir remunerando os rentistas nacionais e internacionais.

ET: Lula defende a independência do Banco Central Banco central Estabelecimento que, num Estado, tem a seu cargo em geral a emissão de papel-moeda e o controlo do volume de dinheiro e de crédito. Em Portugal, como em vários outros países da zona euro, é o banco central que assume esse papel, sob controlo do Banco Central Europeu (BCE). ?

Fernanda Melchionna: Lula criticou a autonomia do Banco Central, mas não fez um chamado à luta política por sua revogação.

A impossibilidade de troca da presidência do BC, chamada de autonomia do BC, foi votada de maneira absurda, através de uma sessão virtual durante a pandemia. Quem presidia a Câmara e operou essa aprovação foi Arthur Lira, ainda durante o governo Bolsonaro.

Lira, aliás, foi peça chave para a sustentação do governo genocida de Bolsonaro, e em 2023, para a sua recondução à presidência da Câmara, foi apoiado por quase todos os partidos, inclusive o PT. O PSOL enfrentou e votou contra.

Essa suposta autonomia do Banco Central é na realidade uma captura da política monetária pelo sistema financeiro. Não basta Lula se pronunciar contra mas não tomar medidas concretas, mandar uma lei para revogar essa autonomia, chamar a população a se mobilizar. Para que o governo volte a ter controle da política monetária é preciso apostar na mobilização, 80% do povo é a favor da redução da taxa de juros. Lula tem apostado em atender interesses da burguesia com o arcabouço e a reforma tributária, e de setores fisiológicos da política, que estavam com o governo Bolsonaro e agora estão sendo cobiçados para entrar no governo Lula, como Lira e o PP, e partidos como Republicanos.

ET: O esta acontecendo com a dívida das classes trabalhadoras? Com as altas taxas de juros, a situação deve estar muito difícil.

Fernanda Melchionna: As trabalhadoras e trabalhadores estão cada vez mais endividados no Brasil. A oferta de crédito a juros abusivos somada a fatores como salário mínimo de R$1.320, aumento da informalidade, uberização e precarização dos vínculos trabalhistas, arrocho salarial do funcionalismo público e desemprego, produz um problema de endividamento crescente.

78,3% das famílias brasileiras estão endividadas, segundo dados da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) de fevereiro deste ano, um número maior que no mesmo mês do ano anterior. Quase 30% dessas famílias com dívidas têm pagamentos atrasados, e 11,6% declararam não conseguir pagar as contas em atraso.

Os juros médios cobrados pelos bancos no rotativo do cartão de crédito somam 409,3% ao ano. E é o cartão o principal meio crédito para para 85,7% das famílias endividadas.

Esse é o preço, cada vez mais alto, que as classes trabalhadoras brasileiras, grande maioria da população, têm pago para remunerar os juros de uma ínfima minoria de especuladores nacionais e estrangeiros.

ET: Qual a importância da auditoria cidadã da dívida liderada por Maria Lúcia Fattorelli?

Fernanda Melchionna: A Auditoria Cidadã tem há anos um papel fundamental na política nacional. A iniciativa se formou na esteira do plebiscito do ano 2000, que teve ampla maioria contra a dívida externa, com enraizamento em sindicatos e organizações da classe. A Auditoria tem travado uma luta fundamental, desmontando esse sistema da Dívida Pública, desvelando as falácias da burguesia brasileira e as capitulações dos que não tocam nesse aspecto central da vida nacional.

Durante os últimos anos, nos governos de Temer, Bolsonaro, e na própria transição ao Governo Lula, esse grupo, com Maria Lúcia e toda a equipe de coordenadores, se manteve combativo e com contribuições decisivas para o debate nacional e internacional, enfrentando o teto de gastos, a reforma da previdência e o arcabouço fiscal.

No âmbito internacional, para citar um caso, lembro a auditoria da dívida do Equador, em que Maria Lucia Fattorelli, da Auditoria Cidadã, Eric toussaint, coordenador da Cadtm, dentre outros colaboradores, chegaram a um resultado que reduziu em 70% o montante a ser pago pelo país.

ET: Você está participando do lançamento de uma frente parlamentar para a auditoria da dívida?

Fernanda Melchionna: Nós queremos que o debate sobre a auditoria da dívida e o limite da taxa de juros seja trabalhado de forma permanente na Câmara dos Deputados, junto com os movimentos sociais e de modo que contribua para articular a setores da sociedade. Por isso, estamos batalhando pela criação dessa frente social e política para uma auditoria cidadã da dívida e pelo limite da taxa de juros.

São necessárias as assinaturas de 198 deputados, mais de um terço da casa. Até o momento, desde o início do ano, 171 assinaram, faltam 27 para que a Frente seja implementada. Fui convidada pela Auditoria Cidadã para ser madrinha e porta-voz dessa Frente Parlamentar, o que me dá muito orgulho e certamente trará desafios para seguir essa luta dentro da Câmara e, sobretudo, fora dela.

ET: Você anunciou sua intenção de participar na contra cúpula convocada entre outros pela rede internacional CADTM e pela ATTAC CADTM Marrocos. Que importância atribui a esta contra-cimeira, que terá lugar em Marraquexe do 12 ao 15 de outubro de 2023?

Fernanda Melchionna:Eu considero fundamental essa contra-cimeira. Uma oportunidade para encontrar ativistas, lideranças e entidades que cumprem, organizados pela CADTM, o papel de denúncia dessas dívidas ilegítimas e ilegais. Dívidas que têm sido um mecanismo de exploração e interferência na política de mais de 100 países . Trata-se de um esquema criminoso para defender interesses do imperialismo e banqueiros internacionais, e que foi potencializado pela pandemia, a invasão da Ucrânia, entre outros fatores que adicionam dificuldades econômicas para os países.

Quem paga por esse sistema de privilégios para bancos, pela ingerência nos países do Banco Mundial e FMI, é a população, que cada vez mais é vítima de medidas de austeridade, retirada de direitos e superexploração, como as reformas trabalhistas, da previdência, entre outras. Portanto, esse encontro tem uma importância estratégica. Me somo ao chamado para os ativistas da esquerda mundial, em especial do chamado terceiro mundo, a participarem para defender a soberania dos povos e lutar pela anulação das odiosas dívidas.


Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

-https://www.cadtm.org/Cumbre-de-los-Pueblos-Una-nueva-crisis-internacional-deja-al-capitalismo-sin

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