9 de Novembro de 2015 por Eric Toussaint , Mimi Podkrižnik
Entrevista com o professor Eric Toussaint, na sua passagem por Ljubljana a convite dos sindicatos eslovenos para participar numa mesa redonda intitulada: «Dívida pública: quem deve a quem?».
Por Mimi Podkrižnik, journalista do periódico esloveno Delo.
Acreditou no projecto europeu? Continua a acreditar?
Claramente: não. O projecto europeu transformou-se numa camisa de forças para os povos. Não há margem de manobra que permita a um governo eleito democraticamente aplicar políticas que respeitem ao mesmo tempo o interesse geral e as regras europeias. Os vários tratados europeus e a arquitectura europeia – o Parlamento europeu, a Comissão Europeia (CE), os governos nacionais e o Banco Central
Banco central
Estabelecimento que, num Estado, tem a seu cargo em geral a emissão de papel-moeda e o controlo do volume de dinheiro e de crédito. Em Portugal, como em vários outros países da zona euro, é o banco central que assume esse papel, sob controlo do Banco Central Europeu (BCE).
Europeu (BCE
Banco central europeu
BCE
O Banco Central Europeu é uma instituição europeia sediada em Francoforte e criada em 1998. Os países da zona euro transferiram para o BCE as suas competências em matéria monetária e o seu papel oficial de assegurar a estabilidade dos preços (lutar contra a inflação) em toda a zona. Os seus três órgãos de decisão (o conselho de governadores, o directório e o conselho geral) são todos eles compostos por governadores dos bancos centrais dos países membros ou por especialistas «reconhecidos». Segundo os estatutos, pretende ser «independente» politicamente, mas é directamente influenciado pelo mundo financeiro.
) – formam um quadro extremamente hierarquizado que asfixia cada vez mais o exercício da autonomia, e por consequência, a democracia e a expressão da vontade dos povos. O caso da Grécia é prova disso. Em janeiro de 2015 o povo grego levou ao poder um governo que apresentou um programa de ruptura com políticas que tinham falhado completamente. O mesmo povo reafirmou a rejeição das políticas de austeridade no referendo de 5 de julho de 2015. A resposta das estruturas europeias foi uma obstinação exacerbada em impedir que a vontade popular se concretize. Isto foi claramente afirmado. São conhecidas as declarações de Jean-Claude Junker: não pode haver referendos. Segundo os dirigentes europeus, não há lugar para as populações se pronunciarem sobre as políticas europeias – a via está traçada, ponto final.
Porquê? Estaremos condenados a um círculo vicioso?
A própria construção da Europa – a adesão aos tratados e uma concepção muito autocrática do funcionamento das instituições – visa restringir o mais possível o funcionamento democrático. Por outro lado, as grandes empresas privadas exercem um lobby muito poderoso sobre a Comissão e o Parlamento europeus, para defenderem os seus interesses privados. À cabeça do BCE encontramos Mario Draghi que foi um dos estrategas do Goldman Sachs para toda a Europa. É uma situação emblemática, com as grandes empresas privadas europeias a colocarem em posições de poder pessoas da sua confiança, ou a disporem do apoio total de chefes de Estado e altos funcionários que favorecem os seus interesses. Este sistema assemelha-se muito a uma oligarquia, na qual um punhado de pessoas impõe as suas decisões e aplica políticas ao serviço duma pequena minoria.
A esquerda também caiu na armadilha – basta ver o que se passa em França com a esquerda tradicional, os socialistas de François Hollande, ou a esquerda radical na Grécia, a nova esquerda de Alexis Tsipras.
Eu distingo a esquerda tradicional da esquerda radical; é preciso termos em conta que já não se pode falar de esquerda no caso de François Hollande ou de Tony Blair ou de Jeroen Dijsselbloem. Este último pertence ao partido socialista holandês, o que não o impediu de ser um dos mais activos obstáculos ao rumo do governo grego resultante das eleições de 25/janeiro/2015. Podemos arrumar esse tipo de partidos socialistas ao lado das forças conservadoras. Chamemos-lhes «neoliberais» ou «social-liberais». Nesses partidos continua a haver uma esquerda que procura exprimir-se: o Labour Party elegeu Jeremy Corbyn, contra a opinião de Tony Blair e Gordon Brown. Mas qual será a margem de manobra de Jeremy Corbyn? Esperemos para ver o que vai suceder no Labour Party. Seja como for, Jeremy Corbyn deixou claro que, se chegar a primeiro-ministro, o Reino Unido fará completamente marcha-atrás em tudo quanto foi feito por Margaret Thatcher e Tony Blair; declarou a intenção de voltar a nacionalizar os caminhos de ferro, o que significa que vai ainda mais longe do que Tsipras tinha prometido ... François Hollande, os socialistas holandeses, os socialistas alemães, todos os partidos socialistas votaram a favor de todos os tratados europeus, juntamente com o outro grande grupo parlamentar de direita: o Partido Popular. A conclusão é clara: estes socialistas são os arquitectos de tudo aquilo com que somos confrontados neste momento. Movimentos como o de Alexis Tsipras na Grécia ou do Podemos na Espanha e outras iniciativas semelhantes não participaram na construção dessa arquitectura.
Ainda não …
Eles não ocupam lugares de poder dentro da UE. Porque caíram eles no rumo que vimos na Grécia? Porque tinham a ilusão de que as estruturas do poder europeu lhes dariam uma margem de manobra. Eles pensavam que o falhanço das políticas aplicadas na Grécia era evidente, por ser reconhecido por tantos economistas sérios …
… por prémios Nobel …
Sim, eles pensavam que, em troca do seu sentido de responsabilidade, os dirigentes europeus e os dirigentes dos outros governos nacionais iriam dizer: ok, vamos deixar-vos seguir a vossa experiência, reduzir radicalmente as medidas de austeridade e tentar relançar um pouco a actividade económica na Grécia. Pois bem, enganaram-se. O cálculo estava completamente errado. Para os dirigentes europeus era fundamental demonstrar a todos os povos da Europa que não é possível sair dos carris da austeridade, que não é possível travar as privatizações. Para os dirigentes europeus – todos eles, quer se trate de Matteo Renzi ou François Hollande ou Wolfgang Schäuble ou Jeroen Dijsselboem – era essencial impedir o bom sucesso da experiência do Syriza na Grécia. Entre os mais furiosamente empenhados em fazer fracassar Tsipras encontramos, evidentemente, os primeiros-ministros Mariano Rajoy em Espanha e Passos Coelho em Portugal. Porque eles dizem com os seus botões: se Tsipras leva a sua avante, mais tarde ou mais cedo o Podemos chega ao poder em Espanha. E o mesmo vale para Portugal. Nenhum governo dos outros 28 países da UE deu a mais pequena hipótese ao governo grego; nem as instituições europeias nem um só governo. Ora é claro que Tsipras pensava: o governo de Matteo Renzi e o governo de François Hollande, que querem também eles um pouco mais de margem de manobra em termos de défice, vão apoiar-me. Pois bem, nada disso aconteceu.
As sondagens da opinião pública parecem indicar que o mal causado ao Syriza afectou o Podemos, cuja quota de popularidade caiu de 20% para 14% …
Os dirigentes europeus pretendem deixar uma mensagem ao povo espanhol – «não votem no Podemos» – e outra ao Podemos: «desistam da vossa intenção de mudar realmente as coisas; vejam como Tsipras acabou por capitular; e vocês, se tiverem alguma hipótese de vir a fazer parte de um governo, devem aceitar as regras».
O sr. faz uma distinção entre os países do centro da Europa e os países da periferia. A Eslovénia faz parte da periferia, tal como a Grécia e Portugal. No entanto notam-se algumas diferenças no discurso: Portugal é tratado como o bom aluno, no que diz respeito ao seu programa de governo e ao plano de ajuda da Troika Troika A Troika é uma expressão de apodo popular que designa a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional. , ao passo que a Grécia é fustigada.
Tal como se classifica a Irlanda de boa aluna. Mas a situação real é extremamente má em Portugal, na Irlanda e em Espanha. À luz dos critérios dos dirigentes europeus, são casos de sucesso, porque conseguiram pagar as suas dívidas sem pedir uma redução dos respectivos montantes. Mas tudo isso depende de taxas de juro Juro Quantia paga em retribuição de um investimento ou um empréstimo. O juro é calculado em função do montante do capital investido ou emprestado, da duração da operação e de uma taxa acordada. que são provisoriamente muito baixas. Todos os países europeus, incluindo a Eslovénia, refinanciam as suas dívidas a baixo custo, neste momento, mas não existe qualquer garantia de que esta situação se perpetue. Em Portugal e em Espanha as taxas de crescimento económico são muito baixas, as taxas de desemprego são muito altas, a situação dos bancos portugueses, irlandeses e espanhóis é muito má; vai ser preciso continuar a recapitalizá-los. Há um ano um dos principais bancos portugueses, o Espírito Santo, faliu. Na verdade, os grandes meios de comunicação e o governo europeu dão os parabéns a certos governos porque querem dizer: «olhem, os Gregos são maus alunos e por isso a vida corre-lhes mal; os outros, que aplicam bem as reformas, lá se vão desenrascando». Mas tudo isto é uma grande mistificação. O balanço real é muito diferente.
Entrámos no domínio da psicologia …
Vocês na Eslovénia estão numa situação um pouco surrealista. Se não estou enganado, a maioria da população eslovena, o governo esloveno e a comunicação social dominante consideram que vocês estão tão próximos do centro, das grandes potências – nomeadamente a Áustria e a Alemanha –, que estão a salvo; que, embora façam parte da periferia, já têm um pé no centro. E há mesmo quem pense que fazem definitivamente parte do centro. Vamos ver quanto tempo isso dura. A vossa dívida pública Dívida pública Conjunto dos empréstimos contraídos pelo Estado, autarquias e empresas públicas e organizações de segurança social. está prestes a explodir, por causa do resgate dos bancos, e isso não é coisa que possa ser resolvida a curto prazo. A Eslovénia não se encontra a salvo de dificuldades nos próximos dois ou três anos. E sobretudo a grande diferença entre a Eslovénia, a Alemanha e a Áustria é que a Eslovénia não faz parte do centro de poder europeu. Quem influencia a política da direcção europeia não é Ljubljana, mas sim Berlim, Paris, Londres e, em menor grau, Bruxelas e Amesterdão.
Como vê o papel dos meios de comunicação? Escreve-se de forma diferente sobre Portugal e sobre a Grécia. Existe muita manipulação e alguma emotividade. Dá-se mais atenção aos estilos do que aos conteúdos – como no caso de Yanis Varoufakis. Gasta-se tinta a falar de ninharias e cachecóis.
É claro que a Grécia e a população grega foram estigmatizadas. Comentadores que deveriam ser sérios chegaram a comentar que a Grécia não colectava impostos há séculos e que se tratava de uma herança do império otomano. É claro que existe evasão fiscal na Grécia …
… e corrupção. Faz parte dos Balcãs, diga-se de passagem …
Existe corrupção em toda a parte na Europa. Na FIFA, em todos os organismos … Mas há quem queira fazer crer que a corrupção é apanágio apenas de alguns países. Para esconder a grande corrupção, dá-se destaque a um pequeno país que é estigmatizado. O que a opinião pública eslovena não sabe é que um ministro da defesa grego, que aliás vem do Pasok [Akis Tsohatzopoulos], foi condenado em 2013 a 20 anos de prisão por corrupção. Está encarcerado juntamente com cinco membros da sua família. Mas disso ninguém fala. Ora bem, quantos ministros europeus estão na prisão? Parece-me que certos ministros ou ex-ministros eslovenos deveriam estar na prisão, mas não estão, não foram condenados. Na Grécia há processos em tribunal por corrupção e condenações: existe um processo em curso contra 69 gregos implicados numa grande operação de corrupção em que está envolvida a multinacional Siemens e haverá mais condenações nos meses que se avizinham.
Sim, a Grécia tem graves problemas de corrupção e de colecta de impostos, mas esse problema é comum na Europa. Em toda a Europa as grandes empresas e um punhado de europeus muito ricos conseguiram obter benefícios fiscais. Os Estados procuram compensar essa perda de receitas fiscais recorrendo ao endividamento público. Junte-se a isso a evasão fiscal, por exemplo o caso do banco HSBC, ou o caso Luxleaks, que envolve directamente Juncker. Não esqueçamos que Draghi esteve directamente implicado num escândalo de adulteração das contas públicas gregas em 2001-2002 … Temos um grande problema na Europa, tal como nos EUA: existem grandes empresas, designadamente grandes bancos, que são sistematicamente declarados culpados em tribunal, por fraude e corrupção. As medidas aplicadas na Europa contra esses casos são extremamente fracas.
Ninguém se dá como responsável nem culpado.
As instituições europeias, a Comissão europeia, os governos dos principais Estados poderiam adoptar medidas duras para impedir a evasão fiscal – que é massiva e que causa prejuízo sobretudo às economias mais fracas. Os ricos dos países da periferia europeia colocam o seu dinheiro nos países mais seguros, no Luxemburgo, na Alemanha, na Áustria, na Bélgica, na City de Londres. Os responsáveis europeus têm à sua disposição os meios adequados para tomar medidas, mas não querem fazê-lo.
Será possível que um dia alguém seja presente à justiça?
Não estou optimista, sobretudo a curto prazo. Não acredito que esses personagens sejam colocados perante a justiça, nem que sejam condenados, embora o seu comportamento mereça o escrutínio dos tribunais. O que pode acontecer de positivo é que se tirem lições do que aconteceu na Grécia e que as novas forças democráticas progressistas compreendam que têm de ser mais firmes, mais do que foi Tsipras; têm de estar dispostas, enquanto governos democraticamente eleitos, a desobedecer às ordens da Comissão Europeia e do BCE, se – como se viu no caso da Grécia – estas instituições quiserem aplicar medidas injustas para a economia dos países em causa.
A vaga de indignação já dura há algum tempo. Stéphane Hessel apelou à indignação há alguns anos. Assistimos ao nascimento dos Indignados em Espanha e à formação do Podemos, mas que ainda não produziu efeitos. Dá a impressão que estamos num impasse.
Esses movimentos são impulsionados por uma parte da população que procura respostas radicais. Foi por isso que Jeremy Corbyn, que não tinha qualquer influência institucional, ganhou dentro do Labour Party; é também por isso que Bernie Sanders nos EUA, que tem muito poucos recursos, encontra grande apoio nas bases do Partido Democrático, apesar de ser visto como um socialista radical. Há 20 anos quem ia de vento em popa eram Tony Blair e Gordon Brown, Clinton e Barack Obama … Agora são Sanders, Corbyn, Podemos. Porquê? Porque correspondem à vontade de uma parte da população que chegou ela própria à conclusão de que são necessárias políticas que tratem o mal pela raiz. Em certos casos, formações políticas como o Syriza e o Podemos tornam-se moderadas. Apesar de afirmarem que é preciso adoptar soluções radicais e colherem por isso o apoio popular, têm medo de pôr em prática essas soluções. Precisamos de um governo progressista que não tenha medo de desobedecer. O interessante na atitude de Stéphane Hessel era ele dizer às pessoas: quando aqueles que detêm o poder aplicam políticas basicamente injustas, coloca-se o dever da rebelião, da revolta, da desobediência. É importante que esta afirmação venha de uma pessoa que resistiu não só aos nazis, mas também ao regime de Vichy, à polícia francesa. Era preciso ter coragem para lutar contra a polícia do seu próprio país e contra o seu próprio governo, que era colaboracionista. É claro que hoje em dia não estamos na mesma situação; a Alemanha de Angela Merkel e de Wolfgang Schäuble não é a Alemanha nazi. Existe uma diferença enorme, mas é inegável que no contexto actual não existe espaço suficiente para exercer os direitos democráticos e por isso é preciso estar disposto a desobedecer e a revoltar-se. Espero que estas forças políticas o compreendam, senão vamos caminhar de decepção em decepção. O risco que corremos é o de ver a extrema direita crescer, com …
… Marine Le Pen em França …
… e Viktor Orbán na Hungria. É grande o risco de que a extrema direita acabe por ter figuras carismáticas e que, exercendo uma desobediência violenta dirigida contra os imigrantes, ela surja como uma alternativa credível aos olhos das populações. O perigo é real na Europa. Não é imediato, pode não se concretizar nos próximos um ou dois anos, mas existe.
Como vê o papel dos sindicatos? Salta à vista que no sector privado muitas fábricas fecharam portas. A classe operária está em vias de desaparecer.
É um pouco exagerado, mas sem dúvida assistimos a um enfraquecimento estrutural dos grandes sectores de assalariados. As concentrações de sectores assalariados reduziram-se em certos países ou mesmo em regiões inteiras da Europa. O movimento sindical perdeu a força numa série de países.
O sindicalismo caiu, pelo menos na Eslovénia, numa certa nostalgia, mas também – há que dizê-lo – na demagogia. O mundo está cheio de mudança, é preciso que os sindicatos acompanhem essa dinâmica.
Estou confiante que o movimento sindical terá a capacidade de redefinir uma doutrina coerente no novo contexto. Um dos grandes problemas na Europa é a existência duma confederação de sindicatos com, se não estou em erro, 60 milhões de associados. Mas essa confederação apoiou todos os tratados europeus, à excepção do último, que foi criticado pela confederação: o Tratado sobre a Estabilidade, Coordenação e Governação da União Económica e Europeia (TECG), informalmente conhecido como Pacto Orçamental Europeu [assinado por todos os membros da UE em 2012, com excepção do Reino Unido, da Croácia e da República Checa]. A confederação opôs-se, mas de maneira frouxa, sem mobilização. Apesar da redução das grandes concentrações industriais, ainda existe – com a Confederação europeia dos sindicatos, que reúne quase todos os sindicatos – um potencial muito considerável. Mas não passa de potencial. Na prática, a confederação deixou passar tudo, talvez acreditando que a UE lhe permitiria continuar a ter uma vida tranquila enquanto direcção sindical, num falso diálogo social. Na realidade, o objectivo dos dirigentes europeus não era outro senão a precarização do trabalho e a suspensão da contratação colectiva. A confederação europeia dos sindicatos compreendeu muito tardiamente o que está a acontecer e é incapaz de reagir, porque a sua enorme superstrutura carece de funcionamento democrático e sobretudo porque as direcções de alguns dos grandes sindicatos que integram a confederação se recusam a defrontar as políticas de ruptura social.
Qual é o papel das empresas de armamento, em relação à dívida pública e à crise migratória?
Não restam dúvidas de que as indústrias de armamento desempenham um papel muito importante: no caso grego, os maiores fornecedores de armas à Grécia são empresas alemãs, francesas e norte-americanas. Elas são responsáveis pela corrupção. Há pouco falei da condenação do ministro grego; ora ele deixou-se corromper pela Rheinmetall da Alemanha, pela Thales da França e pela Lockheed Martin dos EUA. São bem conhecidos as manobras e as principescas luvas destinadas a corromper os dirigentes políticos. Estamos a falar de negociatas no valor de centenas de milhões de euros. Assinale-se a preocupação de uma série de países europeus de desenvolver a sua industria de armamento – designadamente a Polónia que acaba de realizar uma grande feira internacional de armamento. O grande fluxo de refugiados vindos da Síria resulta da política europeia e norte-americana em relação ao Médio Oriente. Recordo a intervenção militar no Iraque, em 2003, que desestabilizou a região sem contribuir para a instituição da democracia, a intervenção na Líbia e por fim a política em relação à Síria. Tudo isto reforçou a Al-Qaida na Líbia e na zona circundante do Sudão e do Mali e favoreceu a criação do Estado Islâmico. Há fornecedores de armas que aprovisionam as diversas partes em conflito, alimentando assim a guerra. Tal como noutros momentos da História, há de facto uma relação entre a estratégia dos fornecedores de armas e o tipo de políticas aplicadas na resolução dos problemas noutras regiões do mundo. Essas políticas não servem os interesses dos povos; um dos seus efeitos mais desastrosos é o de lançar nas estradas centenas de milhares de pessoas, incluindo velhos e crianças, que são obrigadas a pedir asilo nos Estados dispostos a acolhê-los.
Recentemente a editora eslovena CF inseriu no livro sobre a dívida pública intitulado Quem Deve a Quem? uma fotografia de soldados alemães a içarem uma bandeira nazi na Acrópole de Atenas em 1941. Que pensa disso?
É uma mensagem muito forte que a editora quis transmitir. A intenção é a de provocar a reflexão e não deixar cair no esquecimento a história europeia. Não faz assim tanto tempo que as tropas de Mussolini, logo seguidas pelas tropas nazis, ocuparam a Grécia. A Grécia foi um dos países europeus mais martirizados, afectados e destruídos durante a Segunda Guerra Mundial, a par da União Soviética, da Polónia e em parte também da Jugoslávia. A Grécia continua a ter o direito de exigir indemnizações de guerra à Alemanha. Apoio-a nessa perspectiva. Essa fotografia deve fazer-nos reflectir. Não é uma caricatura, não foi posta debaixo dum capacete a cara de Wolfgang Schäuble ou de Angela Merkel. A fotografia não pretende afirmar que Angela Merkel se comporta como os nazis; mas funciona como uma chamada de atenção para a nossa história.
Parece-me que seria preciso mudar a retórica dos meios de comunicação social e deixar de falar em IV Reich, por exemplo. Um excesso de recordações pode impedir-nos de alcançar os nossos objectivos; mais vale moderar o discurso.
É evidente que não nos encontramos numa situação de domínio total e muito menos de domínio militar da Alemanha sobre o resto da Europa. Pelo contrário, vários governos nacionais ficam muito contentes quando Angela Merkel e Wolfgang Schäuble são apresentados como os maus da fita. Isto permite que Matteo Renzi e François Hollande digam: «São eles que nos impedem de fazer concessões.»
O problema actual na Europa não vem apenas da Alemanha, mas sim da arquitectura europeia. Para mudar a situação – se queremos verdadeiramente uma Europa democrática – é óbvia a necessidade de revogar uma série de tratados europeus. É urgente iniciar um processo constituinte ao nível europeu, um processo democrático que se traduza na eleição duma assembleia constituinte europeia participada por todos os povos da Europa. Em cada país da União Europeia deveriam também ser lançados processos nacionais para a elaboração colectiva e democrática de um novo projecto para a Europa. Podemos ir buscar inspiração à experiência da França no século XVIII, quando as poulações de todas as regiões do país redigiram «cadernos de queixas» exprimindo os seus problemas e os seus anseios. É mais que tempo de fazer um balanço da construção europeia ao longo dos últimos 60 anos e dizer: «Agora vamos retomar essa construção e torná-la realmente democrática com a participação das populações.» Creio que uma série de tratados europeus impede que isto aconteça. Portanto é preciso dar uma grande reviravolta na Europa, lançar um grande movimento europeu que dê azo à mudança. Quando irá isto acontecer? Primeiro é preciso que alguns países desobedeçam, que eventualmente saiam da zona euro
Zona euro
Zona composta por 18 países que utilizam o euro como moeda: Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Espanha, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Irlanda, Itália, Letónia (a partir da 1-01-2014), Luxemburgo, Malta, Países Baixos, Portugal, Eslováquia e Eslovénia. Os 10 países membros da União Europeia que não participam na zona euro são: Bulgária, Croácia, Dinamarca, Hungria, Lituânia, Polónia, República Checa, Roménia, Reino Unido e Suécia.
. O processo será lento e longo. A saída do Antigo Regime, do absolutismo monárquico, foi fruto duma longa luta.
Será possível fazê-lo de forma pacífica, tendo em conta a história e a crise?
Eu creio que a força das estruturas autoritárias europeias se sustenta na submissão e na docilidade das populações e dos seus representantes políticos. A sua força alimenta-se da nossa obediência resignada. A partir do momento em que a indignação se torne massiva e se transforme em mobilização, a Europa será forçada a mudar, o que não implica necessariamente violência. Deve haver uma maneira de fazer tudo isto com firmeza e determinação mas sem violência.
É correcto usar a expressão «um por cento de ricos contra 99 por cento de pobres»?
Sim, está certo. É bastante esquemático, claro está, mas corresponde à realidade. Estudei essa problemática e os trabalhos de Thomas Picketty tornam-na clara. 1% dos mais ricos nos EUA possui 50% do património nacional. Se a isto juntarmos os 10% mais ricos, pouco acrescentamos a esse património … Falar de 1% permite-nos apontar baterias a um sector muito minoritário da sociedade, salvaguardando a classe média. Regressámos a um nível de concentração da riqueza tão grande, que a fórmula do 1% é muito mais justa do que há 30 anos. Há 30 anos tínhamos de falar de 10%.
Mas em comparação com o período anterior à Primeira Grande Guerra ou depois? Era a mesma coisa?
No que diz respeito aos níveis de concentração da riqueza, regressámos à situação de há 100 anos. É o que nos mostra o estudo de Picketty.
Fonte em esloveno: http://www.delo.si/sobotna/se-bomo-iz-vsega-kar-se-je-zgodilo-z-grcijo-kaj-naucili.html
O jornal Delo é o principal quotidiano esloveno.
Tradução do esloveno para francês por Mimi Podkrižnik. Versão francesa revista por Patrick Saurin e Eric Toussaint.
Tradução do francês para português por Rui Viana Pereira.
Revisão: Maria da Liberdade.
docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.
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