28 de Janeiro de 2019 por Eric Toussaint
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O início da mundialização/globalização remonta às consequências da primeira viagem de Cristóvão Colombo, que o levaram em Outubro de 1492 a desembarcar numa ilha do mar das Caraíbas. Foi este o ponto de partida para uma intervenção brutal e sangrenta das potências marítimas europeias na história dos povos ameríndios, numa região do Mundo que até então se mantivera à margem das relações regulares com a Europa, a África e a Ásia. Os conquistadores espanhóis e os seus homólogos portugueses, britânicos, franceses, holandeses [1] conquistaram uma massa continental a que chamaram Américas [2], provocando a morte da maioria da população indígena, a fim de explorarem ao máximo os recursos naturais (nomeadamente o ouro e a prata) [3]. Ao mesmo tempo as potências europeias partiram à conquista da Ásia. Mais tarde concluíram o seu domínio na Australásia e por fim em África.
Em 1500, no início da intervenção brutal dos Espanhóis e dos Portugueses na América Central e do Sul, viviam na região pelo menos 18 milhões de habitantes (alguns autores propõem números bastante mais elevados, indo até aos 100 milhões [4]). Um século mais tarde apenas restavam 8 milhões de habitantes (contando com os colonos europeus e os primeiros escravos africanos). No caso da maior parte das ilhas do mar das Caraíbas, os indígenas foram totalmente exterminados. Note-se que durante muito tempo os Europeus, apoiados pelo Vaticano [5], não consideraram os indígenas ameríndios como seres humanos [6]. Era um posicionamento muito cómodo para os exterminarem e explorarem.
Na América do Norte a colonização europeia começou no século XVII, conduzida essencialmente pela Inglaterra e pela França; expandiu-se rapidamente no século XVIII, época que ficou marcada pela importação massiva de escravos africanos. As populações indígenas foram exterminadas ou expulsas para fora da zona onde os colonos se estabeleceram. Em 1700 os indígenas constituíam três quartos da população; em 1820 a sua proporção não excedia os 3 %.
Até à integração forçada das Américas no comércio planetário, o eixo principal das trocas comerciais intercontinentais passava pela China, Índia e Europa. O comércio entre a Europa e a China fazia-se por rotas terrestres e marítimas (via mar Negro) [7]. A principal via de ligação entre a Europa e a Índia passava pelo Mediterrâneo, Alexandria, Síria, península Arábia (porto de Mascate) e por fim pelo mar Arábico, até chegar à região do Guzerate, no Noroeste da Índia, ou, no Sudoeste da Índia, a região de Kerala, com os portos de Calicute e Cochim). A Índia também desempenhava um papel activo Activo Em geral o termo «activo» refere um bem que possui um valor realizável, ou que pode gerar rendimentos. Caso contrário, trata-se de um «passivo», ou seja, da parte do balanço composta pelos recursos de que dispõe uma empresa (os capitais próprios realizados pelos accionistas, as provisões para risco e encargos, bem como as dívidas). nas trocas comerciais entre a China e a Europa. Até ao século XV diversos progressos técnicos realizados na Europa dependeram da transferência de tecnologias provenientes da Ásia e do mundo árabe.
Em finais do século XV, inícios do século XVI, o comércio começa a tomar outras rotas. No momento em que o genovês Cristóvão Colombo, ao serviço da coroa espanhola, abre a via marítima para as «Américas» [8] através do Atlântico, partindo em direcção a oeste, Vasco da Gama, o navegador português, ruma em direcção à Índia, contornando a costa africana, de norte a sul, tomando de seguida a direcção leste depois de dobrar o cabo da Boa Esperança, no Sul de África [9]. A violência, a coerção e o roubo encontram-se no centro dos métodos empregues por Cristóvão Colombo e Vasco da Gama, a fim de servirem os interesses das coroas de Espanha e de Portugal. Durante os séculos seguintes as potências europeias e os seus servidores recorrerão sistematicamente ao terror, ao extermínio e à extorsão, combinados com a procura de aliados locais dispostos a colocarem-se ao seu serviço. Numerosos povos do mundo vêem o curso da sua história bifurcar-se brutal-mente sob os golpes da chibata dos conquistadores, dos colonos e do capital europeu. Outros povos tiveram ainda pior sorte, sendo exterminados ou reduzidos à condição de estranhos nas suas próprias terras. Outros ainda são transportados à força de um continente para outro e reduzidos à condição de escravos.
É claro que a história anterior ao século XV da era cristã foi marcada em múltiplas ocasiões por conquistas, dominações e barbaridades, mas essa fase não envolvia ainda toda a história mundial. O que ressalta dos últimos cinco séculos de história é que as potências europeias partiram à conquista do mundo inteiro e, no espaço de três séculos, criaram relações brutais entre (quase) todos os povos do planeta. Ao mesmo tempo, a lógica capitalista conseguiu dominar todos os outros modos de produção (ainda que possa não os ter eliminado inteiramente). A partir do século XV, a mercantilização capitalista do mundo teve um primeiro arranco; outros avanços se seguiriam, nomeadamente no século XIX, com a difusão da revolução industrial a partir da Europa Ocidental e a colonização «tardia» da África pelas potências europeias. As primeiras crises económicas internacionais ligadas aos ciclos do capital (na indústria, na finança e no comércio) explodiram logo no início do século XIX e provocaram as primeiras crises da dívida [10]. O século XX foi palco de duas guerras mundiais cujo epicentro se situou na Europa e de tentativas infrutíferas de construção do socialismo. A viragem do capitalismo mundial em direcção ao neoliberalismo, a partir da década de 1970, e a restauração do capitalismo no ex-Bloco Soviético e na China permitiram um novo avanço da mundialização/globalização.
A segunda viagem intercontinental de Vasco de Gama (1502): Lisboa – cabo da Boa Esperança – Leste de África – Índia (Kerala)
Após uma primeira viagem em direcção à Índia realizada com sucesso em 1497-1499, Vasco da Gama foi enviado pela segunda vez em missão pela coroa portuguesa para esse país, com uma frota de vinte navios. Parte de Lisboa em Fevereiro de 1502. Desta frota regressarão quinze navios; cinco (sob o comando do tio de Vasco da Gama) permanecem no mar Vermelho, a fim de proteger as bases portuguesas na Índia e bloquear os navios que zarpassem da Índia em direcção ao mar Vermelho, a fim de cortar o comércio entre essas duas regiões. Vasco da Gama dobra o cabo em Junho e faz escala em Sofala, no Leste de África, para comprar ouro [11]. Em Quiloa, Vasco da Gama força o soberano local a aceitar o pagamento de um tributo anual em pérolas e ouro e prossegue rumo à Índia. Aguarda ao largo de Cananor (70 km a norte de Calecute – hoje Kozhikode) a chegada dos navios árabes de regresso ao mar Vermelho. Apossa-se de um barco que se dirige a Meca com peregrinos e uma carga valiosa. Uma parte da carga é capturada e o barco incendiado. A maioria dos passageiros e da tripulação perece. A seguir faz escala em Cananor, onde troca presentes (oferece ouro e recebe pedras preciosas) com o soberano local, mas não estabelece negócios, por achar o preço das especiarias demasiado elevado. Zarpa em direcção a Cochim (actual Kochi), ancora os seus navios diante de Calecute e exige que o soberano expulse toda a comunidade muçulmana (4000 famílias) que utiliza o porto como base para comerciar no mar Vermelho. Face à recusa do soberano local hindu, Vasco da Gama manda bombardear a cidade, como já havia feito em 1500 Pedro Álvares Cabral, outro navegador português. Ruma a Cochim no início de Novembro, onde compra especiarias em troca da prata, do cobre e dos têxteis roubados ao navio que tinha afundado. Estabelece um entreposto comercial permanente no Cochim e aí deixa cinco navios para protegerem os interesses portugueses.
Antes de abandonar a Índia para regressar a Portugal, a frota de Vasco da Gama é atacada por mais de trinta navios financiados pelos negociantes muçulmanos de Calecute. Esta frota é derrotada após um bombardeamento português. Em resultado destes acontecimentos, uma parte da comunidade de comerciantes muçulmanos de Calecute decide instalar-se noutras paragens. Estas batalhas navais mostram claramente a violência e o carácter criminoso da acção de Vasco da Gama e da frota portuguesa.
Vasco da Gama regressou a Lisboa em Outubro de 1503, com 13 dos seus navios e cerca de 1700 toneladas de especiarias, ou seja uma quantidade aproximadamente igual à que Veneza mandava vir todos os anos do Médio Oriente em finais do século XV. As margens de lucro Lucro Resultado contabilístico líquido resultante da actividade duma sociedade. O lucro líquido representa o lucro após impostos. O lucro redistribuído é a parte do lucro que é distribuída pelos accionistas (dividendos). do comércio português eram bem maiores que as dos Venezianos. A maior parte das especiarias era escoada para a Europa via Anvers, principal porto dos Países Baixos espanhóis e já nessa época o maior porto europeu.
As expedições marítimas chinesas no século XV
Os Europeus não foram os únicos a realizar viagens de longo alcance e a descobrir novas rotas marítimas mas manifestamente foram os mais agressivos e conquistadores. Várias décadas antes de Vasco da Gama, entre 1405 e 1433, sete expedições chinesas rumaram a oeste e visitaram nomeadamente a Indonésia, o Vi-etname, a Malásia, a Índia, o Ceilão, a península Arábica (o estreito de Ormuz e o mar Vermelho), a costa oriental de África (nomeadamente as cidades de Mogadíscio e Malindi).
No reinado do imperador Yongle, a marinha Ming «contava aproximadamente com 3800 navios, dos quais 1350 navios-piloto e 1350 navios de combate adstritos às guarnições de guarda e às bases insulares, uma frota principal de 400 grandes navios de guerra estacionados perto de Nanquim e 400 navios de carga para transporte de cereais. Havia além disso 250 navios-tesouro de grande raio de acção» [12]. Eram cinco vezes maiores que qualquer dos navios de Vasco da Gama, com 120 metros de comprimento e quase 50 metros de boca. Os navios maiores tinham pelo menos 15 compartimentos estanques, de modo que a ruptura de um compartimento não alagava os restantes e podia ser reparado em alto-mar. Tinham intenções pacíficas mas a sua força militar era suficiente para fazer face a qualquer ataque, coisa que apenas aconteceu em três ocasiões. A primeira expedição teve como destino as Índias e suas especiarias. As outras tinham o objectivo de explorar a costa oriental de África, o mar Vermelho e o golfo Pérsico.
O principal fim destas viagem consistia em estabelecer boas relações, oferecendo prendas, apresentando embaixadores e escoltando embaixadores ou soberanos que se dirigiam à China ou dela partiam. Não foi feita qualquer tentativa para estabelecer bases com fins comerciais ou militares. Os Chineses procuravam novas plantas para fins medicinais e uma das missões levava 180 membros da profissão médica. Em contraste, aquando da primeira viagem de Vasco da Gama à Índia, a tripulação era composta por cerca de 160 homens, alguns deles artilheiros, músicos e três intérpretes árabes. Depois de 1433, os Chineses desistiram das suas expedições marítimas de longo curso e deram prioridade ao desenvolvimento interno.
Em 1500 os níveis de vida eram comparáveis
Quando as potências da Europa Ocidental se lançaram à conquista do resto do mundo em finais do século XV, o nível de vida e o grau de desenvolvimento dos europeus não eram superiores aos das outras grandes regiões do Mundo. A China ultrapassava incontestavelmente a Europa em diversos aspectos: condições de vida dos habitantes, nível científico, obras públicas, [13] qualidade das técnicas agrícolas e das manufacturas. A Índia encontrava-se mais ou menos em pé de igualdade com a Europa, nomeadamente do ponto de vista das condições de vida dos habitantes e da qualidade dos seus produtos manufacturados (os seus têxteis e a sua produção de ferro eram de melhor qualidade que os produtos europeus) [14]. A civilização inca dos Andes, na América do Sul, e a dos Astecas, no México, eram igualmente avançadas e florescentes. É preciso ser pru-dente quando se procura definir os critérios de desenvolvimento; não devemos limitar-nos a calcular o pro-duto interno bruto (PIB
PIB
Produto interno bruto
O produto interno bruto é um agregado económico que mede a produção total num determinado território, calculado pela soma dos valores acrescentados. Esta fórmula de medida é notoriamente incompleta; não leva em conta, por exemplo, todas as actividades que não são objecto de trocas mercantis. O PIB contabiliza tanto a produção de bens como a de serviços. Chama-se crescimento económico à variação do PIB entre dois períodos.
) por habitante. A esperança de vida, o acesso a água potável, as condições de segurança da existência, a qualidade da saúde, o respeito pelas diferenças, a relação homem/mulher, os mecanis-mos de solidariedade colectiva constituem no seu conjunto critérios de comparação mais importantes que o PIB per capita. Dito isto, mesmo que nos agarremos a este critério e lhe juntarmos a esperança de vida e a qualidade da alimentação, os Europeus não viviam melhor que os povos de outras regiões do mundo, antes de se lançarem à sua conquista.
O comércio intra-asiático antes da irrupção das potências europeias
Em 1500 a população da Ásia era cinco vezes maior que a da Europa Ocidental. A população indiana, só por si, era o dobro da população da Europa Ocidental. [15] A região constituía por isso um vasto mercado, com uma rede de comerciantes asiáticos a operar entre a África Oriental e as Índias, e entre as Índias Orientais e a Indonésia. A leste do estreito de Malaca, o comércio era dominado pela China.
Os negociantes asiáticos conheciam bem a direcção sazonal dos ventos e os problemas de navegação do oceano Índico. Os navegadores experientes eram numerosos na região e dispunham de um conjunto de estudos científicos sobre astronomia e navegação. Os seus instrumentos de navegação não tinham muito a invejar aos instrumentos portugueses.
Da África Oriental a Malaca (no apertado estreito que separa Sumatra da Malásia) o comércio asiático era efectuado por comunidades de mercadores que efectuavam a sua actividade em navios desarmados e sem ingerências acentuadas dos governantes.
As coisas mudaram radicalmente com os métodos empregados pelos portugueses, holandeses, ingleses e franceses ao serviço dos seus Estados e mercadores. As expedições marítimas lançadas pelas potências euro-peias em direcção a diversas partes da Ásia aumentaram consideravelmente, como mostra o quadro abaixo (extraído de Maddison, 2001). Aí vemos claramente que Portugal era, sem qualquer dúvida, a potência europeia dominante na Ásia ao longo do século XVI. Foi ultrapassado no século seguinte pelos Holandeses, cujo domínio se prolongou até ao século XVIII, secundados pelos Ingleses.
A GrãBretanha junta-se às outras potências europeias na conquista do Mundo
«No século XVI, as principais actividades da Inglaterra fora da Europa eram a pirataria e as viagens de descoberta para estudar as possibilidades de criar um império colonial. O seu golpe mais ousado foi o apoio real dado à expedição de Drake (1577-1580), que, com cinco navios e 116 homens, contornou o estreito de Magalhães, capturou e pilhou os navios espanhóis carregados de tesouros ao largo das costas chilenas e peruanas, estabeleceu contactos úteis nas ilhas Molucas, fonte de especiarias no arquipélago da Insulíndia (actual Indonésia), no cabo da Boa Esperança e na Guiné, durante o seu regresso» [16].
No final do século XVI a Grã-Bretanha ganha uma vantagem decisiva para estabelecer definitivamente o seu poderio marítimo, ao infligir uma derrota naval à Espanha, ao largo das costas britânicas.
A partir desse momento a Inglaterra lança-se à conquista do Novo Mundo e da Ásia. No Novo Mundo cria colónias para a produção de açúcar nas Antilhas e, a partir da década de 1620, participa activamente no tráfico de escravos importados de África. Simultaneamente instala entre 1607 e 1713 quinze colónias para povoa-mento da América do Norte, das quais treze acabam por proclamar a independência, tornando-se em 1776 os Estados Unidos da América; as outras duas permanecem sob a coroa britânica e farão parte do Canadá. Na Ásia, a coroa britânica adopta outra política: em vez de recorrer ao estabelecimento de colónias de povoamento, instaura um sistema de colónias de exploração, começando pela Índia. Para esse efeito o Estado britânico oferece protecção à Companhia das Índias Orientais em 1600 (uma associação de mercadores que é concorrente de outros grupos da mesma laia na Grã-Bretanha). Em 1702 a Companhia das Índias Orientais obtém do Estado o monopólio do comércio e lança-se à conquista das Índias, acabando por sair vitoriosa na Batalha de Plassey, em 1757, que lhe dá o controlo de Bengala. Durante mais de dois séculos a Grã-Bretanha aplica uma política económica proteccionista pura e dura; depois, uma vez instalada como potência económica dominante no decurso do século XIX, impõe uma política imperialista de livre comércio. Por exemplo, impõe a golpes de canhão na China a «liberdade comercial», a fim de forçar os Chineses a comprarem ópio indiano e a permitir aos Britânicos adquirir, com o produto da venda do ópio, o chá chinês, para o vender no mercado europeu. Entretanto dilata as suas conquistas na Ásia (Birmânia, Malásia), na Austrália (Austrália, Nova Zelândia), no Norte de África (Egipto), no Próximo Oriente, … Ao nível da África Subsariana, até ao século XIX, o comércio dos escravos constitui o seu principal interesse na região. A partir daí lança-se à sua conquista.
Goa: um enclave português na Índia
Na Índia, como noutras partes da Ásia, os Ingleses foram ultrapassados pelos Portugueses, que conquistaram pequenas parcelas de território indiano. Instalaram feitorias (entrepostos comerciais fortificados) e instauraram o terrorismo religioso. É assim que é criado em Goa, em 1560, o tribunal da Inquisição, que há-de durar até 1812. Em 1567 todas as cerimónias hindus foram banidas. Ao longo de mais de dois séculos, o tribunal da Inquisição realizou 16 000 julgamentos e milhares de indianos foram queimados vivos nas fogueiras da Inquisição.
A conquista das Índias pelos Britânicos
Durante a conquista das Índias os Britânicos expulsaram os seus concorrentes europeus, holandeses e franceses. Estes últimos estavam apostados em impor-se, mas fracassaram. O seu falhanço em meados do século XVIII, durante a guerra de 7 anos que os opôs aos Britânicos, deve-se sobretudo à falta de apoio fornecido pelo Estado francês [17].
Para se apoderar da Índia, os Ingleses procuraram sistematicamente aliados nas classes dominantes e nos suseranos locais. Não hesitaram, sempre que lhes pareceu conveniente, em recorrer à força, como sucedeu na Batalha de Plassey, em 1757, ou aquando da violenta repressão da Revolta dos Cipaios, em 1859. Serviram-se das estruturas locais de poder e a maior parte das vezes colocaram no poder senhores que lhes permitiram levar uma vida de ostentação e imporem as regras do jogo (os senhores locais não dispunham de ne-nhum poder real face aos Britânicos). A divisão da sociedade em castas foi mantida e até reforçada, constituindo um pesado fardo para a Índia dos nossos dias. De facto, junta-se à divisão da sociedade em castas e à dominação do sexo masculino sobre as mulheres uma divisão em castas baseada no nascimento. Através da colecta de impostos e do comércio ilegal entre a Índia e a Grã-Bretanha, o povo indiano contribuiu para o enriquecimento da Grã-Bretanha, tanto ao nível do país no seu todo, como ao nível das classes ricas (comerciantes, industriais, pessoal político). Mas os Britânicos não foram os únicos a enriquecerem: os banqueiros, os comerciantes, os patrões das indústrias indianas também acumularam fortunas colossais. Graças a tudo isto, a Companhia das Índias Orientais e o Estado britânico puderam manter durante muito tempo um domínio que suscitava um profundo repúdio junto da população.
O exemplo da indústria do algodão
Os têxteis de algodão produzidos na Índia tinham uma qualidade inigualável a nível mundial. Os Britânicos tentaram copiar as técnicas indianas de produção, para produzirem em Inglaterra algodão de qualidade comparável, mas durante muito tempo o resultado foi medíocre. Sob pressão nomeadamente dos proprietários das indústrias têxteis britânicas, o Governo de Londres proibiu a exportação de produtos de algodão indianos para territórios do império britânico. Londres proibiu também a Companhia das Índias Orientais de praticar comércio de algodões indianos fora do Império. Deste modo a Grã-Bretanha tentou cortar todas as vazas aos têxteis indianos. Só graças a estas medidas a indústria britânica conseguiu tornar-se rentável.
Enquanto hoje em dia os Britânicos e outras potências industrializadas se servem sistematicamente, no quadro dos acordos da Organização Mundial do Comércio (OMC), dos acordos comerciais relativos ao direito de propriedade intelectual para se sobreporem a países em desenvolvimento como a Índia, há pouco mais de três séculos não hesitaram em copiar os métodos de produção e o design dos Indianos, nomeadamente no domínio têxtil [18].
Por outro lado, para aumentarem os seus lucros e a sua competitividade face à indústria algodoeira indiana, os patrões britânicos das empresas algodoeiras foram levados a introduzir novas técnicas de produção: utili-zaram a máquina a vapor e novos métodos de fiar e tecer. Recorrendo à força, os Britânicos transformaram profundamente a Índia. Embora até ao século XVIII a economia indiana tivesse capacidade para exportar produtos manufacturados de alta qualidade e satisfazer a procura interna, nos séculos XIX e XX foi invadida pelos produtos manufacturados europeus, em particular os britânicos. A Grã-Bretanha proibiu a Índia de ex-portar os seus produtos manufacturados, forçou-a a exportar para a China quantidades crescentes de ópio no século XIX (ao mesmo tempo que impôs militarmente à China a compra do ópio indiano) e inundou o mercado indiano de produtos industriais britânicos. Em suma, provocou o subdesenvolvimento da Índia.
Na segunda parte deste artigo serão abordas as fomes coloniais, o comércio triangular, a intervenção do Banco Mundial, do Fundo Monetário internacional (FMI) e da OMC, o reverso do milagre indiano actual e algumas pistas alternativas.
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Tradução: Rui Viana Pereira
[1] Este artigo é uma versão aumentada da conferência proferida pelo autor em Kerala (Índia) a 24/01/2008 com o título «Impactes da Globalização sobre os Camponeses Pobres». Os participantes nesta conferência, na sua maioria mulheres provenientes do meio rural, vieram a convite da associação Santhigram e de VAK (membro da rede do CADTM internacional), no quadro da semana mundial de acção global lançada pelo Fórum Social Mundial.
[2] É preciso mencionar também os Dinamarqueses, que fizeram algumas conquistas no mar das Caraíbas, sem esquecer, no Norte, a Gronelândia («descoberta» vários séculos antes). Recordemos que os Noruegueses chegaram à Gronelândia e ao «Canadá» muito antes do século XV. Ver nomeadamente a viagem de Leif Ericsson no início do século XI às «Américas» (onde ele se deslocou do Labrador até ao extremo setentrional da Terra Nova), onde foi estabelecida uma breve colónia, por muito tempo esquecida, na Anse aux Meadows.
[3] O nome América remete para Amerigo Vespucci, navegador italiano ao serviço da coroa espanhola. Os povos indígenas dos Andes (Quíchuas, Aimarás, etc.) chamam ao seu continente Abya-Yala.
[4] Entre outros recursos naturais, convém mencionar os recursos biológicos trazidos pelos europeus para os seus países e difundidos a seguir pelo resto do Mundo durante as conquistas e para além delas. Entre esses recursos contam-se o milho, a batata, a batata-doce, a mandioca, o pimento, o tomate, o amendoim, o ananás, o cacau e o tabaco.
[5] As Coroas espanhola e portuguesa, que durante três séculos dominaram a América do Sul, a América Central e uma parte das Caraíbas, por serem potências católicas tiveram o apoio do Papa para perpetrarem os seus crimes. Acrescentemos que a Coroa espanhola expulsou em finais do século XVI os muçulmanos e os judeus (aqueles que não se converteram ao cristianismo) durante e após a Reconquista (que terminou a 12 de janeiro de 1492). Os judeus que não renunciaram à sua religião e foram expatriados encontraram refúgio principalmente nos países muçulmanos, dentro do Império Otomano, que era mais tolerante em relação a outras religiões.
[6] Deste ponto de vista, a mensagem do papa Bento XVI, aquando da sua viagem à América Latina em 2007, foi particularmente injuriosa para a memória dos povos vítimas do domínio europeu. De facto, longe de reconhecer os crimes cometidos pela Igreja Católica contra as popuações indígenas das Américas, Bento XVI afirmou que eles aguardavam a mensagem de Cristo levada pelos Europeus a partir do século XV. Bento XVI deveria responder perante a justiça por tais propósitos
[7] Entre outras coisas, os Europeus trouxeram da Ásia, ao longo dos tempos, a produção têxtil de seda, o algodão, a técnica do vidro soprado, a cultura do arroz e a cana-de-açúcar.
[8] Nomeadamente a famosa rota da seda, entre a Europa e a China, percorrida pelo veneziano Marco Pólo no fim do século XIII.
[9] Oficialmente Cristóvão Colombo procurava chegar à Ásia (nomeadamente à Índia) navegando para oeste, mas sabe-se que ele tinha esperança de encontrar novas terras desconhecidas dos Europeus.
[10] A partir do século XVI, a utilização do oceano Atlântico para ir da Europa à Ásia e às Américas marginalizou o Mediterrâneo durante quatro séculos, até ser aberto o canal de Suez. Embora os principais portos europeus se situassem no Mediterrâneo até finais do século XV (nomeadamente Veneza e Génova), os portos europeus abertos sobre o Atlântico iriam progressivamente tomar a dianteira (Anvers, Londres, Amesterdão).
[11] Ver Eric Toussaint, La Finance contre les peuples. La Bourse ou la Vie, coedição CADTM-Syllepse-Cetim, Liège-Paris-Genève, 2004, cap. 7. A primeira crise internacional da dívida eclodiu no primeiro quartel do século XIX e afectou simultaneamente a Europa e as Américas (ligada à primeira crise mundial de superprodução de mercadorias). A segunda explodiu no final do último quartel do século XIX e as suas repercussões afectaram todos os continentes.
[12] Nas cidades costeiras do Leste de África residiam mercadores – árabes, indianos de Gujarate e Malabar (=Kerala) e persas – que importavam seda e algodão, especiarias e porcelanas da China, e exportavam algodão, madeira cortada e ouro. Aí acostavam também pilotos que conheciam bem as monções do mar Árabe e do oceano Índico.
[13] No século XV, Pequim estava ligado a zonas de aprovisionamento de produtos alimentares pelo Grande Canal, que tinha 2300 km de comprimento e no qual as barcaças navegavam facilmente, graças a um engenhoso sistema de comportas.
[14] A comparação entre o produto interno bruto europeu por habitante e os do resto do mundo tem dado origem a grandes debates. As estimativas variam muito, consoante as fontes. Autores tão diferentes entre si como Paul Bairoch, Fernand Braudel e Kenneth Pomeranz consideram que em 1500 a Europa não tinha um PIB por habitante superior a outras regiões do Mundo como a Índia e a China. Maddison, que contesta radicalmente esta opinião (apontando uma subestimação da Europa Ocidental), calcula que o PIB per capita da Índia rondava em 1500 os 550 dólares (de 1990) e o da Europa Ocidental, 750 dólares. Apesar destas divergências entre autores, fica a ideia de que em 1500, antes das potências europeias partirem à conquista do resto do Mundo, o seu PIB per capita, na melhor das hipóteses (a que é defendida por Maddison), representava entre 1,5 e 2 vezes o PIB da Índia, ao passo que 500 anos mais tarde é 10 vezes superior. É razoável concluir que a violência e a extorsão usadas pelas potências europeias (às quais se juntam mais tarde os EUA, o Canadá, a Austrália e outros países de emigração europeia dominante) estão em boa medida na base das suas vantagens económicas actuais. O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao Japão, passado algum tempo, pois este país, entre 1500 e 1800, tinha um PIB inferior ao da China, vindo a transformar-se numa potência capitalista agressiva e conquistadora em finais do século XIX. A partir desse momento a progressão do seu PIB per capita foi fulgurante: multiplicou-se por 30 entre 1870 e 2000 (a fazer fé em Maddison). É durante esse período que se distancia largamente da China.
[15] Ver Maddison, 2001, p. 260.
[16] Ver Maddison, 2001, p. 110.
[17] Ver Gunder Frank, 1977, p. 237-238.
[18] Os Holandeses fizeram o mesmo com as técnicas de produção cerâmica chinesa, que copiaram para as apresentarem como cerâmica, faiança e porcelana azul e branca de Delft.
docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.
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