Série: ABC do Capital no Século XXI de Thomas Piketty
Parte 1
11 de Março de 2021 por CADTM
O livro O Capital no Século XXI [1] é indispensável a todos e todas quantos queiram saber mais sobre a repartição desigual da riqueza na nossa sociedade. Lidas as 950 páginas do livro (às quais acresce grande quantidade de dados estatísticos e quadros acessíveis na Internet [2]), vem-nos à mente uma primeira conclusão: o movimento Occupy Wall Street tem toda a razão ao apontar o 1 % mais rico.
De facto, em França, em 2013, o 1 % mais rico possui 25 % do património total do país [3]. No Reino Unido possui 30 %; na Suécia, 20 %; nos EUA, 32 % [4]. Se incluirmos a parte da riqueza dissimulada nos paraísos fiscais, ou sob outras formas, a percentagem aumenta pelo menos mais dois ou três pontos. Dito de maneira mais simples: 1 % da população é grosso modo a classe capitalista e concentra uma parte impressionante do património [5].
Se alargarmos o estudo aos 10 % mais ricos, obtemos as seguintes percentagens: em França, os 10 % mais ricos possuem 60 % do património; no Reino Unido, 70 %; na Suécia, 60 %; nos EUA, 70 %. Grosso modo, podemos considerar que os 9 % assim acrescentados representam a corte ou os aliados em sentido lato da classe capitalista.
Esta concentração de riqueza agravou-se ainda mais desde a publicação do livro de Picketty.
O movimento popular deveria avançar com reivindicações precisas no que diz respeito às medidas a tomar em relação ao 1 % mais rico e aos 9 % seguintes. A massa de bens mobiliários e imobiliários que esses 10 % detêm revela a que ponto a riqueza está desigualmente distribuída e mostra que um governo de esquerda poderia colher uma grande quantidade de recursos, com os quais ficaria habilitado a aplicar uma política de melhoria das condições de vida da maioria da população e levar a cabo profundas mudanças estruturais, de maneira a suavizar a saída do capitalismo produtivista e lançar a transição ecológica.
Thomas Piketty resume num quadro contundente as parcelas de riqueza na posse dos 10 % mais ricos, dos 40 % seguintes e dos 50 % que estão no nível mais baixo.
Quadro 1. A desigualdade da propriedade do capital [6]
Parcela dos diferentes grupos no total do património | Europa 2010 | EUA 2010 |
---|---|---|
Os 10 % mais ricos | 60,00 % | 70,00 % |
dos quais o 1 % mais rico | 25,00 % | 35,00 % |
dos quais os 9 % seguintes | 35,00 % | 35,00 % |
Os 40 % do meio | 35,00 % | 25,00 % |
Os 50 % mais pobres | 5,00 % | 5,00 % |
Metade da população dos países do Norte detém ao todo apenas 5 % do património, o que basta para tornar evidente que quando a esquerda reivindica a taxação do património, os 50 % que estão no nível de baixo estão completamente fora de causa. Quanto aos 40 % do meio, que, ainda, segundo Thomas Piketty, detêm 35 % do património total na Europa Ocidental continental e 25 % nos EUA e no Reino Unido, são constituídos principalmente por assalariados e por uma minoria de trabalhadores independentes. Poderiam ser igualmente isentos do imposto sobre o património, pelo menos em três quartos dos casos.
Se passarmos das percentagens aos montantes em euros, vemos melhor o que significa a concentração da riqueza numa fracção muito reduzida da população.
Segundo Thomas Piketty, em vários países da Europa com um nível de vida próximo do da França, os 50 % de baixo têm em média um património de 20.000 euros, mas, atenção, uma grande parte dos agregados familiares em questão ou não tem património ou tem dívidas.
Os 40 % do meio, ainda segundo Piketty, têm 175.000 euros de património em média (indo de cerca de 100.000 a 400.000 euros). Os 9 % de cima dispõem de 800.000 euros e o 1 % superior possui 5 milhões de euros. É claro que no topo deste 1 % encontramos fortunas como a do francês Bernard Arnault (director executivo da Louis Vuitton Moët Hennessy, LVMH), o europeu mais rico do mundo, com um património de cerca de 76 mil milhões de dólares.
Olhemos para a União Europeia, cujo produto interno bruto
PIB
Produto interno bruto
O produto interno bruto é um agregado económico que mede a produção total num determinado território, calculado pela soma dos valores acrescentados. Esta fórmula de medida é notoriamente incompleta; não leva em conta, por exemplo, todas as actividades que não são objecto de trocas mercantis. O PIB contabiliza tanto a produção de bens como a de serviços. Chama-se crescimento económico à variação do PIB entre dois períodos.
era, em 2013, cerca de 14,7 biliões de euros [7]. O total do património privado dos agregados familiares europeus eleva-se a cerca de 70 biliões de euros. O 1 % mais rico detém sozinhos grosso modo 17,5 biliões de euros [8] (25 % de 70 biliões de euros). Os 9 % seguintes detêm 24,5 biliões de euros (35 %). Os 40 % do meio detêm 24,5 biliões de euros (35 %). Os 50 % restantes possuem 3,5 biliões de euros (5 %) [9].
O orçamento anual da Comissão Europeia ascende a cerca de 1 % do PIB da UE. Isto significa que um imposto anual de 1 % sobre o património do 1 % mais rico da Europa forneceria um montante de 175.000 milhões, ou seja, mais que o orçamento actual da UE, que orça os 145.000 milhões de euros. E se o imposto fosse de 5 %? Isto dá-nos uma ideia do que seria potencialmente realizável conseguindo, através da mobilização social, obter uma alteração política radical a nível europeu ou mesmo ao nível de um único país da UE [10].
Um imposto anual de 1 % sobre o património do 1 % mais rico da Europa forneceria um montante de 175.000 milhões, ou seja, mais que o orçamento actual da UE
Um imposto excepcional (isto é, efectuado uma só vez no decurso de uma geração) de 33 % sobre o património do 1 % mais rico da União Europeia forneceria 6 biliões de euros (ou seja, 40 vezes o orçamento anual da UE!). E se o imposto fosse de 80 %?
Tudo isto permite-nos compreender a dimensão das questões relativas à taxação do património privado dos capitalistas e as possibilidades que se abrem em matéria de elaboração de propostas para angariar dinheiro onde ele existe, a fim de o colocar ao serviço da justiça social.
Um imposto excepcional (efectuado uma só vez no decurso de uma geração) de 33 % sobre o património do 1 % mais rico da União Europeia forneceria 6 biliões de euros (= 40 vezes o orçamento anual da UE!)
Numerosos economistas não se cansam de repetir que de nada vale taxar os mais ricos, por eles serem pouco numerosos e pouco avultado o seu rendimento. O que Thomas Piketty demonstra, é que o 1 % concentrou com o correr do tempo uma tal quantidade de bens imobiliários e mobiliários, que uma política visando esse 1 % de mais ricos ou os 2,5 % mais ricos (para não falar já dos 10 % mais ricos) pode fornecer uma grande margem de manobra para realizar a ruptura com o neoliberalismo. [11]
A quem afirma que esse património é inacessível, por poder transpor facilmente as fronteiras, respondemos que o sequestro de bens, o congelamento dos bens financeiros, as multas pesadas e o controlo dos movimentos de capitais são instrumentos poderosos que podem perfeitamente ser utilizados com muita eficácia.
O que acaba de ser dito para a União Europeia pode ser aplicado ao resto do mundo, pois de norte a sul do planeta assistimos a um aumento impressionante do património dos mais ricos.
Também podemos focar a atenção, como faz Thomas Piketty, numa minoria ainda mais ínfima. 1/20.000 da população mundial mais rica, em 1987, era constituída por 150 pessoas, tendo cada uma delas um património médio de 1,5 mil milhões de dólares. Vinte e seis anos depois, em 2013, os 1/20.000 mais ricos somavam 225 pessoas, tendo cada uma em média 15 mil milhões de dólares, ou seja, uma progressão de 6,4 % ao ano [12]. Os 0,1 % (um milésimo da população mundial [13]) mais ricos possuem 20 % do património mundial; 1 % possui 50 %. Se fizermos contas ao património dos 10 % mais ricos, Thomas Piketty estima que representem 80 a 90 % do património mundial, tendo os 50 % de baixo menos de 5 % [14]. Estes dados mostram bem o esforço de redistribuição que tem de ser feito. Esta redistribuição implica o confisco duma parte importante do património dos mais ricos.
Os 0,1 % (um milésimo da população mundial) mais ricos possuem 20 % do património mundial; 1 % possui 50 %
Thomas Piketty constata que o ritmo de crescimento do património do milésimo mais rico do planeta progrediu a um ritmo de 6 % ao ano no decurso das últimas décadas, ao mesmo tempo que o ritmo do conjunto do património progredia ao ritmo de 2 %. Se não houver uma reviravolta radical, se permanecer tudo como até aqui, ao cabo de trinta anos os 0,1 % (o milésimo mais rico) possuirão 60 % do património mundial em vez dos 20 % verificados em 2013! [15]
Thomas Piketty também analisa os rendimentos do trabalho e mostra que os 10 % mais ricos arrecadam 25 % dos rendimentos do trabalho na Europa e 35 % nos EUA.
Quadro 2. A desigualdade dos rendimentos do trabalho [16]
Parcela dos diferentes grupos no total dos rendimentos do trabalho | Europa 2010 | EUA 2010 |
---|---|---|
Os 10 % mais ricos | 25,00 % | 35,00 % |
dos quais: o 1 % mais rico | 7,00 % | 12,00 % |
dos quais: os 9 % seguintes | 18,00 % | 23,00 % |
Os 40 % do meio | 45,00 % | 40,00 % |
Os 50 % mais pobres | 30,00 % | 25,00 % |
Se adicionarmos os rendimentos do trabalho e outras formas de rendimento (alugueres, juros da poupança, lucros das empresas, dividendos, …), a repartição revela-se ainda mais desigual, como se vê no quadro 3.
Quadro 3. A desigualdade total dos diversos rendimentos [17]
Parcela dos diferentes grupos no total dos rendimentos | Europa 2010 | EUA 2010 |
---|---|---|
Os 10 % mais ricos | 35,00 % | 50,00 % |
dos quais: o 1 % mais rico | 10,00 % | 20,00 % |
dos quais: os 9 % seguintes | 25,00 % | 30,00 % |
Os 40 % do meio | 40,00 % | 30,00 % |
Os 50 % mais pobres | 25,00 % | 20,00 % |
Tradução: Rui Viana Pereira
Revisão: Maria da Liberdade
[1] Thomas Piketty, O Capital no Século XXI, ed. Círculo de Leitores, 2014, 912 pp.; ed. Amazon/Intrínseca, 2014; ed. Intrínseca, Rio de Janeiro, 2014. 669 pp. Vários comentários interessantes já foram publicados acerca desta importante obra. Por isso, não retomo uma série de pontos que já foram abordados e centro-me sobre as consequências práticas. Entre os comentários já publicados: 1. Ver a revista Les Possibles da ATTAC França, «Réflexions sur “Le capital au XXIe siècle” de Thomas Piketty», de François Chesnais http://cadtm.org/Reflexions-sur-Le-capital-au-XXIe (e «Éléments de réponses à François Chesnais», de Thomas Piketty http://cadtm.org/Elements-de-reponses-a-Francois ); 2. Ver também Jean-Paul Petit na revista Inprecor: http://gesd.free.fr/jppetit.pdf ; 3. Ver Robert Boyer: http://gesd.free.fr/boyerpik.pdf ; 4. Ver Michel Husson, http://hussonet.free.fr/piketcap.pdf
[3] O património, em termos simples, designa o conjunto dos bens imobiliários e mobiliários privados líquidos de dívidas. Thomas Piketty considera que actualmente o património total de um país (património privado + património público), como a França, os EUA ou a Bélgica, corresponde na prática ao património privado líquido da dívida, pois o património público líquido da dívida é equivalente grosso modo a zero, uma vez que a dívida pública representa cerca de 100 % do PIB. Não entro em mais detalhes. Para uma abordagem mais argumentada, ver Piketty.
[4] p. 542 à 555.
[5] Ao longo deste artigo, o termo «património» corresponde ao que Thomas Piketty toma em consideração para efectuar os seus cálculos (ver mais acima). Não contém outros elementos de património que constituem uma riqueza inestimável e são vitais à sobrevivência da humanidade e da natureza. Para uma discussão sobre a riqueza e o valor fora do quadro deste artigo, ver o livro de Jean-Marie Harribey, La richesse, la valeur et l’inestimable, Paris, Les liens qui libèrent, 2013.
[6] Tabela extraída do quadro 7.2, p. 391.
[7] p. 109.
[8] Ou seja: o equivalente a 120 % do PIB da UE!
[9] p. 741.
[10] Nota bene: as propostas formuladas neste artigo são da responsabilidade do autor e não de Thomas Piketty. Quando o autor resume uma proposta de Thomas Piketty, faz-lhe referência explícita.
[11] Thomas Piketty escreve: «Consideremos por exemplo o caso de um imposto sobre a fortuna que aplicasse uma taxa de 0 % sobre os patrimónios inferiores a 1 milhão de euros, 1 % sobre a parcela de patrimónios entre 1 e 5 milhões de euros, e 2 % sobre a parcela acima dos 5 milhões de euros. Este imposto, se fosse aplicado ao conjunto dos países da União Europeia, incidiria sobre cerca de 2,5 % da população e traria todos os anos o equivalente a 2 % do PIB europeu» (p. 860). Note-se que a simples aplicação desta proposta, apesar de muito moderada, daria o equivalente a duas vezes o orçamento actual da UE!
[12] p. 692.
[13] Ou seja, cerca de 4,5 milhões de adultos.
[14] p. 698.
[15] p. 700.
[16] Quadro elaborado pelo autor, a partir dos dados do Quadro 7.1, p. 390.
[17] Quadro elaborado pelo autor, a partir dos dados do Quadro 7.3, p. 392.
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