Série: ABC do Capital no Século XXI de Thomas Piketty
Parte 2
14 de Março de 2021 por CADTM
Nas vésperas da Revolução de 1789, em França, a parcela do património nacional arrecadada pelo decil mais rico rondava os 90 % e as posses do 1 % mais rico ascendiam a 60 % [1]. Depois da Revolução, a parcela do centil mais rico baixou um pouco, em consequência da redistribuição das terras da aristocracia e do clero, em benefício da burguesia (pouco mais de 9 % da população).
A propósito da parte do leão que cabia ao centil mais elevado, em 1789, Piketty sublinha que a denúncia dos 1 % mais ricos feita pelo Occupy Wall Street, combinada com a declaração «Nós somos os 99 %» («We are the 99 %»), não deixa de fazer lembrar o famoso panfleto «O Que É o Terceiro Estado?» (Qu’est-ce que le tiers état?), publicado em Janeiro de 1789 pelo abade Sieyés. [2]
Nas vésperas da Revolução de 1789, a parcela do património nacional arrecadada pelo decil mais rico rondava os 90 % e as posses do 1 % mais rico ascendiam a 60 %
Thomas Piketty desenhou um gráfico que retoma a evolução do decil e do centil mais ricos entre 1810 e 2010. Reagrupou os principais países europeus na categoria Europa e colocou os EUA à parte.
Na Europa, a parcela arrecadada pelo decil superior equivalia a mais de 80 % do património em 1810 e aumentou ao longo do século XIX e no início do século XX, até alcançar 90 % em 1910. Começa então a baixar na sequência da Guerra de 1914-1918 e das concessões que a burguesia teve de fazer perante as lutas populares depois da Primeira Guerra Mundial [3]. Esta descida continua depois da Segunda Guerra Mundial, pelas mesmas razões, e a parte dos 10 % mais ricos alcança o seu ponto mais baixo em 1975 (um pouco menos de 60 %). A partir desse momento, recomeça a subir até atingir 65 % em 2010. A parcela dos 1 % mais ricos segue grosso modo a mesma curva, excedendo ligeiramente os 50 % em 1810 e os 60 % em 1910. A descida começa em 1910 e atinge o ponto mais baixo em 1970-1975 (20 %), recomeçando depois a subir. A evolução dos EUA segue a mesma cronologia mas é importante sublinhar que enquanto a parcela do centil e do decil dos mais ricos era inferior à dos seus homólogos europeus no século XIX, a situação altera-se a partir dos anos sessenta: a fatia do bolo que lhes cabe ultrapassa então a dos seus pares europeus.
Duas conclusões evidentes:
A tendência é para o aumento das desigualdades, com os 1 % e 10 % mais ricos a aumentarem fortemente a parte do património que açambarcam
Thomas Piketty resume assim as razões que provocaram, entre a Primeira Grande Guerra e 1970, a redução da parte arrecadada pelos mais ricos e as razões que de seguida provocaram o aumento dessa parte: «Resumindo: os choques do “primeiro século XX” (1914-1945) – a saber, a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Bolchevique de 1917, a crise de 1929, a Segunda Guerra Mundial, as novas políticas de regulamentação, de taxação e de controlo público do capital saídas dessas convulsões – deram origem a níveis historicamente baixos para os capitais privados nos anos 1950-1960. O movimento de reconstituição dos patrimónios reinicia-se muito rapidamente, acelerando depois com a revolução conservadora anglo-saxónica de 1979-1980, o desmantelamento do bloco soviético em 1989-1990, a globalização financeira e a desregulamentação nas décadas de 1900 a 2000, acontecimento que marca uma viragem política em sentido inverso ao anterior e que permite aos capitais privados reencontrar no início dos anos dez, apesar da crise aberta em 2007-2008, uma prosperidade patrimonial desconhecida desde 1913.» [4]
A evolução da repartição da riqueza explica-se pela evolução das lutas sociais e pelas relações de força entre classes
É claro que as duas guerras mundiais produziram em ambos os casos um profundo descontentamento popular contra a classe capitalista, e foram seguidas de lutas sociais importantes, tomando a forma de crise revolucionária em diversos países; a crise de 1929 também provocou uma radicalização e importantes lutas sociais (nomeadamente nos EUA). Tudo isto levou os governos instalados a tomar certas medidas de concessão às reivindicações populares. Veremos mais adiante, por exemplo, o que vários governos dos principais países fizeram depois da Primeira e Segunda Guerras Mundiais em matéria de impostos, medidas que afectaram mais ou menos fortemente o património e os rendimentos do 1 % mais rico. Da mesma forma, verifica-se, a partir da ofensiva desencadeada pela classe capitalista contra as classes populares no decurso dos anos setenta e oitenta [5], uma mudança radical de políticas, designadamente as fiscais, por parte dos governos.
Assistimos a uma grande retoma do capital privado nos países ricos, a partir da década de setenta
Para medir a evolução do património [6], Thomas Piketty compara-o ao rendimento nacional [7]. «No início dos anos setenta, o valor total dos patrimónios privados – líquidos de dívidas – equivalia entre dois a três anos e meio de rendimento nacional em todos os países ricos, em todos os continentes. Quarenta anos depois, no início dos anos dez, os patrimónios privados representam entre quatro e sete anos de rendimento nacional [8], sempre considerando o mesmo conjunto de países estudados. A evolução geral não deixa margem para dúvidas: apesar das bolhas, assiste-se a um regresso em grande do capital privado nos países ricos desde os anos setenta, ou antes, à emergência de um movo capitalismo patrimonial.» [9]
O património público diminuiu de há 40 anos a esta parte, após ter aumentado em diversos países, em particular após a Segunda Guerra Mundial
Verifica-se igualmente que o património público diminuiu fortemente de há quarenta anos a esta parte, após ter aumentado em diversos países, em particular após a Segunda Guerra Mundial. Em França o governo nacionalizou em 1945 o Banco Central Banco central Estabelecimento que, num Estado, tem a seu cargo em geral a emissão de papel-moeda e o controlo do volume de dinheiro e de crédito. Em Portugal, como em vários outros países da zona euro, é o banco central que assume esse papel, sob controlo do Banco Central Europeu (BCE). francês e os quatro maiores bancos comerciais: Crédit Lyonnais, Société Général, Banque Nationale du Commerce et de L’industrie e Comptoir national d’escompte de Paris. Louis Renault, patrão da indústria automóvel Renault, foi preso em Setembro de 1944, por ter colaborado com a ocupação nazi, e a empresa foi nacionalizada em Janeiro de 1945 [10]. O governo britânico nacionalizou em 1946 o Banco de Inglaterra (banco central). Segundo Piketty, nos sectores industriais e financeiros, em França, «a parte do Estado no património nacional ultrapassou os 50 % dos anos cinquenta aos anos setenta». [11]
Ainda segundo Piketty, verifica-se, «... por um lado, um movimento de privatização e de transferência gradual da riqueza pública para a riqueza privada desde os anos setenta e oitenta; por outro lado, um fenómeno de captura a longo prazo dos preços dos activos imobiliários e bolsistas, que também se acelerou nos anos oitenta e noventa, num contexto político globalmente muito favorável aos patrimónios privados, em comparação com as décadas imediatamente seguintes ao pós-guerra» [12]. Este segundo fenómeno tem sem dúvida a ver com a financeirização da economia.
Tradução: Rui Viana Pereira
Revisão: Maria da Liberdade
[1] Thomas Piketty, O Capital no Século XXI, ed. Círculo de Leitores, 2014, 912 pp.; ed. Amazon/Intrínseca, 2014; ed. Intrínseca, Rio de Janeiro, 2014, 669 pp; p. 544.
[2] «O que é o terceiro estado? Tudo. Que foi ele até hoje na esfera política? Nada. Que demanda ele? Tornar-se alguma coisa» («Qu’est-ce que le tiers état ? Tout. Qu’a-t-il été jusqu’à présent dans l’ordre politique ? Rien. Que demande-t-il ? A y devenir quelque chose»).
[3] O gráfico mostra a evolução por decénios ou períodos maiores, a fim de destacar o mais possível a evolução. Se o gráfico indicasse a evolução anual, certamente veríamos uma retoma da parte dos mais ricos em finais dos anos vinte.
[4] p. 76.
[5] Pela minha parte, analisei de forma sintética a viragem de finais dos anos setenta e inícios dos anos oitenta ao nível internacional, nomeadamente em Eric Toussaint, «A Grande Transformação, dos Anos Oitenta Até a Crise Atual», 8/09/2009, e no livro Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010.
[6] O património nacional (ou capital nacional, como Th. Piketty também o designa, o que gera confusão, ver «Anexo 1. “O Capital no Século XXI”: Rigor na Investigação e Confusão Teórica») é «a soma dos activos não financeiros (habitações, terrenos, fundos de comércio, edifícios, máquinas, equipamentos com patente e outros activos profissionais detidos directamente) e dos activos financeiros (contas bancárias, planos de poupança, obrigações, acções e outras participações em sociedades, aplicações financeiras de todos os tipos, seguros de vida, fundos de pensões, etc.), subtraídos dos passivos (ou seja de todas as dívidas). Se nos limitarmos aos activos e passivos de todos os indivíduos privados, obtemos o património privado ou capital privado. Se considerarmos os activos e passivos detidos pelo Estado e pelas administrações públicas (colectividades locais, administração da segurança social, etc.), obtemos o património público ou capital público» (p. 86).
[7] Piketty explica como se calcula o rendimento nacional: subtrai-se ao produto interno bruto (PIB) a depreciação anual do capital e a seguir adicionam-se os rendimentos líquidos recebidos do estrangeiro (ou subtraem-se os pagamentos líquidos efectuados ao estrangeiro, se estes excederem os rendimentos). Ver p. 78-79.
[8] Th. Piketty especifica, por outro lado, que se, no cálculo do património, levássemos em conta os passivos e os activos financeiros, o património assim engrossado representaria dez a quinze vezes o rendimento nacional, vinte vezes no caso do Reino Unido. Piketty recorda-nos que do século XIX ao início dos anos setenta, o património correspondia a quatro ou cinco anos de rendimento nacional. Se tivermos em conta os derivados, chegamos a ordens de grandeza ainda maiores (p. 305-306).
[9] p. 273.
[10] p. 218-219.
[11] p. 219.
[12] p. 273-274.
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