Série: 1944-2020, 76 anos de intervenção do Banco Mundial e do FMI (parte 26)
12 de Novembro de 2020 por Eric Toussaint
No momento em que decorre uma reunião conjunta virtual, de 12 a 18 de outubro, do FMI e do Banco Mundial, Éric Toussaint, porta-voz internacional do CADTM, faz o balanço do Banco Mundial e do seu alter ego, o FMI, e propõe a sua abolição, bem como a da OMC, a fim de serem substituídos por outras instituições mundiais e democráticas.
Há 76 anos, em julho de 1944 em Bretton Woods, nos EUA, procedia-se à fundação do Banco Mundial e do FMI. É importante fazer o balanço desta instituição eminentemente política que desde a sua origem até aos dias de hoje tem sido dirigida por homens norte-americanos nomeados pelo ocupante de turno na Casa Branca. É fundamental avançar com uma alternativa à política de uma instituição que nunca respeitou os interesses e os direitos dos povos.
O golpe de Estado permanente do Banco Mundial
A lista de governos saídos de golpes de Estado militares apoiados pelo Banco Mundial é impressionante.
Entre os exemplos mais conhecidos, citemos a ditadura do xá do Irão, após o derrube do primeiro-ministro Mossadegh em 1953, a ditadura militar na Guatemala instaurada pelos EUA após a queda em 1954 do governo progressista do presidente democraticamente eleito Jacobo Arbenz, a de Duvalier no Haiti a partir de 1957, a ditadura do general Park Chung Hee na Coreia do Sul a partir de 1961, a ditadura dos generais brasileiros a partir de 1964, a de Mobutu no Congo e de Suharto na Indonésia a partir de 1965, a dos militares na Tailândia a partir de 1966, a de Idi Amin Dada no Uganda e do general Hugo Banzer na Bolívia em 1971, a de Ferdinand Marcos nas Filipinas a partir de 1972, a de Augusto Pinochet no Chile, a dos generais uruguaios e a de Habyarimana no Ruanda a partir de 1973, a da junta militar argentina a partir de 1976, o regime de Arap Moi no Quénia a partir de 1978, a ditadura no Paquistão a partir de 1978, o golpe de Saddam Hussein em 1979 e a ditadura militar turca a partir de 1980, a de Ben Ali na Tunísia de 1987 a 2011, a de Moubarak no Egito de 1981 a 2011.
Entre outras ditaduras apoiadas pelo Banco Mundial destaquemos ainda a dos Somoza na Nicarágua, até ao seu derrube em 1979 e a de Ceausescu na Roménia.
O Banco Mundial considera que o respeito pelos direitos humanos não faz parte da sua missão
Algumas continuam instaladas ainda hoje: a ditadura de Idriss Déby no Chade, a de Sissi no Egito, e tantas outras …
Não esqueçamos também o apoio às ditaduras na Europa: a do general Franco na Espanha e a de Salazar em Portugal.
O Banco Mundial apoiou metodicamente e de forma muito clara regimes despóticos, saídos ou não de golpes, responsáveis por políticas antissociais e crimes contra a humanidade. O Banco deu provas de total falta de respeito pelas normas constitucionais de alguns dos seus países membros. Nunca hesitou em apoiar militares putschistas e criminosos, economicamente dóceis, contra governos democráticos. Esta atitude é coerente com o facto do Banco Mundial considerar que o respeito pelos direitos humanos não faz parte da sua missão.
Recordemos o apoio oferecido pelo Banco Mundial ao regime de apartheid na África do Sul, de 1951 até 1968. O Banco Mundial recusou explicitamente aplicar uma resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, aprovada em 1964, que obrigava todas as instituições da ONU a interromper os apoios financeiros à África do Sul, por esta violar a Carta das Nações Unidas. Esta atitude do Banco Mundial e a violação dos direito internacional não deveriam permanecer impunes.
Por fim, como este livro revela, o Banco Mundial, ao longo das décadas de 1950 e 1960, concedeu sistematicamente empréstimos às potências coloniais e às suas colónias, para projectos que permitiam aumentar a exploração dos recursos naturais e dos povos, em proveito das classes dirigentes das metrópoles. Foi nesse contexto que o Banco Mundial recusou aplicar a resolução da ONU aprovada em 1965, na qual se apelava à retirada de apoio financeiro e técnico a Portugal, enquanto este país não renunciasse à sua política colonial. [1]
As dívidas contraídas junto do Banco Mundial por decisão do poder colonial foram impostas aos novos países, quando estes acederam à independência – caso das colónias da Bélgica, da Inglaterra e da França.
O apoio do Banco Mundial a regimes ditatoriais exprime-se na concessão de apoios financeiros, além de apoio técnico e económico – apoio e assistência que ajudaram os regimes coloniais a manterem-se no poder e a perpetuar os seus crimes. O Banco Mundial também contribuiu para que esses regimes não fossem isolados na cena internacional, uma vez que os empréstimos e a assistência técnica facilitaram as relações com os bancos privados e as empresas transnacionais. O modelo neoliberal impôs-se progressivamente ao mundo a partir da ditadura de Augusto Pinochet em 1973 no Chile e de Ferdinand Marcos nas Filipinas em 1972. Estes dois regimes foram activamente apoiados pelo Banco Mundial. Quando esses regimes terminaram, o Banco Mundial exigiu sistematicamente aos regimes democráticos que lhes sucederam o pagamento das dívidas contraídas pelos seus antecessores. Em suma, a ajuda financeira do Banco, oferecida de forma cúmplice às ditaduras, tornou-se um fardo para os povos libertos, que se veem obrigados a pagar as armas compradas para os oprimir.
O apoio do Banco Mundial a regimes ditatoriais exprime-se na concessão de apoios financeiros, além de apoio técnico e económico
Nas décadas de 1980 e 1990, caiu grande número de ditaduras, em alguns casos graças à acção de poderosos movimentos democráticos. Os regimes que lhes sucederam aceitaram, em geral, as políticas recomendadas ou impostas pelo Banco Mundial e pelo FMI e continuaram a reembolsar dívidas odiosas. O modelo neoliberal, depois de ter sido imposto pela mão de ditaduras, manteve-se graças ao jugo da dívida e a um ajustamento estrutural permanente. De facto, após o derrube das ditaduras, os governos democráticos prosseguiram a aplicação de políticas que rompem as tentativas de pôr em pé um modelo de desenvolvimento parcialmente autónomo. A nova fase da mundialização iniciada na década de 1980, num momento de explosão da crise da dívida, implica geralmente uma subordinação acrescida dos países em desenvolvimento (os países da Periferia) em relação aos países mais industrializados (os países do Centro).
A agenda escondida do consenso de Washington
Desde início, graças a um mecanismo simultaneamente simples de compreender e complexo de instaurar, as principais decisões do Banco Mundial e do FMI dependem das orientações do governo dos EUA. Só em casos raros certos governos europeus (especialmente Grã-Bretanha, França, Alemanha) e do Japão tiveram uma palavra a dizer. Por vezes ocorre algum atrito entre a Casa Branca e as direcções do Banco Mundial e do FMI, mas uma análise rigorosa da história desde o final da Segunda Guerra Mundial mostra que a última palavra pertence sempre ao governo dos EUA em todos os assuntos que lhe interessam directamente.
No fundamental, a agenda escondida do Consenso de Washington consiste em manter o leadership dos EUA à escala mundial e em desembaraçar o capitalismo dos limites que lhe tinham sido impostos à saída da Segunda Guerra Mundial. Estes limites resultaram simultaneamente de poderosas mobilizações sociais – tanto no Sul como no Norte –, do início da emancipação de certos povos colonizados e de tentativas de escapar ao capitalismo. O Consenso de Washington é também a intensificação do modelo produtivista.
A agenda escondida, aquela que é aplicada na realidade, visa a submissão das esferas pública e privada de todas as sociedades humanas à lógica do máximo lucro
Lucro
Resultado contabilístico líquido resultante da actividade duma sociedade. O lucro líquido representa o lucro após impostos. O lucro redistribuído é a parte do lucro que é distribuída pelos accionistas (dividendos).
no quadro capitalista. A aplicação prática desta agenda implica a reprodução da pobreza (e não a sua sua redução) e o aumento das desigualdades
Ao longo das últimas décadas, no quadro desse Consenso, o Banco Mundial e o FMI reforçaram os seus meios de pressão sobre grande número de países, tirando partido da situação criada pela crise da dívida. O Banco Mundial desenvolveu um conjunto de filiais, de maneira a tecer uma teia com malhas cada vez mais apertadas – Sociedade Financeira Internacional (SFI), Agência Multilateral de Garantia de Investimentos (AMGI), Centro Internacional para a Resolução de Diferendos Relativos a Investimentos (CIRDI).
Por exemplo, o Banco Mundial concede um empréstimo na condição do sistema de distribuição e saneamento das águas ser privatizado. Em consequência, a empresa pública é vendida a um consórcio privado, no qual, como por acaso, vamos encontrar a SFI, filial do Banco Mundial. Quando a população afectada pela privatização se revolta contra o aumento brutal das tarifas e a degradação da qualidade dos serviços, e as autoridades públicas se voltam contra a empresa transnacional predadora, a gestão do litígio é entregue ao CIRDI, que é ao mesmo tempo juiz e parte interessada.
Chega-se assim a uma situação em que o Grupo Banco Mundial está presente em todos os níveis: 1) imposição e financiamento da privatização (Banco Mundial); 2) investimento na empresa privatizada (SFI); 3) garantia dessa empresa (AMGI); 4) julgamento em caso de litígio (CIRDI). Foi precisamente o que aconteceu em El Alto, na Bolívia, em 2004-2005.
A colaboração entre o Banco Mundial e o FMI é também fundamental, permitindo exercer uma pressão máxima sobre os poderes públicos. E para tutelar a esfera pública e as autoridades, para levar mais longe a generalização do modelo, a colaboração do duo Banco Mundial / FMI estende-se à Organização Mundial do Comércio (OMC) desde que esta viu a luz do dia, em 1995. A colaboração cada vez mais estreita entre o Banco, o FMI e a OMC faz parte do Consenso de Washington.
Uma diferença fundamental separa a agenda expressa do Consenso de Washington de sua versão escondida. A agenda proclamada visa reduzir a pobreza por meio do crescimento, das forças do mercado livre Mercado livre É um mercado fora da bolsa (over-the-counter, OTC), não regulamentado, onde as transacções são efectuadas directamente entre o vendedor e o comprador, ao contrário do que se passa num mercado dito organizado ou regulamentado sob uma autoridade de controlo, por exemplo a Bolsa. e da intervenção o mais ligeira possível dos poderes públicos. A agenda escondida – aquela que é aplicada na realidade – visa a submissão das esferas pública e privada de todas as sociedades humanas à lógica do máximo lucro no quadro capitalista. A aplicação prática desta agenda implica a reprodução da pobreza (e não a sua sua redução) e o aumento das desigualdades. Implica uma estagnação, ou mesmo uma degradação, das condições de vida da grande maioria da população mundial, combinada com uma concentração cada vez maior da riqueza. Implica ainda a degradação dos equilíbrios ecológicos, pondo em perigo o futuro da humanidade.
Um dos numerosos paradoxos da agenda escondida é que, em nome do fim da ditadura do Estado e da libertação das forças do mercado, os governos aliados às transnacionais recorrem à acção coerciva das instituições públicas multilaterais (Banco Mundial, FMI, OMC) para impor modelos aos povos.
A ruptura como saída
Por todas essas razões, é preciso romper radicalmente com o Consenso de Washington, com o modelo aplicado pelo Banco Mundial. O Consenso de Washington não deve ser entendido como um mecanismo de poder e um projecto que se limita ao governo de Washington, ladeado pelo seu trio infernal. A Comissão Europeia, a maioria dos governos europeus, o governo japonês, aderem ao Consenso de Washington e traduzem-no nas suas próprias línguas, projectos constitucionais e programas políticos.
A ruptura com o Consenso de Washington, se se limitar ao fim do leadership dos EUA, apoiados pelo Banco Mundial, FMI e OMC, não constitui uma alternativa, pois as outras grandes potências estão dispostas a tomar o testemunho das mãos dos EUA e a prosseguirem objectivos semelhantes. Imaginemos por instantes que a União Europeia suplantava os EUA ao nível do leadership mundial. Nada disso melhoraria no fundamental a situação dos povos à escala planetária, pois tratar-se-ia de substituir um bloco capitalista do Norte (um dos pólos da Tríade) por outro. Imaginemos ainda outra hipótese: o reforço do bloco constituído pela China, Brasil, Índia, África do Sul e Rússia, ao ponto de suplantar a Tríade. Se esse bloco fosse movido pela lógica dos seus actuais governos e pelo sistema económico que os rege, não haveria verdadeiras melhorias.
É preciso substituir o Consenso de Washington por um consenso dos povos fundado na rejeição do capitalismo.
É preciso substituir o Consenso de Washington por um consenso dos povos fundado na rejeição do capitalismo
É preciso pôr radicalmente em causa o conceito de desenvolvimento estreitamente ligado ao modelo produtivista. Esse modelo de desenvolvimento exclui a protecção das culturas e da sua diversidade; esgota os recursos naturais e degrada irremediavelmente o ambiente; vê a promoção dos direitos humanos, na melhor das hipóteses, como um objectivo a longo prazo (ora, a longo prazo estaremos todos mortos); quase sempre vê a promoção dos direitos humanos como um obstáculo ao crescimento; vê a igualdade como um obstáculo, ou até um perigo.
Quebrar a espiral infernal do endividamento
A melhoria das condições de vida dos povos através do endividamento público é um fracasso. O Banco Mundial afirma que, para se desenvolverem, os países em desenvolvimento [2] devem recorrer à dívida externa e atrair investimento externo. Esta dívida é utilizada sobretudo para comprar equipamento e bens de consumo provenientes dos países mais industrializados. Os factos demonstram, dia após dia, durante décadas, que isto não conduz ao desenvolvimento.
São os países em desenvolvimento que fornecem capitais aos países mais industrializados, em particular a economia dos Estados Unidos. Era o que dizia um relatório do Banco Mundial de 2003: Os países em desenvolvimento, no seu conjunto, são credores líquidos dos países desenvolvidos
De acordo com a teoria económica dominante, o desenvolvimento do Sul está atrasado devido à falta de capital interno (poupança local insuficiente). Ainda de acordo com a teoria económica dominante, os países que desejam empreender ou acelerar o seu desenvolvimento devem recorrer ao capital externo por três vias: primeiro, endividando-se no exterior; segundo, atraindo investimento estrangeiro; terceiro, aumentando as exportações para obter a moeda estrangeira necessária à aquisição de bens estrangeiros para continuar o seu crescimento. Para os países mais pobres, é também uma questão de atrair donativos, comportando-se como bons alunos dos países desenvolvidos.
A realidade contradiz esta teoria: são os países em desenvolvimento que fornecem capitais aos países mais industrializados, em particular a economia dos Estados Unidos. Era o que dizia um relatório do Banco Mundial publicado em 2003: «Os países em desenvolvimento, no seu conjunto, foram credores líquidos dos países desenvolvidos» [3].
Se os movimentos populares tomassem o poder em vários países em desenvolvimento (PED) e montassem o seu próprio banco de desenvolvimento e o seu próprio fundo monetário internacional, poderiam perfeitamente dispensar o Banco Mundial, o FMI e as instituições financeiras privadas dos países mais industrializados.
Não é verdade que os PED tenham de recorrer ao endividamento para financiarem o seu desenvolvimento. Actualmente o recurso ao endividamento serve sobretudo para assegurar a continuidade dos reembolsos. Apesar da existência de grandes reservas de câmbios, os governos e as classes dominantes locais do Sul não aumentam o investimento e as despesas sociais.
É preciso romper com a visão dominante, que vê no endividamento uma necessidade absoluta. Além disso não devemos hesitar em abolir ou repudiar as dívidas odiosas ou ilegítimas.
Abolir as dívidas odiosas
1) ausência de benefício para a população: a dívida não foi contraída no interesse do povo e do Estado, mas sim contra o seu interesse ou no interesse pessoal dos dirigentes e de pessoas próximas do poder;
2) a cumplicidade dos credores: os credores sabiam (ou tinham condições para saber) que os fundos emprestados não aproveitavam à população.
A doutrina da dívida odiosa, por diversas vezes na História aplicada por diversos governos, é também útil para denunciar como odiosas as dívidas reclamadas pelo Banco Mundial e o FMI aos países do Sul
Segundo esta doutrina, a natureza despótica ou democrática de um regime não deve ser tida em conta.
O autor da doutrina da dívida odiosa, Alexander Sack, diz claramente que podem ser atribuídas dívidas odiosas a governos regulares. Segundo Sack, «uma dívida contraída de forma regular por um governo regular [pode] ser considerada incontestavelmente odiosa, …». Sack define da seguinte forma um governo regular: «Considera-se governo regular o poder supremo que existe efectivamente nos limites de um determinado território. Quer esse poder seja monárquico (absoluto ou limitado) ou republicano; quer provenha da “graça de Deus” ou da “vontade do povo”; quer exprima a “vontade do povo” ou não, de todo o povo ou apenas de uma parte deste; quer tenha sido estabelecido legalmente ou não, etc., nada disso importa para o problema em causa». [Sublinhado meu. Fonte: Les effets des transformations des États sur leurs dettes publiques et autres obligations financières: traité juridique et financier, Recueil Sirey, Paris, 1927. O documento completo pode ser consultado no sítio do CADTM.]
Sack diz que uma dívida pode ser caracterizada como odiosa quando: «a) as necessidades, em função das quais o antigo governo contraiu a dívida em questão, eram “odiosas” e claramente contrárias aos interesses da população, no todo ou em parte, do antigo território, e
b) os credores, no momento da emissão do empréstimo, estavam conscientes do seu fim odioso.»
E prossegue: «Uma vez estabelecidos estes pontos, caberia aos credores o encargo de provar que os fundos gerados pelos ditos empréstimos foram de facto utilizados não para fins odiosos, prejudiciais à população de todo ou parte do território do Estado, mas sim para necessidades gerais ou especiais desse Estado, não padecendo de carácter odioso» (ver https://www.cadtm.org/A-divida-odiosa-segundo-Alexandre-Sack-e-segundo-o-CADTM).
Esta doutrina, que foi por diversas vezes na História aplicada por diversos governos, é também útil para denunciar como odiosas as dívidas reclamadas pelo Banco Mundial e o FMI aos países do Sul.
Recorrer a empréstimos legítimos e financiar o Estado por meio de impostos socialmente justos
Dito isto, é preciso acrescentar que o endividamento público não é má coisa em si mesmo, quando concebido de maneira radicalmente diferente do sistema actual.
O empréstimo público é inteiramente legítimo quando serve projectos legítimos e quando quem contribui para eles o faz de maneira legítima.
O empréstimo público é inteiramente legítimo quando serve projectos legítimos e quando quem contribui para eles o faz de maneira legítima
A dívida pública poderia ser utilizada para financiar ambiciosos programas de transição ecológica em vez de servir políticas antissociais, extractivistas e produtivistas que favorecem a concorrência entre nações.
As autoridades públicas podem utilizar os empréstimos, por exemplo, para:
Existem ainda outras medidas que permitiriam financiar de maneira legítima o orçamento de Estado: estabelecer um imposto sobre as grandes fortunas e os rendimentos muito elevados, aplicar multas às empresas responsáveis pela grande fraude fiscal, reduzir radicalmente as despesas militares, acabar com os subsídios aos bancos e às grandes empresas, aumentar os impostos sobre as empresas estrangeiras, nomeadamente no sector das matérias-primas, etc.
Os povos só se libertam por suas próprias mãos
Nos dias de hoje, em 2020, à excepção de Cuba, nenhum governo fala de mudanças profundas nas regras do jogo em favor dos povos. Assim é que os governos da China, Rússia e principais PED (Índia, Brasil, Nigéria, Indonésia, Tailândia, Coreia do Sul, México, Argélia, África do Sul, etc.) não exprimem qualquer intenção de mudar na prática a situação mundial em benefício dos povos.
Tarde ou cedo, os povos hão-de libertar-se da escravatura da dívida e da opressão exercida pelas classes dominantes do Norte e do Sul. Conseguirão, através da luta, instaurar políticas que redistribuam as riquezas e que ponham fim ao modelo produtivista destruidor da natureza
No entanto, no plano político, se quisessem, os governos dos principais PED poderiam construir um poderoso movimento, capaz de impor reformas democráticas fundamentais na globalidade do sistema multilateral. Poderiam adoptar uma política radical: repudiar a dívida e aplicar um conjunto de políticas que rompesse com o neoliberalismo. Contudo, estou convencido que isso não acontecerá: o cenário radical não será posto em curso a curto prazo. A esmagadora maioria dos dirigentes actuais dos PED estão totalmente comprometidos no modelo neoliberal. Na maioria dos casos estão totalmente colados aos interesses das classes dominantes locais, que não têm qualquer perspectiva de afastamento (quanto mais ruptura …) em relação às políticas seguidas pelas grandes potências industriais, das quais a China faz parte na actualidade. Os capitalistas do Sul estão entrincheirados num comportamento rentista e, mesmo quando assim não é, procuram, na melhor das hipóteses, ganhar quota de mercado. É o caso dos capitalistas brasileiros, sul-coreanos, chineses, sul-africanos, indianos, entre outros, que exigem dos seus governos que obtenham dos países mais industrializados uma ou outra concessão, no âmbito de negociações comerciais bilaterais ou multilaterais. Além disso, a concorrência e os conflitos entre os governos dos PED, entre capitalistas do Sul, são reais e podem vir a exacerbar-se. A agressividade comercial dos capitalistas da China, da Rússia, do Brasil em relação aos seus concorrentes do Sul provoca divisões tenazes. Geralmente chegam a um entendimento (entre eles e entre Norte e Sul) para impor aos trabalhadores dos respectivos países uma deterioração das condições de trabalho, com o pretexto de aumentarem ao máximo a sua competitividade.
No entanto, tarde ou cedo, os povos hão-de libertar-se da escravatura da dívida e da opressão exercida pelas classes dominantes do Norte e do Sul. Conseguirão, através da luta, instaurar políticas que redistribuam as riquezas e que ponham fim ao modelo produtivista destruidor da natureza. Os poderes públicos serão então obrigados a dar prioridade absoluta à satisfação dos direitos humanos fundamentais.
Sair do ciclo infernal do endividamento sem cair numa política de caridade
Mas para chegar aí, é indispensável seguir um caminho alternativo: há que sair do ciclo infernal de endividamento sem cair numa política de caridade que visa perpetuar o sistema mundial inteiramente dominado pelo capital e por umas quantas potências e empresas internacionais. Trata-se de montar um sistema internacional de redistribuição dos rendimentos e das riquezas, a fim de sanar a pilhagem multissecular a que os povos dominados da Periferia continuam sujeitos. Essas compensações, prestadas sob a forma de donativos, não dão direito a nenhuma interferência dos países mais industrializados nos assuntos dos povos compensados. No Sul, isso implica a invenção de mecanismos de decisão sobre o destino dos fundos e de controle sobre a sua utilização por parte das populações e das autoridades públicas abrangidas. Abre-se aí um vasto campo de reflexão e de experimentação.
A mobilização dos agricultores e dos pescadores do Gujarat (oeste da Índia), vítimas dos efeitos ambientais e sociais provocados por uma central a carvão financiada pela Sociedade Financeira Internacional (SFI), encarregada dentro do Grupo Banco Mundial do financiamento de empresas privadas, deu origem a uma importante decisão do Supremo Tribunal dos EUA, a 27 de fevereiro de 2019. Os juízes decidiram que a SFI não podia invocar a imunidade das organizações internacionais quando estas financiam actividades comerciais. Isto demonstra que a acção popular pode dar resultado.
Abolir o Banco Mundial e o FMI e substituí-los por outras instituições multilaterais
É preciso ir mais longe e abolir o Banco Mundial e o FMI, substituindo-os por outras instituições mundiais caracterizadas por um funcionamento democrático. O novo banco mundial e o novo fundo monetário internacional, qualquer que venha a ser a sua nova denominação, têm de ter missões radicalmente diferentes das dos seus antecessores: devem submeter-se aos tratados internacionais sobre os direitos humanos (políticos, civis, sociais, económicos e culturais) no âmbito do crédito internacional e das relações monetárias internacionais. Estas novas instituições mundiais devem fazer parte de um sistema institucional mundial submetido a uma Organização das Nações Unidas radicalmente reformada. É essencial e prioritário que os países em desenvolvimento se associem para constituírem o mais depressa possível entidades regionais dotadas de um banco comum e de um fundo monetário comum. Por ocasião da crise do Sudeste Asiático e da Coreia de 1997-1998, a constituição de um fundo monetário asiático foi delineada pelos países envolvidos. A discussão foi abortada pela intervenção de Washington. A falta de vontade dos governos fez o resto. Na América do Sul, sob o impulso do governo de Hugo Chávez, foi lançado um Banco do Sul em 2008, mas por fim o projecto não chegou a bom porto. Em 2007-2009 o governo equatoriano defrontou os seus credores e obeve uma vitória, mas os outros governos de esquerda da região não acompanharam.
Com a epidemia de covid-19 torna-se claro que o Banco Mundial e o FMI contribuíram para degradar os sistemas de saúde
Em 2020 a crise sanitária mundial provocada pelo coronavírus mostrou a que ponto as políticas ditadas pelo duo Banco Mundial / FMI e aplicadas pelos governos degradaram os serviços públicos de saúde, dando lugar a grandes razias. Se os governos tivessem virado as costas ao Consenso de Washington e ao neoliberalismo, se tivessem reforçado os instrumentos essenciais para uma boa política de saúde pública ao nível do pessoal contratado, das infraestruturas, dos stocks de medicamentos, dos equipamentos, da investigação, da produção de medicamentos e de tratamentos, da cobertura de saúde em benefício da população, a crise do coronavírus não teria atingido tais proporções.
Se os governos tivessem rompido com a lógica autoritária do Banco Mundial e do FMI, teria havido um aumento radical das despesas de saúde pública, com efeitos visíveis no combate a outras doenças que afectam os povos do Sul
De facto, se os governos tivessem rompido com a lógica autoritária do Banco Mundial e do FMI, teria havido um aumento radical das despesas de saúde pública, com efeitos visíveis no combate a outras doenças que afectam os povos do Sul.
Segundo o último relatório mundial sobre paludismo, publicado em dezembro de 2019, foram detectados 228 milhões de casos de paludismo em 2018 e estima-se em 405.000 o número de mortes devidas à doença. Por outro lado, a tuberculose está entre as 10 principais causas de mortalidade. Em 2018, 10 milhões de pessoas contraíram tuberculose e 1,5 milhões faleceram (dos quais 251.000 eram portadores de HIV). Estas doenças poderiam ser combatidas eficazmente se os governos lhes consagrassem recursos suficientes.
Outras medidas complementares permitiriam combater a subnutrição e a fome, que destoem a vida quotidiana de 1 em cada 9 seres humanos (ou seja, mais de 800 milhões de habitantes em todo o mundo). Morrem cerca de 2,5 milhões de crianças todos os anos por subnutrição, directamente ou por doenças ligadas à sua fraca imunidade causada por subalimentação.
Se fossem feitos investimentos para aumentar massivamente o aprovisionamento de água potável e o saneamento das águas residuais, seria possível reduzir radicalmente das mortes devidas a doenças diarreicas, que ascendem a mais de 430.000 por ano (fonte: OMS 2019).
Embora fosse possível anular as dívidas ilegítimas reclamadas aos povos, o Banco Mundial, o FMI e a maioria dos governos só falam de adiamento dos pagamentos e propõem novas formas de endividamento. O covid-19 é utilizado para reforçar um novo ciclo de endividamento massivo, em condições que agravam a austeridade e afectam o bem-estar das gerações futuras.
Suspensão imediata do pagamento das dívidas públicas, combinada com uma auditoria com participação cívica, a fim de anular a parte ilegítima
A suspensão imediata do pagamento das dívidas públicas tem de ser combinada com uma auditoria, feita com participação dos cidadãos, a fim de identificar a parte ilegítima e anulá-la.
Uma coisa deve ser clara: se procuramos alcançar a emancipação dos povos e satisfação plena dos direitos humanos, as novas instituições financeiras e monetárias, tanto regionais como mundiais, têm de estar ao serviço de um projecto de sociedade em ruptura com o capitalismo, o neoliberalismo, o extractivismo e o produtivismo.
É preciso contribuir tanto quanto possível para que um novo e poderoso movimento social e político seja capaz de ajudar a convergência das lutas sociais e contribuir para a elaboração de um programa de ruptura com o capitalismo, dando prioridade a soluções anticapitalistas, antirracistas, ecologistas, feministas, internacionalistas e socialistas.
É fundamental lutar pela socialização dos bancos – com expropriação dos grandes accionistas –, pela suspensão do pagamento da dívida pública durante o tempo necessário para a realização de uma auditoria com participação cívica com vista a repudiar a parte ilegítima da dívida, pela criação de um imposto de crise muito elevado para os mais ricos, pela anulação das dívidas reclamadas de forma ilegítima às classes trabalhadoras (dívidas de ensino, dívidas hipotecárias abusivas, microcrédito abusivo, etc.), pelo encerramento das bolsas de valores – que são lugares de especulação
Trading
especulação
Operação de compra e venda de produtos financeiros (acções, futuros, produtos derivados, opções, warrants, etc.) realizada na mira de obter um lucro a curto prazo.
–, pela redução radical do tempo de trabalho – mantendo os salários, a fim de criar grande número de empregos socialmente úteis –, pelo aumento radical das despesas públicas de saúde e educação, pela socialização das empresas farmacêuticas e do sector da energia, pela relocalização de um máximo de produção e desenvolvimento dos circuitos de proximidade, além de outras medidas essenciais.
[1] O Banco Mundial concedeu empréstimos a Portugal até 1967.
[2] O vocabulário usado para designar os países aos quais o Banco mundial destinava os seus empréstimos evoluiu ao longo dos anos: de início empregou o termo «países atrasados», depois passou a «países subdesenvolvidos», optando enfim por «países em desenvolvimento», sendo alguns destes designados «países emergentes».
[3] «Developping countries, in aggregate, were net lenders to developed countries.» (World Bank, Global Development Finance 2003, p. 13). Na edição de 2005 de Global Development Finance, p. 56, o Banco escreve: «Os países em desenvolvimento são actualmente exportadores de capitais para o resto do mundo.» («Developping countries are now capital exporters to the rest of the world» – World Bank, GDF 2005, p. 56).
docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.
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