Série: 1944-2024, 80 anos de intervenção do Banco Mundial e do FMI, basta!
30 de Outubro de 2024 por Eric Toussaint
O FMI e o Banco Mundial têm 80 anos. 80 anos de neocolonialismo financeiro e de imposição de políticas de austeridade em nome do pagamento da dívida. 80 anos já bastam! As instituições de Bretton Woods devem ser abolidas e substituídas por instituições democráticas ao serviço de uma bifurcação ecológica, feminista e antirracista. Para assinalar estes 80 anos, publicamos todas as quartas-feiras, uma série de artigos que analisam em pormenor a história e os danos causados por estas duas instituições.
Contrariamente a uma ideia comum, o Banco Mundial não beneficia de impunidade enquanto instituição com estatuto jurídico de empresa. A secção 3 do artigo VII dos seus estatutos (articles of agreement) prevê explicitamente que o Banco Mundial pode ser levado a tribunal, nomeadamente um tribunal nacional nos países onde tem representação ou nos países onde emitiu títulos [1].
A possibilidade de processar o Banco Mundial foi prevista desde a sua fundação, em 1944, e nunca foi modificada, pela simples e boa razão de que os países que o fundaram consideraram que nunca conseguiriam vender os títulos do Banco se não garantissem aos compradores a possibilidade de recorrer à justiça em caso de falta de pagamento. O Banco financia os empréstimos que concede aos seus membros (países membros) contraindo empréstimos (via emissão de títulos – bonds) nos mercados financeiros. No início, esses títulos eram adquiridos por grandes bancos privados, principalmente norte-americanos. Atualmente outras instituições, incluindo fundos de pensões e sindicatos, também adquirem esses títulos.
É por isso que existe uma diferença fundamental entre o estatuto do Banco Mundial e o FMI, do ponto de vista da imunidade. O Banco Mundial não beneficia de imunidade, pois recorre aos serviços bancários e aos mercados financeiros em geral. Nenhum banqueiro daria crédito ao Banco Mundial se ele fosse imune. O FMI, pelo contrário, pode recorrer à imunidade, pois financia os seus próprios créditos, com base nas quota-partes desembolsadas pelos seus membros. Não é por razões humanitárias que a imunidade não é concedida ao Banco Mundial, mas sim para oferecer garantias aos financiadores.
Então é perfeitamente possível apresentar queixa contra o Banco Mundial em numerosos países (quase 100) onde dispõe de escritórios. É possível em Jacarta ou em Díli, capital de Timor Leste, tal como em Kinshasa, Bruxelas, Moscou ou Washington, onde o Banco tem representação, além de outros países.
O Banco Mundial tenta impedir que as suas vítimas apresentem queixas, recorrendo a acordos bilaterais com os governos nacionais, de modo a que estes se comprometam a não recorrer à justiça. Esses governos são submetidos a pressões vindas do Banco, no sentido de levantarem entraves a qualquer tentativa de queixa contra o Banco, o que é absolutamente escandaloso e nenhum juiz honesto devia aceitar [2].
Uma observação importante: nenhuma instituição, nenhum sujeito de direito internacional e nenhum indivíduo dispõe de imunidade se estiver implicado em crimes contra a humanidade. Além disso, não há prescrição. No que diz respeito a crimes contra a humanidade, o FMI e o Banco Mundial podem ser levados a tribunal.
Desde que o Banco Mundial concede empréstimos [3], uma grande parte deles serviu para colocar em prática políticas que prejudicaram centenas de milhões de cidadãos e cidadãs. O que é que isso significa? O Banco privilegiou sistematicamente empréstimos destinados a grandes infraestruturas, tais como: barragens [4]; investimentos em indústrias extrativas de matérias-primas (por exemplo, minas a céu aberto e construção de inúmeros gasodutos [5] ); políticas agrícolas que favorecem a exportação e provocam o abandono da agricultura de subsistência e a perda de segurança e soberania alimentar; a construção de centrais térmicas, grandes consumidoras de florestas tropicais. Além disso, o Banco Mundial socorreu inúmeras vezes regimes ditatoriais claramente responsáveis por crimes contra a humanidade: as ditaduras do Cone Sul da América Latina, entre os anos sessenta e os anos oitenta, numerosas ditaduras na África (Mobutu, de 1965 até a sua queda em 1997; o regime do apartheid na África do Sul), os regimes do antigo bloco soviético, tais como a ditadura de Ceaucescu na Romênia, as ditaduras no Sudeste Asiático e no Extremo Oriente, tais como a de Marcos nas Filipinas de 1972 a 1986, de Suharto na Indonésia de 1965 a 1998, os regimes ditatoriais da Coreia do Sul (1961-1981), da Tailândia (1966-1988), a ditadura de Ben Ali na Tunísia (1987-2011), a de Moubarak no Egito (1981-2011) e atualmente, no Egito, a ditadura de Abdu Fatah Al-Sisi.
Além disso, o Banco contribuiu, em conjunto com outros intervenientes, para sistematicamente desestabilizar os governos progressistas e democráticos, suprimindo-lhes todo o tipo de ajuda: o governo de Sukarno na Indonésia até à sua queda em 1965, o governo de Juscelino Kubitchek (1956-1960) e depois o de João Goulart no Brasil (1961-1964, finalmente derrubado por um golpe militar), o governo de Salvador Allende (1970-1973) no Chile…
Não nos esqueçamos dos empréstimos que o Banco concedeu às metrópoles coloniais (Bélgica, Grã-Bretanha, França…) para exploração de recursos naturais nos países que ocuparam até aos anos sessenta e que foram acrescentados à dívida externa dos Estados, quando estes se tornaram independentes. Por exemplo, o reembolso da dívida contraída pela Bélgica em nome do Congo Belga teve de ser assumido pelo Congo independente. Aconteceu o mesmo com o Quénia, Uganda, Nigéria, Gabão, Mauritânia, Argélia, Somália em relação às dívidas contraídas pelos governos das potências coloniais.
É preciso mencionar ainda os empréstimos destinados aos ajustes estruturais, concedidos pelo Banco desde os anos oitenta. Esses empréstimos não se destinam a projetos econômicos precisos: visam permitir a implementação de políticas globais, cuja finalidade é a abertura total das economias dos países «beneficiados» pelos investimentos e pelas importações, provenientes principalmente dos acionistas do Banco. O Banco apoia, assim, uma política de desnacionalização dos países sob assistência, que favorece os interesses de uma parte dos seus membros e de meia dúzia de potências industriais, cujas opções se impõem à maioria dos habitantes e dos países do Planeta. A natureza nociva, tanto das terapias estruturais como das terapias de «choque», está patente nas múltiplas e sucessivas crises após o Efeito Tequila, que afetou o México em 1994. As novas prioridades do Banco, como a privatização da água e da terra, combinadas com a sua recusa de aplicar as recomendações da comissão independente das indústrias extrativas, mostram claramente que a orientação do Banco não melhorou e que novas catástrofes sociais estão em curso e em preparação, em suma, potentes tsunamis provocados pela intervenção catastrófica do Banco Mundial!
Podemos imaginar que associações, representando os interesses das pessoas afetadas pelos empréstimos do Banco Mundial ou pelo apoio deste aos regimes ditatoriais, se constituam como assistentes e apresentem queixa nos tribunais nacionais contra o Banco. Nos países de common law, as class actions são ações em tribunal que permitem a um grande número de pessoas (individuais ou coletivas) recorrer aos tribunais contra práticas abusivas de certas empresas. Nos países de civil law que não possuem tais normas, é preciso reunir várias condições bastante estritas para recorrer à justiça (nomeadamente demonstrar que existe um «interesse pessoal em agir»). Contudo, certos processos coletivos, como o processo da Total em França [6], são equivalentes a class actions e constituem um exemplo de como processar o Banco Mundial e outras instituições financeiras internacionais.
Podemos imaginar também que os detentores dos títulos do Banco – não apenas banqueiros, mas também sindicatos – apresentem queixa contra o Banco pelo uso que este fez do dinheiro que lhe foi emprestado. O resultado positivo desses processos não é garantido, mas não vemos porque razão as associações de cidadãos não exerceriam esse direito para conseguirem que o Banco assuma suas responsabilidades. É inconcebível que a natureza nefasta dos atos de uma instituição como o Banco não seja um dia penalizada por decisão judicial.
A disposição dos estatutos do Banco Mundial (artigo VII, seção 8), que concede imunidade aos dirigentes e funcionários no exercício das suas funções, ocultou no passado a possibilidade de queixa contra o Banco enquanto pessoa coletiva (artigo VII, seção 3, ver nota 1 do presente texto). Ora, é mais importante fazer o Banco prestar contas, enquanto instituição, do que fazê-lo em relação aos seus executantes. Pode-se também acrescentar que, segundo a mesma disposição (artigo VII, seção 8), o Banco pode, por sua iniciativa própria, suspender a imunidade de que beneficiam os seus dirigentes e funcionários. Pode-se também conceber a interposição de uma queixa contra os altos dirigentes do Banco, após terem cessado funções.
Outro elemento para explicar a ausência de processos contra o Banco reside no fato de se ter levado muito tempo a compreender o caráter sistemático e generalizado das práticas lesivas do Banco. Muitas vezes, o Banco não surge em primeiro plano, porque são os governos nacionais que assumem, perante os cidadãos, as políticas exigidas pelo Banco Mundial.
Nos últimos anos foram instaurados vários processos contra o Banco Mundial, em especial contra a Sociedade Financeira Internacional (SFI) – a estrutura do grupo consagrada ao setor privado –, por grupos de vítimas. Em 2017, camponeses hondurenhos apresentaram queixa contra dois representantes do grupo Banco Mundial, por terem encorajado violações graves dos direitos humanos, ao financiarem as atividades de uma companhia produtora de óleo de palma, que recorria ao assassinato de quem se opunha aos projetos.
Em 2019 as populações de 13 aldeias do Oeste da Guiné-Conacri apre-sentaram queixa contra a SFI, pelo financiamento de uma mina de bauxita nociva. A queixa apresentada ao mediador independente da SFI destaca as violações sistemáticas das normas ambientais e sociais: confisco de terras, destruição do ambiente e dos meios de subsistência [7].
Em 2012 os pescadores e agricultores do Guzerate (Índia) recorreram ao mesmo mediador para denunciar a Mundra Ultra Mega Power Project, uma central térmica que utiliza carvão extraído das camadas sub-betuminosas, provocando a degradação da qualidade do ar e das condições de existência. Face à recusa da SFI de acatar as conclusões do seu próprio mediador, as vítimas apresentaram queixa na justiça norte-americana. Como acontece em todos os processos judiciais, a SFI tentou convencer a justiça dos EUA que goza de imunidade. Felizmente, em fevereiro de 2019, o Supremo Tribunal norte-americano levantou a imunidade que o banco pretendia fazer valer contra os prejuízos causados pelas suas atividades comerciais [8]. Foi o primeiro revés sofrido por esta instituição que despreza o direito internacional [9].
Em 21 de novembro de 1947 a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou uma convenção sobre os privilégios e imunidades das suas instituições [10]. O artigo 10º da convenção, seção 37, referente aos anexos e à aplicação da Convenção a cada instituição especializada, determina que a Convenção «tornar-se-á aplicável a uma instituição especializada quando esta tiver transmitido ao secretário geral das Nações Unidas o texto final do anexo que lhe diz respeito e o tiver notificado sobre a sua aceitação das cláusulas padrão modificadas pelo anexo (…)». O Banco reenviou a sua cópia.
O anexo VI refere-se ao Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (portanto o Banco Mundial). E que vemos? O Banco conseguiu incluir aí a parte dos seus estatutos onde se especifica em que circunstâncias perde imunidade! Portanto, o Banco preferiu, no âmbito da Nações Unidas, permanecer com o seu estatuto de Banco, em lugar de aproveitar a imunidade das agências da ONU. Eis o texto em questão: «A convenção (inclusive o presente anexo) aplicar-se-á ao Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (abaixo designado sob a forma de “Banco”) no âmbito das seguintes disposições: 1. o texto seguinte substituirá o da seção 4: “o Banco só poderá ser acionado legalmente perante um tribunal com jurisdição sobre os territórios dos países membros onde o Banco possua sucursal, onde tenha nomeado agente para receber pagamentos ou ordens de pagamento, ou onde tenha emitido ou garantido títulos mobiliários».
Portanto, é possível levar o Banco Mundial à justiça, ao abrigo da Convenção das Nações Unidas de 1947 e dos seus anexos.
Tradução: Maria da Liberdade e Rui Viana Pereira
[1] Seção 3, artigo VII: «Só poderão ser intentadas ações contra o Banco em tribunal jurisdicional competente nos territórios de um membro onde o Banco possua um departamento ou onde tenha nomeado um representante com o fim de aceitar citações ou notificações judiciais ou onde tenha emitido ou garantido títulos» («Actions may be brought against the Bank only in a court of competent jurisdiction in the territories of a member in which the Bank has an office, has appointed an agent for the purpose of accepting service or notice of process, or has issued or guaranteed securities.») Ver os estatutos do BM em https://www.fedlex.admin.ch/eli/cc/1992/2646_2646_2646/fr , consultado em 29/10/2024.
[2] Marrocos é um bom exemplo da cumplicidade entre os governos e o Banco Mundial. Ver Najib Akesbi, no site do CADTM: «Processo dos procuradores marroquinos contra o Banco Mundial», abril de 2014, https://www.cadtm.org/Proces-de-chercheurs-marocains e «Comment rendre la Banque mondiale responsable de ses actes devant la justice?», maio de 2015, https://www.cadtm.org/Comment-rendre-la-Banque-mondiale, consultado em 29/10/2024.
[3] O primeiro empréstimo remonta a 1947.
[4] Segundo o relatório da Comissão sobre as grandes barragens, de 60 a 80 milhões de pessoas foram deslocadas após a construção de grandes barragens. Em diversos casos, os direitos dessas pessoas em termos de indemnização e reinstalação não foram respeitados.
[5] Segundo relatório da Comissão sobre as Indústrias Extrativas, vindo a público em dezembro de 2003, uma grande parte dos projetos financiados pelo Banco Mundial teve efeitos negativos nas populações e países envolvidos.
[6] CNCD 11 11 11, «Le procès Total, un exemple à suivre pour stopper l’impunité des multinationales», publicado em 29/01/2020, https://www.cncd.be/france-proces-total-exemple-impunite-multinationales, consultado em 27/10/2024.
[7] Os documentos da queixa estão disponíveis em: https://www.inclusivedevelopment.net/wp-content/uploads/2019/02/CBG_CAO_Request-for-Mediation_FINAL-FRE.pdf.
[8] United States Supreme Court, Budha Ismail Jam et al., Petitioners v. International Finance Corporation, https://caselaw.findlaw.com/us-supreme-court/17-1011.html, consultado em 27/10/2024.
[9] Ver: Sushovan Dar, «Un jugement de la Cour suprême des Etats-Unis défie l’immunité incontestée de la Banque mondiale», abril/2019 : http://www.cadtm.org/Un-jugement-de-la-Cour-supreme-des-Etats-Unis-defie-l-immunite-incontestee-de.
[10] No artigo 1º da Convenção, intitulado «Definições e campo de aplicação», Seção 1, as instituições especializadas que são nomeadamente citadas são as seguintes: a Organização Internacional do Trabalho; a Organização das Nações Unidas para a alimentação e a agricultura; a Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura; a Organização da Aviação Civil Internacional; o Fundo Monetário Internacional; o Banque internationale pour la reconstruction et la mise en valeur; a Organização Mundial da Saúde; a União Postal Universal; a União Internacional das Telecomunicações. https://www.biicl.org/files/4292_un_convention_on_the_p&i_of_specialized_agencies.pdf consultado em 29/10/2024.
docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.
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