Série: 1944-2024, 80 anos de intervenção do Banco Mundial e do FMI, basta!

SUNFED versus Banco Mundial

31 de Janeiro de 2024 por Eric Toussaint


Em julho de 2024, o Banco Mundial e o FMI completarão 80 anos. 80 anos de neocolonialismo financeiro e de imposição de políticas de austeridade em nome do pagamento da dívida. 80 anos já bastam! As instituições de Bretton Woods devem ser abolidas e substituídas por instituições democráticas ao serviço de uma bifurcação ecológica, feminista e antirracista. Para assinalar estes 80 anos, publicamos todas as quartas-feiras, até julho, uma série de artigos que analisam em pormenor a história e os danos causados por estas duas instituições.


  1. As origens das instituições de Bretton Woods
  2. O Banco mundial ao serviço dos poderosos num clima de caça às bruxas
  3. Os conflitos entre a ONU e a dupla Banco Mundial/FMI desde as origens até aos anos setenta
  4. SUNFED versus Banco Mundial
  5. Porquê o Plano Marshall?
  6. Porque não é reproduzível a anulação da dívida alemã de 1953 no caso da Grécia e dos países em desenvolvimento?
  7. A Supremacia dos Estados Unidos no Banco Mundial
  8. Banco Mundial/FMI : o apoio às ditaduras
  9. O Banco Mundial e as Filipinas
  10. O apoio do Banco Mundial à ditadura turca (1980-1983)
  11. O Banco Mundial e o FMI na Indonésia: Uma intervenção emblemática
  12. As mentiras teóricas do Banco Mundial
  13. Coreia do Sul e o milagre desvendado
  14. A armadilha do endividamento
  15. O Banco Mundial apercebe-se da chegada da crise da dívida externa
  16. A crise da dívida mexicana e o Banco Mundial
  17. O Banco Mundial e o FMI: As agências financeiras dos credores
  18. Os presidentes Barber Conable e Lewis Preston (1986-1995)
  19. A operação de sedução de James Wolfensohn (1995-2005)
  20. A Comissão Meltzer sobre as Instituições Financeiras Internacionais no Congresso dos Estados Unidos em 2000
  21. As contas do Banco Mundial
  22. De Paul Wolfowitz (2005-2007) a Ajay Banga (2023-...): os homens de mão do presidente dos EUA continuam à frente do Banco Mundial
  23. O Banco Mundial e o FMI deitaram mão a Timor-Leste, um estado oficialmente nascido em maio de 2002
  24. Crise climática ecológica: os aprendizes de feiticeiro do Banco Mundial e do FMI
  25. O ajuste estrutural e o consenso de Washington não foram abandonados
  26. Os empréstimos envenenados do Banco Mundial e do FMI ao Equador
  27. Equador: A resistência contra as políticas fomentadas pelo Banco Mundial, o FMI e os outros credores entre 2007 e 2011
  28. De Rafael Correa a Guillermo Lasso via Lenín Moreno
  29. O Banco Mundial não antecipou a chegada da primavera árabe e defende a continuação das políticas que produziram as revoltas populares
  30. O Banco Mundial, o FMI e os direitos humanos
  31. Para acabar com a impunidade do Banco Mundial
  32. ABC do Banco Mundial 2.0
  33. ABC do Fundo Monetário Internacional (FMI) 2.0

Desde o início das atividades do Banco Mundial, os governos dos países em desenvolvimento, a começar pelos países da América Latina e, logo de seguida, pela Índia, criticam o facto de não existirem, para eles, facilidades equivalentes às do Plano Marshall, que se limita à Europa. Com efeito, os empréstimos do Banco foram concedidos a taxas de juro Juro Quantia paga em retribuição de um investimento ou um empréstimo. O juro é calculado em função do montante do capital investido ou emprestado, da duração da operação e de uma taxa acordada. de mercado, enquanto a ajuda do Plano Marshall é, sobretudo, concedida sob a forma de donativo. Uma parte mais pequena da ajuda do Plano Marshall consiste em empréstimos concedidos sem juros ou a uma taxa de juro inferior às de mercado.

Desde 1949, um economista indiano propõe a criação de uma nova organização internacional no âmbito da ONU. Pretende designá-la “Administração das Nações Unidas para o Desenvolvimento Económico”. Alguns anos mais tarde, a ideia surge, de novo, no seio da ECOSOC: o SUNFED (Special United Nations Fund for Economic Development) é então formado. De 1950 a 1960, diversos países do Terceiro Mundo, assim como a URSS e a Jugoslávia, fazem, de forma sistemática, campanha na ONU no sentido de criarem o SUNFED e depois de o reforçarem. Os governos dos Estados Unidos e de outras grandes potências industriais não querem ouvir falar de um fundo especial controlado pela ONU e separado do Banco Mundial

Entre as razões que levam os PED a exigirem a formação de uma agência especializada da ONU, para financiar o seu desenvolvimento, encontra-se a questão do direito de voto. Querem uma agência da ONU de modo a assegurar a aplicação da regra “um país, um voto”, em oposição à regra de tipo censitário aplicada pelo Banco. É pela mesma razão, mas no sentido inverso, que os Estados Unidos e outras potências se opõem frontalmente a essa proposta: os poucos países ricos querem evitar serem postos em minoria.

Segundo os historiadores oficiais do Banco, Mason e Asher, e mais tarde Catherine Gwin, os Estados Unidos lançam, em 1954, uma primeira contraproposta, implementada desde 1956 pelo Banco através da criação da Sociedade Financeira Internacional (SFI), destinada a conceder empréstimos às empresas privadas dos PED [1]. A criação da SFI não resolve o contencioso e a campanha dos PED, a favor do SUNFED, ganha dimensão: em 1958, esse Fundo Especial das Nações Unidas está preparado para financiar os pré-investimentos nos PED.

Infelizmente, surgem, de imediato, divisões no lado dos países do Terceiro Mundo. A Índia, que no início apoiava o SUNFED, muda de lado e torna-se favorável à segunda contraproposta dos Estados-Unidos. A proposta consiste na criação de uma Associação Internacional de Desenvolvimento (AID), ligada ao Banco Mundial, como alternativa ao SUNFED [2]. O lobby indiano, pró-Washington, é persuadido de que a Índia terá vantagens com a AID, porque as grandes potências, que dominam as instituições de Bretton Woods, compreenderão a necessidade de privilegiar a Índia, devido à posição estratégica que ocupa. E a Índia avalia bem: desde o primeiro ano de existência da AID, recebe 50 % dos empréstimos.

O governo dos Estados Unidos, ao propor a Fundação da AID, pretende matar dois coelhos com um cajadada: por um lado, impedir as Nações Unidas de continuarem a reforçar o SUNFED e de responderem, assim, às necessidades dos PED; por outro lado, encontrar um meio de utilizar as reservas em moeda dos PED, que o Tesouro dos Estados Unidos tinha acumulado desde 1954, devido à venda dos seus excedentes agrícolas no contexto da lei 480 [3]. Diversos autores concordam que foi o senador Mike Monroney, de Oklahoma, a lançar a ideia em primeiro lugar: submete uma resolução ao Senado, propondo implementar a AID em cooperação com o Banco, e propõe que as reservas não convertíveis sejam alocadas a esta agência para conceder empréstimos a longo prazo e com baixas taxas de juro, reembolsáveis em moeda local. Um dos objetivos é conceder empréstimos a países pobres para que possam comprar excedentes agrícolas norte-americanos [4]. O presidente do Banco, Eugène Black, declarará mais tarde: “Na realidade, a AID foi uma ideia concebida para contrariar às aspirações de um SUNFED” [5]. Vale a pena citar aqui Mason e Asher, que afirmam: “Enquanto organização internacional, filiada do Banco Mundial, a AID é uma ficção sofisticada. Denominada “associação” e dotada de estatutos, de funcionários, de membros de governo em abundância e de todas as características exteriores de outras agências internacionais, ela é apenas, no momento, um fundo administrado pelo Banco Mundial” [6].

Os Estados Unidos contribuem inicialmente com 42% dos fundos da AID, o que lhes assegura também a predominância.

Paralelamente à criação da AID, o CAD (Comité de Ajuda ao Desenvolvimento da OCDE) é constituído em Paris. Trata-se da estrutura que “coordena” a ajuda ao desenvolvimento bilateral dos Estados industrializados. O SUNFED é, então, definitivamente enterrado. Os Estados Unidos impuseram as instituições que tinham a certeza de controlar.

Financiamento da AID

A AID não contrai empréstimos nos mercados financeiros. O dinheiro que empresta provém de doações feitas regularmente pelos países membro (principalmente os países industrializados mais ricos, aos quais se acrescenta a OPEP desde os anos setenta) e dos reembolsos que recebe.

De quatro em quatro anos, os países contribuintes reajustam o montante que compõe o fundo comum: são negociações duras. É, sobretudo, ocasião para grandes debates no Congresso dos Estados Unidos, porque é quem decide a quantia concedida. Realizam-se intensas negociações entre o Congresso, o governo de Washington e a presidência norte-americana do Banco Mundial/AID. No entanto, os montantes em jogo são muito modestos. O interesse do negócio é garantir que o dinheiro emprestado pela AID regresse aos doadores sob a forma de compras (ajuda vinculada) [7].


Tradução: Maria da Liberdade


Notas

[1Mason, Edward S. et Asher, Robert E. 1973, pp.384-385 ; Gwin, Catherine. in Kapur, Devesh, Lewis, John P., Webb, Richard. 1997. p.206 ; Van de Laar, Aart. 1980. p.57.

[2Kapur, Devesh, Lewis, John P., Webb, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, Volume 1, p. 1127.

[3Van de Laar, Aart. 1980. p.57; Gwin, Catherine , in Kapur, Devesh, Lewis, John P., Webb, Richard. 1997. p.206 ; Mason, Edward S. e Asher, Robert E. 1973, pp. 386-387.

[4Kapur, Devesh, Lewis, John P., Webb, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, Volume 1, p. 1128

[5Mason e Asher, p.386.

[6Mason e Asher, pp.380-381.

[7Kapur, Devesh, Lewis, John P., Webb, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, Volume 1, p. 1149.

Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

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