Série: 1944-2024, 80 anos de intervenção do Banco Mundial e do FMI, basta!
15 de Maio por Eric Toussaint
Em julho de 2024, o Banco Mundial e o FMI completarão 80 anos. 80 anos de neocolonialismo financeiro e de imposição de políticas de austeridade em nome do pagamento da dívida. 80 anos já bastam! As instituições de Bretton Woods devem ser abolidas e substituídas por instituições democráticas ao serviço de uma bifurcação ecológica, feminista e antirracista. Para assinalar estes 80 anos, publicamos todas as quartas-feiras, até julho, uma série de artigos que analisam em pormenor a história e os danos causados por estas duas instituições.
O mandato de Barber Conable (1986-1991)
O congressista republicano Barber Conable sucede ao banqueiro Allan W. Clausen, num mandato que começou em julho de 1986 e terminou em agosto de 1991. James Baker, secretário de Estado do tesouro, e Ronald Reagan escolheram-no devido ao seu conhecimento profundo dos bastidores do Congresso americano. De facto, o Executivo tem muito a fazer com a sua maioria parlamentar, porque muitos dos eleitos republicanos questionam a importância do Banco Mundial na política externa dos Estados Unidos (ver Erro: origem da referência não encontrada). Barber Conable tem 20 anos de experiência parlamentar e presidiu à comissão financeira do Congresso. James Baker e Ronald Reagan pretendem que Barber Conable adoce os republicanos recalcitrantes e os convença a deixarem a Casa Branca conduzir o barco do Banco Mundial. A tarefa é complicada e Barber Conable acaba por ficar numa situação muito difícil de sustentar. Embora ele pretendesse desenvolver as actividades do Banco Mundial, a Casa Branca fez concessões aos recalcitrantes, limitou os meios disponíveis do Banco e exigiu que Barber Conable reduzisse a actividade do Banco. Conable segue esta orientação, contrariando uma parte do staff da direcção do Banco, assim como o restante pessoal. Em 1987, a reorganização interna do Banco torna-se uma verdadeira dança de cadeiras. Diversos altos dirigentes pedem a demissão. [1]
Barber Conable encontra ainda outras dificuldades. Vários grandes projectos modelo do Banco são objecto de fortíssima contestação por parte das populações envolvidas e dos movimentos de defesa do meio ambiente. Os três projectos que suscitam maiores protestos são: o programa Polonoroeste na Amazónia brasileira, [2] as múltiplas barragens no rio Narmada na Índia, o programa de transmigração e a barragem Kedung Ombo na Indonésia. [3] A maior mobilização ocorre na Índia, onde 50 000 manifestantes vindos de todo o país desfilam contra a barragem, em setembro de 1989, na cidade de Harsud, no Estado de Madhya Pradesh. Um quarto programa do Banco também levanta fortes críticas por parte de organizações de defesa dos direitos humanos: trata-se do projecto hidroeléctrico de Ruzizi II, relacionado com o Zaire e com o Ruanda e envolvendo acima de tudo a deslocalização sem indemnização de 2500 agricultores [4]. Barber Conable promete que doravante o Banco Mundial terá em consideração o impacto ambiental dos seus projectos e providenciará que a população afectada por eles seja correctamente indemnizada. [5] É, de facto, uma tarefa titânica para o Banco, que apenas na Índia financiara, entre 1978 e 1990, 32 projectos que implicaram a transferência forçada de aproximadamente 600 000 pessoas. [6]
Em 1988, a assembleia anual do Banco Mundial e do FMI, reunida em Berlim Ocidental, foi recebida por 80 000 manifestantes que denunciaram as suas políticas antissociais. Foi a primeira acção de protesto em massa contra as instituições de Bretton Woods.
Os motins populares nos países atingidos pelas políticas de ajustamento estrutural e a degradação das condições de vida das populações «ajustadas» levam o Banco Mundial a considerar, após dez anos de silêncio, o problema da pobreza. O Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial, em 1990, é totalmente consagrado a esse problema.
É também sob a presidência de Barber Conable que o Banco começa a falar sistematicamente de «boa governança» [7]. Em 1990, Conable declara a alguns membros africanos do Banco:
«Permitam-me a franqueza: a incerteza política e o reinado da arbitrariedade em tantos países da África Subsaariana são obstáculos maiores ao seu desenvolvimento […] Ao dizer isto, não falo de política mas coloco-me como defensor da transparência e da responsabilidade, dos direitos humanos e da lei. A governabilidade está ligada ao desenvolvimento económico e os países doadores dão a entender cada vez mais que não apoiarão sistemas ineficazes que não correspondam às necessidades básicas da população.» [8]
Essa reviravolta do Banco reflecte a mudança levada a cabo por Washington no fim dos anos oitenta e é analisada no capítulo sobre a Coreia. A retórica do Banco sobre o respeito pelos direitos humanos e pela lei nunca se traduziu nas condições impostas aos países sob ajustamento estrutural. De facto, o seu discurso não o impediu, por exemplo, de apoiar a ditadura de Suharto na Indonésia até 1998.
O mandato de Lewis Preston (1991-1995)
Com a nomeação de Lewis Preston para direcção do Banco Mundial, em 1991, o presidente George Bush colocou novamente à frente da instituição um banqueiro de primeira linha. Lewis Preston era até então presidente do grande banco J-P Morgan and Co. Possuía um trajecto marcante à frente desse banco importante de Nova Iorque, o que lhe permitiu tirar mais proveito da crise da dívida, que tinha eclodido em 1982.
O mandato de Lewis Preston teve início em junho de 1991 com o enorme escândalo político-financeiro relacionado com a falência do Bank of Credit and Commerce International (BCCI), que quase envolveu directamente o Banco Mundial. O BCCI, especializado na lavagem de dinheiro, foi fechado por decisão das autoridades britânicas em julho de 1991. A sua falência causou uma perda de aproximadamente 20 mil milhões de dólares a 2 milhões de investidores. O BCCI foi considerado culpado dos seguintes delitos: envolvimento em lavagem de dinheiro, corrupção, apoio ao terrorismo, tráfico de armas, venda de tecnologia nuclear, evasão fiscal, contrabando, imigração ilegal e compras ilícitas no sector bancário e imobiliário. O BCCI, activo Activo Em geral o termo «activo» refere um bem que possui um valor realizável, ou que pode gerar rendimentos. Caso contrário, trata-se de um «passivo», ou seja, da parte do balanço composta pelos recursos de que dispõe uma empresa (os capitais próprios realizados pelos accionistas, as provisões para risco e encargos, bem como as dívidas). em 78 países, onde dispunha de 400 agências, estava estreitamente ligado à CIA. [9] Segundo Bruce Rich, o Banco Mundial tinha utilizado ocasionalmente o BCCI para a concessão de empréstimos em diversos países africanos. Ainda de acordo com Rich, vários altos dirigentes do Banco mantinham relações estreitas com os dirigentes do BCCI. [10]
Lewis Preston faz o seu primeiro grande discurso por ocasião de uma monumental operação mediática em torno do Banco Mundial e do FMI, na assembleia anual conjunta, em outubro de1991, em Bangkok (era a primeira assembleia anual do Banco e do FMI numa capital do Terceiro Mundo desde a assembleia de Seul em 1985). Quinze mil governantes e banqueiros de todo o mundo estiveram reunidos durante três dias. O evento teve um custo de dezenas de milhões de dólares para as autoridade tailandesas. Lewis Preston proferiu um discurso entusiástico a favor da mundialização, afirmando que o Banco estava próximo dos pobres, sensível aos problemas ambientais e actuando em prol das mulheres. Eis um curto excerto do seu discurso:
«A redução da pobreza, na qual estou pessoalmente envolvido, é o principal objectivo do grupo Banco Mundial […]. O grupo Banco Mundial tem em consideração os interesses dos pobres para que o crescimento seja equitativo, os aspectos ambientais para que o desenvolvimento seja autossustentável […] e o papel das mulheres, que é vital para o esforço de desenvolvimento.» [11]
O futuro é radioso, já que o mundo é apenas um após a queda do muro de Berlim. [12] O desafio do Banco é integrar no mundo globalizado todos os países que fizeram parte do Bloco de Leste. A algumas centenas de metros do local da reunião, ocorria uma manifestação de 20 000 pessoas que se opunham ao novo regime ditatorial, empossado há oito meses, [13] e exigiam o regresso da democracia.
Em dezembro de 1991, o economista-chefe do Banco, Lawrence H. Summers, redigiu um comentário à edição de 1992 (em preparação) do Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial inteiramente consagrado ao meio ambiente, devido à Cimeira da Terra programada para maio de 1992. O comentário de Lawrence H. Summers é confidencial. Summers defende a exportação de indústrias poluentes do Norte para o Sul, «manifestamente subpoluído», como um meio racional de criar mais desenvolvimento industrial e aliviando as pressões da poluição no Norte. Eis alguns excertos do texto de Lawrence Summers: «O Banco Mundial deveria incentivar mais a deslocalização das indústrias poluentes para os países menos avançados»; «A lógica económica segundo a qual devíamos desembaraçar-nos dos dejectos tóxicos nos países de baixos salários é, no meu entender, impecável [14] e devíamos considerá-la seriamente». Ventos favoráveis colocam esse documento nas mãos da organização ambiental Greenpeace, que o torna público. O semanário neoliberal britânico The Economist publica-o em fins de dezembro de 1991, [15] quando Lewis Preston inicia a sua primeira tournée em África. É apanhado de surpresa pelos jornalistas que lhe perguntam se concorda com o seu economista-chefe quando este escreve: «Sempre achei que os países de baixa densidade demográfica são consideravelmente menos poluídos» [16].
Em fevereiro de 1992, Willi Wapenhans, vice-presidente do Banco, envia para Lewis Preston um relatório confidencial de avaliação do conjunto de projectos financiados pelo Banco (aproximadamente 1300 projectos em andamento em 130 países). As conclusões são alarmantes: 37,5 % dos projectos são insatisfatórios em termos de cronogramas (contra 15 % em 1981), apenas 22 % dos compromissos financeiros estão de acordo com as directrizes do Banco.
Em maio de 1992, alguns dias antes do início da Cimeira da Terra, a direcção do Banco recebe os resultados do estudo independente relativo às barragens sobre o rio Narmada na Índia. Lewis Preston confiou a direcção do estudo a um parlamentar dos Estados Unidos, Bradford Morse. O relatório estima que a barragem e os canais correspondentes vão deslocar 240 000 pessoas em vez das 100 000 pessoas previstas. As conclusões provocam pânico na direcção do Banco. Era preciso que o relatório permanecesse em segredo até ao fim da Cimeira da Terra, a qualquer preço. E ele permanece.
Finalmente, o Banco Mundial sai-se muito bem na Cimeira da Terra, realizada no Rio de Janeiro, em que participam 118 chefes de Estado. A reunião é coberta por 9000 jornalistas. Durante a reunião, o Banco é encarregue da gestão do Global Environment Facility (GEF), o Fundo Global para o Meio Ambiente, pelo qual devem passar a maior parte dos recursos relativos à operacionalização da Agenda 21 adoptada nessa reunião planetária.
Por outro lado, o Banco Mundial dedica-se ao apoio à transição dos países do antigo Bloco de Leste para uma economia capitalista. Isso resulta numa venda generalizada a baixo preço das empresas públicas que foram privatizadas em proveito de uma nova classe capitalista maioritariamente mafiosa.
Joseph Stiglitz, economista-chefe do Banco Mundial, de 1997 a 2000, mostra muito bem que a política do Banco Mundial na Rússia estava muito distante da «boa governança» que preconizava no resto do mundo. Referindo-se ao período durante o qual Lewis Preston foi presidente do Banco, escreve: «Não nos espantemos se os ardentes defensores do mercado manifestaram uma marcante afinidade com velhos métodos: na Rússia, o presidente Yeltsin [17], munido de poderes muitíssimo maiores do que qualquer dos seus homólogos das democracias ocidentais, foi incentivado a restringir a Duma (parlamento democraticamente eleito) e a promulgar reformas por decreto» [18]. As empresas públicas foram vendidas por uma bagatela. «O governo, submetido a uma forte pressão por parte dos Estados Unidos, do Banco Mundial e do FMI para privatizar rapidamente, cedeu as empresas públicas por uma miséria» [19]. A privatização converteu-se numa vasta pilhagem que beneficiou as oligarquias que colocaram no Ocidente uma parte do dinheiro desviado, para que os capitais fossem lavados e ficassem fora do alcance da justiça. «A privatização correspondente à abertura do mercado de capitais não conduziu à criação de riqueza, mas antes à pilhagem de activos. Era perfeitamente lógico. Uma oligarquia que acabara de utilizar a sua influência política para se apropriar de bens públicos que valiam milhares de milhões, pagando por eles uma miséria, é natural que retire o dinheiro do país» [20].
Foi durante o mandato de Lewis Preston que o Banco Mundial e o FMI comemoraram com grande pompa, em Madrid, o seu meio século de existência. Nesse momento, uma grande coligação de movimentos sociais (entre eles os principais sindicatos de Espanha, UGT e Comisiones Obreras, http://www.ccoo.es/), de movimentos terceiro-mundistas e de ONG constituiu-se sob a denominação «As Outras Vozes do Planeta» e manteve durante quatro dias inúmeros debates e uma manifestação de 20 000 pessoas gritando como slogan principal: «50 anos, já basta».
O fim do mandato de Lewis Preston foi marcado pela crise Tequila, que atingiu o México a partir de dezembro de 1994. O México inaugurou uma série de crises financeiras que atingiram outros países emergentes durante o mandato do sucessor de Lewis Preston na presidência do Banco, James Wolfensohn.
Tradução de Maria da Liberdade. Revisão de Rui Viana Pereira
[1] Kapur, Devesh, Lewis, John P., Webb, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, vol. 1, p. 1199-1201.
[2] Chico Mendes, um dos líderes dos protestos no Brasil, foi assassinado em dezembro de 1988, por assassinos a soldo de latifundiários que se aproveitavam dos subsídios do Banco Mundial.
[3] Rich, Bruce, 1994, Mortgaging the Earth, Earthscan, p. 145-170.
[4] Rich, Bruce. 1994. Mortgaging the Earth, Earthscan, London, p. 150.
[5] A política ambiental do Banco Mundial será analisada no meu próximo livro sobre o Banco Mundial intitulado L’horreur productiviste, a editar em 2007.
[6] Rich, Bruce. 1994. Mortgaging the Earth, Earthscan, London, p. 252.
[7] «Bonne gouvernance» no original. (N. do E.)
[8] Citado por George, Susan e Sabelli, Fabrizio. 1994. Crédits sans Frontières, col. Essais, La Découverte, Paris, p. 180.
[9] Ver na íntegra o relatório dedicado ao BCCI, em 1992, elaborado pelos senadores John Kerry e Hank Brown, http://www.fas.org/irp/congress/1992_rpt/bcci/
Ver também: http://en.wikipedia.org/wiki/Bank_of_Credit_and_Commerce_International
[10] Rich, Bruce. 1994. Mortgaging the Earth, Earthscan, London, p. 21-22.
[11] «Address by Lewis T. Preston to the Board of Governors of the World Bank Group», World Bank Press release, 15 October 1991.
[12] Deve-se acrescentar que, quando Lewis Preston proferiu o seu discurso, o fim da URSS era um facto. O golpe final no sentido da dissolução da URSS foi dado por Boris Yeltsin, em agosto de 1991, em Moscovo. A URSS foi dissolvida em Dezembro de 1991.
[13] Rich, Bruce. 1994. Mortgaging the Earth, Earthscan, London, p. 24.
[14] Lawrence H. Summers, «World Bank office memorandum, 12 December 1991», citado por Rich, Bruce. 1994. Mortgaging the Earth, Earthscan, London, p. 247.
[15] O diário britânico Financial Times dedica-lhe, a 10 de fevereiro de 1992, um longo artigo assinado por Michael Prowse e intitulado «Proteger o Planeta Terra da influência dos economistas» («Save the Planet Earth from Economists»)
[16] Lawrence H. Summers, «World Bank office memorandum, 12 December 1991», citado por Rich, Bruce. 1994. Mortgaging the Earth, Earthscan, London, p. 247.
[17] Boris Yeltsin presidiu à Rússia entre 1992 e 1999. A situação descrita por Joseph Stiglitz aconteceu em 1993.
[18] Stiglitz, Joseph E. 2002, La Grande désillusion, Fayard, Paris, p. 184.
[19] Idem, p. 194.
[20] Ibid., p. 193.
docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.
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