Série: ABC do Capital no Século XXI de Thomas Piketty
Parte 5
29 de Março de 2021 por CADTM
Piketty propõe «uma reactualização adequada do programa social-democrata e fiscal liberal do século passado». Segundo Piketty, é preciso defender e melhorar tanto o Estado social como o imposto progressivo sobre os rendimentos. Também é preciso inovar, «instaurando um imposto mundial e progressivo sobre o capital, acompanhado duma grande transparência financeira». Esta «instituição permitiria evitar uma espiral desigualitária sem fim e regular eficazmente a inquietante dinâmica de concentração mundial dos patrimónios» [1].
Piketty propõe «uma reactualização adequada do programa social-democrata e fiscal liberal do século passado»
Piketty não alimenta ilusões quanto a uma aplicação prática e rápida da sua proposta: «O imposto mundial sobre o capital é uma utopia: é difícil imaginar a curto prazo que o conjunto das nações de todo o mundo se ponha de acordo sobre a aplicação de uma tabela de tributação aplicável a todas as fortunas do planeta, e que depois reparta harmoniosamente as receitas entre os países. Mas é uma utopia útil (...)»
Piketty especifica: «A meu ver, o objectivo deve ser um imposto anual e progressivo aplicado sobre o capital [2] ao nível individual, ou seja, sobre o valor líquido dos activos que cada um controla» [3]. Propõe três variantes para o imposto progressivo sobre o capital privado.
Para Piketty, o imposto sobre o capital forneceria um complemento modesto aos rendimentos actuais dos Estados
Piketty acrescenta: «Actualmente, as organizações internacionais que têm a seu cargo a regulamentação e vigilância do sistema financeiro mundial, a começar pelo Fundo Monetário Internacional, apenas possuem um conhecimento aproximado da repartição mundial dos activos financeiros, em particular do volume de activos detidos através dos paraísos fiscais.» [4] Nesse sentido, o «imposto sobre o capital seria uma espécie de cadastro financeiro, que não existe actualmente» [5].
Não podemos deixar de apoiar a proposta dum imposto progressivo sobre o património privado, ou o capital, para retomar a expressão usada por Th. Piketty. Mas também não podemos concordar com ele quando afirma que se deve dar prioridade absoluta a esse objectivo. É necessário um verdadeiro programa de medidas complementares. O imposto progressivo sobre o capital, assim como a anulação da dívida ilegítima e a redução radical da parte da divida pública que não seja identificada como ilegítima, devem fazer parte de um vasto programa cuja realização permitirá iniciar uma transição para um modelo pós-capitalista e pós-produtivista. Tal programa, que deveria ter uma dimensão mundial e europeia, começando por ser posto em prática num ou mais países, inclui nomeadamente o abandono das políticas de austeridade, a redução generalizada dos tempos de trabalho sem perda salarial e com o correspondente aumento de contratos de trabalho, a socialização do sector bancário, uma reforma fiscal global, medidas para assegurar a igualdade entre homens e mulheres e a aplicação de uma política consistente de transição ecológica [6].
Piketty: o objectivo deve ser um imposto anual e progressivo sobre o capital
Piketty tem a ilusão de conseguir convencer que é necessário dar prioridade absoluta à sua proposta, mas o que pode ser verdadeiramente eficaz e unificador é definir uma plataforma comum com o máximo número de forças favoráveis a uma mudança democrática radical a favor da justiça social.
Por outro lado, como afirma o texto «Anular a dívida ou taxar o capital: um falso dilema»: «A crítica essencial que se pode fazer a Thomas Piketty é que ele pensa que a sua solução pode funcionar dentro do quadro do sistema actual. Ele propõe um imposto progressivo sobre o capital para redistribuir as riquezas e salvaguardar a democracia, mas não põe em questão as condições em que essas riquezas são produzidas e as consequências daí resultantes. A proposta de Piketty apenas remedeia um dos efeitos do funcionamento do sistema económico actual, não atacando a verdadeira causa do problema. Para começar, admitamos que se consegue impor, por meio de um combate colectivo, uma tributação sobre o capital, à qual aspiramos; as receitas geradas por esse imposto correm o risco de ser largamente absorvidas pelo reembolso das dívidas ilegítimas se não actuarmos no sentido da sua anulação. Mas, sobretudo, não podemos contentar-nos com uma partilha mais equilibrada das riquezas, se estas forem produzidas por um sistema predador que não respeita nem as pessoas nem os bens comuns, e que acelera sem freio a destruição dos ecossistemas. O capital não é um simples “factor de produção” que “desempenha um papel útil” e que, portanto, mereceria “naturalmente” um rendimento de 5 %, como sugere Piketty; é também e, sobretudo, uma relação social que se caracteriza pelo domínio de quem tem posses sobre o destino das sociedades. O sistema capitalista, enquanto modo de produção, está na origem não só de desigualdades sociais cada vez mais insustentáveis, mas também coloca em perigo o nosso ecossistema, pilha os bens comuns, origina a alienação através da mercantilização, promove uma lógica de acumulação que reduz a nossa humanidade a homens e mulheres incapazes de sublimar, obcecados pela posse de bens materiais e esquecidos da imaterialidade que nos distingue.» [7]
O imposto sobre o capital seria uma espécie de cadastro financeiro mundial, que não existe actualmente
Uma das características da iniciativa de Piketty, e ao mesmo tempo uma das suas fraquezas, é o facto de ele não apelar à mobilização social para obter uma inflexão das políticas em curso.
É certo que ele tem consciência de que a acção dos mais humildes teve um papel importante nas orientações seguidas após a Primeira Guerra Mundial; ele denuncia a repressão a que foram sujeitos os mineiros de Marikana na África do Sul em Agosto de 2012, mas na centena de páginas que consagra no fim do livro à apresentação de propostas e à reflexão sobre as soluções para os problemas centrais, nem uma é consagrada à acção dos cidadãos organizados, nenhuma alusão faz ao movimento dos Indignados, apesar de na parte precedente às propostas mencionar o movimento Occupy Wall Street. Resta, quando muito, a esperança de que trabalhos como os seus contribuam para uma tomada de consciência capaz de induzir mudanças. É a grande fraqueza da iniciativa de Piketty. Não é de espantar, portanto, que ele proponha a criação, à margem do parlamento europeu, de um «parlamento orçamentário da zona euro Zona euro Zona composta por 18 países que utilizam o euro como moeda: Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Espanha, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Irlanda, Itália, Letónia (a partir da 1-01-2014), Luxemburgo, Malta, Países Baixos, Portugal, Eslováquia e Eslovénia. Os 10 países membros da União Europeia que não participam na zona euro são: Bulgária, Croácia, Dinamarca, Hungria, Lituânia, Polónia, República Checa, Roménia, Reino Unido e Suécia. » [8]. Considera ele que «esse parlamento poderia ser constituído por cinco dezenas de membros de cada um dos grandes países da zona, em termos proporcionais à sua população. Os membros poderiam ser nomeados pelas comissões de finanças e dos assuntos sociais dos parlamentos nacionais, ou escolhidos doutra forma» [9]. Mais adiante, não vê com desagrado a proposta de «eleição por sufrágio universal de um presidente da União Europeia, proposta essa que logicamente deveria ser acompanhada de uma extensão dos seus poderes» [10]. Piketty compromete-se numa via de reformas que não põem em questão os tratados e a arquitectura europeia, onde o domínio exercido pelos interesses do grande capital está gravado na pedra. Ora é indispensável uma mudança radical que passe pela revogação dos tratados e pela abertura de um processo constituinte, com abertura de um caderno de reivindicações pelos cidadãos unidos na acção.
Piketty não apela à mobilização social para provocar uma inflexão das políticas em curso
Em conclusão, o trabalho de Thomas Piketty tem grande valor no plano da colecta de dados sobre as desigualdades no decurso dos dois últimos séculos e fornece uma descrição límpida da sua evolução. O seu livro constitui um instrumento muito útil e alimenta o debate sobre as alternativas.
Tradução: Maria da Liberdade
Revisão: Rui Viana Pereira
[1] p. 835. Thomas Piketty, O Capital no Século XXI, ed. Círculo de Leitores, 2014, 912 pp.; ed. Amazon/Intrínseca, 2014; ed. Intrínseca, Rio de Janeiro, 2014. 669 pp. Todas as referências por página apresentadas ao longo deste texto referem-se à paginação da edição francesa: Le capital au XXIe siècle, Le Seuil, 2013, 970 pp. p. 835.
[2] Não se perca de vista que Piketty dá uma definição de capital privado que engloba os bens mobiliários e imobiliários dos 50 % mais humildes.
[3] Piketty 2013, p. 838
[4] Piketty 2013, p. 842.
[5] Piketty 2013, p. 843.
[6] Ver o texto já citado de Thomas Coutrot, Patrick Saurin e Éric Toussaint, «Anular a dívida ou taxar o capital: um falso dilema», http://cadtm.org/Anular-a-divida-ou-taxar-o-capital. Ver também Damien Millet e Eric Toussaint, «Europa: qual o programa de urgência para enfrentar a crise?», publicado a 10-06-2012, http://cadtm.org/Europa-qual-o-programa-de-urgencia
[8] Piketty 2013, p. 916.
[9] Piketty 2013, Nota 1, p. 916.
[10] Piketty 2013, p. 917.
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