Série : L’ABC du Capital au XXIe siècle de Thomas Piketty

Thomas Piketty e o Capital no Século XXI: rigor na investigação, confusão na teoria

Partie 6

8 de Abril de 2021 por CADTM


Se por um lado Thomas Piketty é rigoroso na colheita de dados e produziu uma obra útil em que analisa a distribuição desigual dos patrimónios e dos rendimentos, por outro lado algumas das suas definições são nitidamente confusas e contestáveis. Tomemos por exemplo a definição de capital proposta por Piketty [1]: «Em todas as civilizações o capital preenche duas importantes funções económicas: por um lado para habitação (isto é, para produzir “serviços de alojamento”, cujo valor é medido pelo valor de aluguer das habitações: é o valor do bem-estar por dormir e viver debaixo de um tecto, em vez de ficar a céu aberto); por outro lado, como factor de produção para produzir outros bens e serviços...» E mais adiante: «Historicamente, as primeiras formas de acumulação capitalística envolvem quer os instrumentos (sílex, etc.) e os equipamentos agrícolas (cercas, irrigação, drenagem, etc.), quer as habitações rudimentares (grutas, tendas, cabanas, etc.), antes de assumirem formas cada vez mais sofisticadas de capital industrial e profissional e de habitações cada vez mais elaboradas». Eis-nos mergulhados por Piketty numa história da humanidade em que o capital está presente desde os primórdios.



Para Piketty o capital está presente desde os primórdios da humanidade

Esta confusão essencial reflecte-se na análise exposta ao longo do livro O Capitalismo no Século XXI. Para Thomas Piketty, um apartamento no valor de 80 000 € ou um depósito de 2 000 € numa conta bancária [2] constituem um capital, à semelhança de uma fábrica ou um estabelecimento comercial de 125 milhões €. É claro que na vida corrente o sr. e a sra. Sicrano consideram que possuem um capital sob a forma de apartamento, no valor de 80 000 €, ao qual acresce um seguro de vida de 10 000 € e talvez mais 2 000 € numa conta a prazo. Estes bens seriam por isso concordes com a definição fornecida por Piketty, pelos manuais de economia tradicional e pelo banco. Mas estão enganados, pois na sociedade capitalista o capital não se reduz a isto; é uma relação social que permite a uma minoria (o 1 % mais rico, se quisermos atribuir um número) enriquecer, apropriando-se do trabalho alheio.

Ora, quando Piketty fala de um imposto progressivo sobre o capital, tem em vista todos os patrimónios privados, sejam eles 1.000 € numa conta bancária ou a fortuna de Lakshmi Mittal, de Jeff Bezos, de Bill Gates ou de Elon Musk.

A confusão continua quando se fala de rendimentos: o rendimento resultante do aluguer de um apartamento modesto ou o rendimento obtido por um reformado da sua conta no banco são considerados por Piketty como rendimentos do capital, em pé de igualdade com o rendimento que Mark Zuckerberg extrai do Facebook.

Idem quanto ao rendimento que um reformado obtém da sua conta bancária (se tiver 10 000 € a 2 % de juros, obtém daí 200 € por ano), Piketty considera-o um rendimento do capital, por mais pequeno que seja.

Quando se fala de salários, Thomas Piketty considera que todos os rendimentos declarados como salário são salário, quer se trate do director-geral de um banco com um salário de 3 milhões € por ano ou de um empregado/a do banco que ganha 30 000 € por ano.

Temos de pôr em questão o sentido atribuído por Piketty a palavras como «capital» ou «trabalho» e definir de outra maneira o que entendemos serem rendimentos do capital e rendimentos do trabalho.

Por exemplo, o rendimento extraído de um bem alugado, de um depósito bancário ou de acções de uma empresa não deve ser considerado como rendimento do capital a não ser a partir de um certo montante. na mesma ordem de ideias, um património abaixo de determinado montante não deveria ser considerado capital.

Por outro lado, se quisermos compreender como o 1 % acumula capital, temos de ir mais longe que reflexões deste género: «Dado que o capital desempenha um papel útil no processo de produção, é natural que tenha um rendimento» [3].

A confusão lançada por Thomas Piketty deve sem dúvida ser vista à luz das suas convicções: «Não me interessa denunciar as desigualdades ou o sistema capitalista enquanto tal, (...) as desigualdades sociais não levantam problemas em si mesmas, por pouco justificadas que possam ser, quando fundadas no bem comum Bem comum Em economia, os bens comuns caracterizam-se pelo modo de propriedade colectiva, distinguindo-se da propriedade privada e da propriedade pública. Em filosofia, designam o que é partilhado pelos membros duma comunidade, do ponto de vista jurídico, político ou moral. (...) [4].

A crítica das definições dadas por Piketty não retira miniimamente o interesse do monumental quadro onde ele desenha a evolução das desigualdades em matéria de património e de rendimento ao longo dos dois últimos séculos.


Notas

[1Cap. 6, p. 337 da ed. francesa - Thomas Piketty, O Capital no Século XXI, ed. Círculo de Leitores, 2014, 912 pp.; ed. Amazon/Intrínseca, 2014; ed. Intrínseca, Rio de Janeiro, 2014. 669 pp. Todas as referências por página apresentadas ao longo desta série de artigos referem-se à paginação da edição francesa: Le capital au XXIe siècle, Le Seuil, 2013, 970 pp.

[2Note-se que, segundo Piketty, os montantes depositados em França nas contas a prazo, nos depósitos à ordem, etc., apenas representam 5 % do património (privado)! p. 330.

[3Cap. 11, p. 674.

[4«Introdução», p. 62.

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