Syriza, Podemos e os movimentos na Europa contra a dívida ilegítima

2 de Fevereiro de 2016 por Eric Toussaint


Photo from Flickr - CC - by Nana B Agyei

Éric Toussaint na Assembleia Cidadã Europeia sobre a dívida [1]



A necessidade de um Plano B na Europa

Dada a capitulação do governo grego em Julho/2015 perante os credores e as instituições europeias, é necessário avançar na elaboração de um plano B. Para resolver os problemas duma sociedade e romper com as orientações neoliberais que são aplicadas há decénios, é necessário ao mesmo tempo aplicar medidas de ordem fiscal – não apenas para retirar o máximo possível aos ricos e repor os fundos do Estado, mas também para reduzir drasticamente as taxas e impostos injustos que incidem sobre a maioria da população –, pôr em marcha medidas ao nível da dívida, estabelecer novas normas para o sector bancário, instaurar medidas visando uma moeda complementar – sobretudo para os países da zona euro Zona euro Zona composta por 18 países que utilizam o euro como moeda: Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Espanha, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Irlanda, Itália, Letónia (a partir da 1-01-2014), Luxemburgo, Malta, Países Baixos, Portugal, Eslováquia e Eslovénia. Os 10 países membros da União Europeia que não participam na zona euro são: Bulgária, Croácia, Dinamarca, Hungria, Lituânia, Polónia, República Checa, Roménia, Reino Unido e Suécia. , mas não só – e, evidentemente, revogar uma série de medidas de austeridade injustas, lançando um processo constituinte assente na participação activa dos cidadãos e das cidadãs. Se nos reunimos numa assembleia cidadã europeia sobre a dívida, não é para constituir uma espécie de contingente que em todos os debates vem à carga com o tema da dívida e repete eternamente o mesmo discurso; é para reflectir entre nós, entre todas as organizações e movimentos que participam ao mesmo tempo no movimento da dívida e no movimento conjunto que resiste contra o neoliberalismo, a fim de fazer convergir as lutas, sem deixar de integrar as reivindicações e alternativas que propõem a rejeição das dívidas ilegítimas.


O movimento pela auditoria cidadã da dívida é ainda muito jovem na Europa

Na Europa, o movimento por uma auditoria cidadã da dívida é jovem, não existe há mais de 4 anos. Trata-se de um movimento novo que é necessário consolidar. Dou-vos algumas datas: o movimento na Grécia nasceu em Março-Abril/2011 – a auditoria cidadã da dívida grega, conhecida como ELE na Grécia – e, para o lançar, éramos 3000 em Maio/2011, reunidos na universidade de Atenas. A seguir ecoou, ou desenvolveu-se quase em simultâneo, em Espanha, no quadro do movimento dos Indignados, nomeadamente, a comissão económica da Puerta del Sol, que, em Madrid, começou a colocar a questão da dívida, a pôr em causa a legitimidade da dívida e a recorrer ao instrumento da auditoria cidadã. No embalo do movimento dos Indignados nasce a plataforma de auditoria cidadã da dívida (ver o sítio da PACD). Depois, o movimento da dívida chega a Portugal, onde se inicia um debate sobre o pagamento da dívida, recorrendo, numa primeira fase, à auditoria. Dá-se uma primeira conferência em Junho/2011 em Lisboa, donde resultou a criação da Iniciativa Auditoria Cidadã (IAC) da dívida em dezembro/2011 (ver o sítio da IAC). A IAC publicou um primeiro relatório em 2012 (ver em português ou em francês com anotações). Em França, o movimento nasceu em setembro/2011, depois de a Attac e o CADTM em França se terem posto de acordo com uma série de movimentos, para lançarem o Colectivo de Auditoria Cidadã (CAC, ver texto de referência, em francês). A Bélgica precisou de um pouco mais de tempo: a auditoria cidadã da dívida (ACiDe) nasceu em fevereiro/2013 (ver site em francês).

À escala da Europa e do Mediterrâneo, a primeira tentativa de coordenação das iniciativas de auditoria cidadã foi realizada em Bruxelas em abril/2012, quando foi constituída a ICAN (International Citizen Audit Network – rede internacional de auditoria cidadã; ver notícia em francês) por convite do CADTM Europa. A primeira reunião euro-mediterrânica da rede de auditoria cidadã das dívidas realizou-se em 7/abril/2012 em Bruxelas. Foram 12 os países representados: Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha, Itália, Polónia, Reino Unido, França, Alemanha, Bélgica, Egipto e Tunísia. Em todos estes países tinha nascido um processo de auditoria cidadã da dívida ou uma campanha contra a austeridade que incluía a problemática da dívida (ver «Coordenação de esforços na Europa e no Norte de África para lutar contra a dívida e a austeridade»).

Este novo movimento deparou com problemas desde o início. Uma série de forças políticas radicais dizia «para quê auditar a dívida, o que é preciso é anulá-la, auditar é uma forma de legitimar a dívida»; os representantes dessas forças abandonam o movimento e recusam dar apoio à auditoria cidadã da dívida. Na Grécia, a maioria da esquerda radical decidiu não apoiar a auditoria cidadã da dívida (tanto a coligação de esquerda radical Antarsya como uma boa parte do Syriza e o Partido Comunista, chegando este ao ponto de nos tratar como inimigos). Felizmente havia alguns apoiantes provenientes de organizações de esquerda (uma parte do Syriza, uns quantos militantes do NAR membros do Antarsya, alguns sindicalistas), mas na sua maioria eram pessoas ou organizações cívicas que estavam a mobilizar-se pela questão da dívida, sem apoio das organizações políticas. Continuamos à espera que as organizações políticas gregas, que se recusaram apoiar a auditoria cidadã da dívida, nos digam, depois de lerem o relatório publicado em junho/2015 e o relatório de setembro/2015, se o nosso trabalho serviu para legitimar uma parte da dívida ou não. O que é certo é que se essas organizações, em vez de nos criticarem ou de se contentarem em ficar na plateia a assistir, tivessem participado na auditoria e apresentassem argumentos a favor da anulação, teriam certamente reforçado os esforços de quem queria realmente pôr em prática uma alternativa à capitulação de Alexis Tsipras e do seu governo.

De todos os países vieram problemas semelhantes. Quanto aos governos, é claro que não nos viram com bons olhos. Como disse Zoé Konstantopoulou, que presidiu o parlamento grego de fevereiro a setembro/2015 (ver vídeo da sua intervenção em inglês), os governos não querem auditar a dívida porque não querem pôr radicalmente em causa a sua legitimidade, o seu carácter odioso, a sua sustentabilidade do ponto de vista dos direitos humanos. O mais irónico disto tudo é que existe um regulamento europeu, desde março/2013, que intima os Estados sujeitos a ajuda financeira a auditar a dívida [2]. Até hoje, nenhum governo tomou a iniciativa de começar essa auditoria e menos ainda de a levar a cabo. Felizmente a presidente do Parlamento grego decidiu em março/2015 avançar, no seguimento da auditoria da dívida (ELE) [3]. No início a presidente conseguiu obter o apoio do Governo, mas este acabou por não utilizar a arma da auditoria nem se apoiou nas conclusões do relatório preliminar publicado em junho/2015 para enfrentar os credores.


Uma das lições da Grécia: o movimento social não exerceu pressão suficiente sobre os partidos de esquerda, nomeadamente o Syriza

Uma das lições fundamentais do que se passou na Grécia é que o movimento de auditoria cidadã, que tinha começado muito bem em 2011, não se reforçou suficientemente; não manteve nem criou a pressão necessária – sobre todas as forças políticas e não apenas sobre o Syriza – para conseguir que, em caso de ascensão ao poder, a participação cidadã constituísse uma obrigação, uma prioridade incontornável, numa auditoria da dívida. E, no entanto, este ponto fazia parte do programa do Syriza nas eleições de maio-junho/2012.

O Syriza obteve 4 % nas eleições de 2009; em maio/2012 arrecadou 16 % dos votos e 26,5 % um mês mais tarde, ficando apenas 2 pontos abaixo da Nova Democracia (o maior partido da direita). O Syriza tornou-se assim o segundo maior partido da Grécia. Entre os dois actos eleitorais, Tsipras avança com 5 propostas concretas para entrar em negociações com todos os partidos que se opunham à Troika Troika A Troika é uma expressão de apodo popular que designa a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional. (excepto a Aurora Dourada, que, embora se opusesse ao memorando, foi excluído):
1. revogação de todas as medidas anti-sociais (incluindo os cortes nos salários e reformas);
2. revogação de todas as medidas que limitaram os direitos dos trabalhadores em matéria de protecção e negociação;
3. revogação imediata da imunidade parlamentar e reforma do sistema eleitoral;
4. uma auditoria aos bancos gregos;
5. constituição de uma comissão internacional de auditoria da dívida combinada com a suspensão do pagamento da dívida até ao fim do trabalho dessa comissão.

Não houve pressão suficiente sobre o Syriza por parte dos movimentos cívicos para dizer que estes 5 pontos têm de manter-se prioritários. O compromisso de realizar uma auditoria da dívida e suspender o pagamento durante a sua realização desapareceu progressivamente do discurso de Alexis Tsipras e dos outros dirigentes do Syriza [4]. De forma discreta, a quinta medida proposta por Tsipras em maio/2012 (ver mais acima) foi substituída pela proposta de fazer uma conferência europeia para, designadamente, reduzir a dívida grega. Quando o Syriza constituiu governo após a sua vitória eleitoral em 25/janeiro/2015, a suspensão do pagamento da dívida e a auditoria já tinham sido metidas na gaveta. Isto vem reforçar a nossa ideia de que é necessário consagrar energias ao reforço das iniciativas de auditoria cidadã, a fim de que as forças políticas que se candidatam à governação se comprometam firmemente a adoptar medidas enérgicas para enfrentar o desafio do reembolso da dívida ilegítima.


Lições a tirar da experiência de auditoria e da suspensão do reembolso da dívida no Equador

Participei na comissão de auditoria equatoriana constituída pelo governo equatoriano em julho/2007. Trabalhámos de julho/2007 a setembro/2008 e, com base nas nossas conclusões (ver «Equateur : La CAIC a proposé à Rafael Correa de suspendre le paiement de près de la moitié de la dette»), o Governo suspendeu o pagamento duma parte da dívida e impôs uma derrota aos credores. Isto permitiu ao Estado economizar 7000 milhões de dólares que foram reinvestidos em gastos sociais e constitui uma vitória total do Equador no quadro duma suspensão parcial. Mas não caiu do céu, tinha sido montada uma campanha desde 2000. Estava em curso há 6 anos uma batalha para demonstrar à população que a dívida era uma questão central no caso equatoriano. Começou-se com uma coisa muito concreta: um país como a Noruega exige ao Equador o pagamento de uma dívida que serviu para comprar 5 barcos de pesca. Que aconteceu aos 5 barcos de pesca entregues pela Noruega ao Equador? Os activistas equatorianos do movimento contra a dívida demonstraram que esses navios foram transformados em barcos para transportar bananas em proveito de um grande exportador privado equatoriano. Este problema foi atacado em 2000. Mas quem estava dentro deste movimento? Estava, nomeadamente, Ricardo Patiño, actual ministro dos Negócios Estrangeiros, depois de ter sido ministro da Economia e das Finanças à época em que realizámos a auditoria em 2007-2008. Ou seja: entre as pessoas que dirigiram a iniciativa de auditoria cidadã, houve quem ocupasse a seguir cargos de governação e respeitasse o compromisso de resolver o problema da dívida ilegítima. Ao menos é preciso reconhecer que nessa questão foram coerentes e corajosos. Impuseram, a partir do Governo, um primeiro acto unilateral: lançar uma comissão de auditoria que não era desejada nem pelos credores nem pela comunidade internacional. A seguir impuseram um segundo acto unilateral com base nos resultados da comissão de auditoria: a suspensão, sem pedir autorização a ninguém, do pagamento da dívida. Ora isto aconteceu numa situação peculiar: o Equador tinha meios para reembolsar a dívida. Por isso, foi particularmente escandaloso para os credores que o Equador dissesse: «Vou parar de reembolsar a dívida que identifiquei como ilegítima, apesar de ter dinheiro proveniente do petróleo para a pagar. Eu, Estado equatoriano, quero que as receitas petrolíferas sirvam a população e não os credores ilegítimos.» Isto foi possível no Equador porque foi construída uma relação de forças políticas a partir das bases, até chegar ao poder, e porque o presidente da República e vários ministros em cargos chave eram a favor de forçar os credores a fazerem concessões. O que acabo de descrever vale pelo menos para os três primeiros anos de governo, ou seja para o período 2007-2009.


Lição para o Podemos em Espanha

Se esta lição fosse aplicada noutros países, a começar pela Espanha, daríamos um grande passo em frente: impedir que o Podemos e outras forças aliadas, caso venham a fazer parte dum governo, ponham de parte a questão da dívida em nome da realpolitik; submeter o Podemos e forças suas aliadas à pressão dos cidadãos espanhóis; levar os movimentos que os sustentam a não reduzir a pressão e a actividade sobre a questão da dívida. Se a plataforma de auditoria cidadã da dívida (PACD) em Espanha não mantiver as forças e a dinâmica que teve em 2011-2012, os dirigentes do Podemos podem dizer: «Afinal a dívida ilegítima não é uma questão central.» A pressão dos meios de comunicação espanhóis sobre o Podemos e seus aliados é muito forte; eles dizem: «se o Podemos chegar ao Governo, vai ser tão mau como na Grécia». Perante isto, uma série de dirigentes do Podemos tenta contornar a questão dizendo que a Espanha não tem um verdadeiro problema de reembolso da dívida. Insistem no facto de a Espanha se financiar sem problemas no mercado, enquanto a Grécia deixou de ter acesso a essa fonte de financiamento. Portanto, os dirigentes do Podemos afirmam que em Espanha o reembolso da dívida pública Dívida pública Conjunto dos empréstimos contraídos pelo Estado, autarquias e empresas públicas e organizações de segurança social. não constitui um problema grave. Fazem mal, tanto mais quanto diversos factores que tornam o reembolso da dívida sustentável podem vir a deteriorar-se. Um desses factores consiste nos problemas de saúde dos bancos. Se os movimentos sociais, os membros do Podemos e outras forças de esquerda desleixarem a questão da dívida em Espanha, iremos ter outra experiência decepcionante como na Grécia. Por conseguinte, é preciso manter presente este combate e mobilizar sem poupar as energias investidas nessa batalha.


A necessidade de os governos de esquerda recorrerem a actos unilaterais de autodefesa

Outra lição a tirar das experiências grega e equatoriana é a necessidade de lançar actos unilaterais de autodefesa. O termo «unilateral» não nos agrada à partida, por sermos a favor de acções conjuntas, do multilateralismo. Denunciamos o unilateralismo dos EUA, que impõem ao resto do mundo os seus interesses. Recusamos o unilateralismo do Estado de Israel, que viola uma série de resoluções da Carta das Nações Unidas e que oprime o povo palestiniano. No entanto, o unilateralismo dos oprimidos é um direito absolutamente fundamental. Um governo que chega ao poder apoiado na legitimidade popular tem o dever de resistir às instituições que impõem o reembolso duma dívida ilegítima, ilegal, insustentável ou odiosa. Um governo que chega ao poder graças ao apoio popular tem de ter a coragem de executar o acto unilateral da suspensão do pagamento.

A quem afirma que se a Grécia não pagar a dívida vai ser um drama, é preciso responder que a Grécia, ao não suspender o pagamento da sua dívida a partir de fevereiro/2015, gastou 7000 milhões de euros para reembolsar os seus credores, ao passo que o plano de luta contra a crise humanitária custa 200 milhões de euros. Trata-se portanto de 200 milhões contra 7000 milhões! Esvaziaram-se os cofres da Grécia em fevereiro e junho/2015 para reembolsar os credores, que não estavam dispostos a fazer qualquer concessão.

Quando reembolsamos um credor, a nossa dívida não constitui qualquer problema para o credor. Como diz o ditado inglês com toda a razão, se temos uma dívida de 1000€ ao banco e não a podemos reembolsar, o problema é nosso; se temos uma dívida de 10 milhões ao banco e suspendemos o reembolso, o problema é do banco.

Recordemos que, três semanas após a vitória eleitoral do Syriza e a constituição do governo dirigido por Alexis Tsipras, a Grécia foi confrontada com a recusa rotunda dos credores, representados pelo socialista holandês Jeroen Dijsselbloem, de ter em conta a vontade popular. O Eurogrupo, que daí em diante iria representar a Troika na negociação com o governo grego, declarou, em suma: «pouco importam as eleições de 25 de janeiro; eu decido que: 1) a Grécia continua a reembolsar a dívida; 2) o programa de austeridade prolonga-se até ao fim de junho/2015 e vocês apresentam propostas para demonstrarem que são bons alunos e respeitam a austeridade e a via das reformas neoliberais. Depois logo vemos se aprovamos as vossas propostas». Se Tsipras e Varoufakis, em nome do Governo grego, tivessem invertido as coisas e declarado por altura de 20/fevereiro: «demonstrámos boa vontade durante as negociações que acabam de se desenrolar durante 3 semanas; mas vocês nada ofereceram, não tiveram em conta o mandato que o povo grego nos deu, portanto, suspendemos o pagamento e aplicamos o parágrafo 9 do artigo 7 do regulamento 472, de 21/maio/2013, que intima um Estado sujeito a assistência financeira a realizar uma auditoria da dívida [5]. E durante a auditoria suspendemos o pagamento. Logo se verá 1) se começam a ter em conta a vontade do povo grego e 2) se estão de boa-fé em relação a nós». Se Tsipras tivesse actuado assim, a relação de forças teria sido alterada.

Chama-se a isto um acto unilateral de autodefesa. No tipo de situação vivida pela Grécia, se não houver actos unilaterais dos devedores, nada de positivo virá do lado dos credores.

Agora que o Governo grego capitulou, que irá acontecer à dívida grega? Não é de todo impossível que os credores tenham um pequeno gesto de simpatia, caso o governo Tsipras II aceite os ditames do Eurogrupo e do BCE Banco central europeu
BCE
O Banco Central Europeu é uma instituição europeia sediada em Francoforte e criada em 1998. Os países da zona euro transferiram para o BCE as suas competências em matéria monetária e o seu papel oficial de assegurar a estabilidade dos preços (lutar contra a inflação) em toda a zona. Os seus três órgãos de decisão (o conselho de governadores, o directório e o conselho geral) são todos eles compostos por governadores dos bancos centrais dos países membros ou por especialistas «reconhecidos». Segundo os estatutos, pretende ser «independente» politicamente, mas é directamente influenciado pelo mundo financeiro.
, mas jamais renunciarão à maior parte da dívida que reclamam da Grécia, pois é essa a sua arma de chantagem. O mais provável é que os credores, no melhor dos casos, ajustem o calendário de reembolsos, adiando alguns prazos de pagamento.


É preciso ler o relatório elaborado pela Comissão para a Verdade sobre a Dívida Grega (CVDG)

É muito importante ler com atenção o relatório elaborado pela Comissão para a Verdade sobre a Dívida Grega (ver aqui em francês, em inglês ou em castelhano; ver em português: resumo do relatório e secção sobre os fundamentos jurídicos da suspensão). Ao longo dessas 65 páginas poderão encontrar argumentos e definições essenciais.

A Comissão é constituída por 30 pessoas provenientes de 11 países. Entre os seus membros encontramos eminentes especialistas em direito internacional, economistas, um antigo presidente de banco central Banco central Estabelecimento que, num Estado, tem a seu cargo em geral a emissão de papel-moeda e o controlo do volume de dinheiro e de crédito. Em Portugal, como em vários outros países da zona euro, é o banco central que assume esse papel, sob controlo do Banco Central Europeu (BCE). , auditores e auditoras das contas públicas, ex-responsáveis de bancos, delegados dos movimentos sociais que possuem competências em diversos domínios e que conhecem bem o impacte das políticas impostas pelos credores à Grécia. Uma das primeiras tarefas a que a Comissão se dedicou foi a de chegar a um acordo em termos de referências (consultar aqui) e definições: o que é uma dívida ilegal, uma dívida ilegítima, uma dívida odiosa Dívida odiosa Segundo a doutrina, para que uma dívida seja considerada odiosa, e portanto nula, tem de preencher as seguintes condições:

1. Foi contraída contra os interesses da Nação ou contra os interesses do povo ou contra os interesses do Estado.
2. Os credores não conseguem demonstrar que não podiam saber que a dívida foi contraída contra os interesses da Nação.

É preciso sublinhar que, segundo a doutrina da dívida odiosa, a natureza do regime ou do governo que contraiu a dívida não é particularmente importante, pois o que conta é a utilização dada à dívida. Se um governo democrático se endividar contra o interesse da população, a dívida pode ser qualificada odiosa, desde que preencha igualmente a segunda condição. Por consequência, e contrariamente a uma interpretação errada desta doutrina, a dívida odiosa não se aplica apenas aos regimes ditatoriais. (Ver Éric Toussaint, «A Dívida Odiosa Segundo Alexandre Sack e Segundo o CADTM»)

O pai da doutrina da dívida odiosa, Alexander Nahum Sack, diz claramente que as dívidas odiosas podem ser atribuídas a um governo regular. Sack considera que uma dívida contraída por um governo regular pode ser considerada incontestavelmente odiosa, desde que preencha os dois critérios acima apontados.

E acrescenta: «Se estes dois pontos forem confirmados, cabe aos credores o ónus de provar que os fundos envolvidos nos referidos empréstimos foram utilizados não para fins odiosos, prejudiciais à população do Estado, no seu todo ou em parte, mas sim para as necessidades gerais ou especiais desse Estado, e não apresentam carácter odioso».
Sack definiu um governo regular da seguinte forma:
«Deve ser considerado regular o poder supremo que existe efectivamente nos limites de um dado território. É indiferente ao problema em foco que esse poder seja monárquico (absoluto ou limitado) ou republicano; que proceda da “graça de Deus” ou da “vontade do povo”; que exprima a “vontade do povo” ou não, do povo inteiro ou apenas de uma parte deste; que tenha sido estabelecido legalmente ou não.»

Portanto não restam dúvidas sobre a posição de Sack, todos os governos regulares, sejam eles despóticos ou democráticos, em todas as suas variantes, são susceptíveis de contraírem dívidas odiosas.
, uma dívida insustentável (ver definições aqui). Estas definições e termos de referência, embora possam ser aperfeiçoados, são úteis para a auditoria noutros países.


Anular a dívida ilegítima é uma condição sine qua non mas não basta

Resolver o problema da dívida ilegítima é uma das condições sine qua non para a ruptura com as políticas de austeridade, mas não a única. As alternativas têm de consistir num plano integrado e coerente que inclui a auditoria e a suspensão do pagamento da dívida; a resolução da crise bancária, que passa pela socialização da banca (na Grécia devia ter-se declarado a falência dos bancos privados e a criação de um sistema bancário público socializado são e protector dos depósitos); o lançamento de uma moeda complementar; medidas fiscais muito fortes para obrigar os ricos a pagar e para diminuir a carga fiscal que pesa sobre os pobres; a revogação das medidas socialmente injustas; o fim das privatizações e a desprivatização; o reforço dos serviços públicos; a repartição do tempo de trabalho; a criação de medidas para a transição ecológica. Em caso de saída do euro, é preciso combinar a saída com uma reforma monetária redistributiva (ver parte final do texto «Une alternative pour la Grèce»). É preciso também lançar um processo constituinte para modificar de forma democrática a Constituição do país. Nos nossos países, é preciso mudar as constituições nacionais e refundar a Europa. Significa isto revogar tratados inaceitáveis. A questão do processo constituinte implica uma grande participação popular: os cidadãos e cidadãs têm de voltar a assenhorear-se da questão política e das escolhas políticas; e para readquirirem o controlo, é preciso redefinir as Constituições. Esta é uma das lições que deve ser colhida na América Latina, onde encontramos processos constituintes muito ricos, em 2009-2010-2011, tanto na Venezuela (1999), como na Bolívia (2006-2008), como Equador (2007-2008), que permitiram integrar na Constituição equatoriana pontos tão importantes como a proibição total de socializar as perdas privadas.


É preciso encarar de frente o problema das dívidas privadas ilegítimas

Tanto Bélgica como em França as dívidas privadas ilegítimas ainda não constituem um tema central, mas em Espanha não falar da dívida hipotecária ilegítima exigida a centenas de milhares de famílias espanholas significa passar em branco uma injustiça fundamental. Entre 2008 e o segundo trimestre de 2015, foram dadas 416.332 ordens de despejo contra as famílias que já não conseguiam reembolsar as suas dívidas hipotecárias. Os despejos são uma das consequências da crise, mas a lei que as autoriza é muito anterior. Trata-se da «lei hipotecária» imposta por decreto durante a ditadura de Franco em 1946 e ainda em vigor [6].

O que é necessário acontecer para que pessoas humilhadas, sobreendividadas, exploradas pelos bancos, expulsas do seu lar, mas que, apesar disso, continuam a dever uma parte da dívida, se mobilizem para travar o pagamento da dívida pública do Estado? Se foram derrotadas na sua luta pessoal por não haver um movimento de resistência suficientemente forte para impedir os despejos, corre-se o risco de que essas pessoas não tenham forças para continuarem a lutar e passem a considerar que a questão da dívida pública ilegítima não lhes diz respeito. Felizmente, em Espanha desenvolveu-se um amplo movimento contra os despejos das habitações a partir de 2010. A coordenadora dos afectados pelas hipotecas (PAH) diz claramente que «numerosas cláusulas abusivas acompanham os empréstimos e os bens hipotecários enquanto garantia foram absolutamente sobreavaliados e deviam à partida ser considerados produtos financeiros Produtos financeiros Produtos adquiridos durante o exercício duma empresa que dizem respeito a elementos financeiros (títulos, contas bancárias, divisas, investimentos de capital). tóxicos». Ada Colau, a nova presidente da autarquia de Barcelona desde 2015, ganhou relevo ao tornar-se uma das animadoras do movimento que se opõe aos despejos forçados e ao participar em muitas acções de ocupação dos bancos (ver biografia).

No Reino Unido, onde a reforma neoliberal teve início antes do restante continente europeu, não falar da dívida ilegítima dos estudantes significa passar ao lado dum tema essencial (ver explicação aqui). O mesmo se passa nos EUA, onde a dívida reclamada aos estudantes representa mais de um bilião de dólares e onde, depois de rebentar a crise, 14 milhões de famílias foram despejadas dos seus lares, das quais pelo menos 500.000 de forma ilegal. Numerosas famílias ajudadas pelos movimentos sociais – entre os quais se conta Strike Debt – reagiram organizando-se para resistir aos representantes das autoridades que pretendiam despejá-las [7]. Milhares de queixas foram instauradas contra os bancos. Durante os anos 2010-2015, as autoridades dos EUA fizeram acordos com os bancos para evitar a condenação destes em tribunal em consequência do escândalo dos créditos Créditos Montante de dinheiro que uma pessoa (o credor) tem direito de exigir a outra pessoa (o devedor). hipotecários e dos despejos ilegais, de modo que os bancos apenas tiveram de pagar uma simples multa [8].

Na Bélgica, ainda que a problemática do sobreendividamento das famílias empobrecidas não tenha adquirido as proporções dramáticas a que chegou nos EUA, na Grécia ou em Espanha, 352.270 famílias não conseguiram reembolsar as suas dívidas (facturas de energia, hipotecas, etc.) em 2015 [9] e as taxas de endividamento médio (em relação aos rendimentos) não param de aumentar desde o início da crise. É claro que a austeridade contribui para o aumento do endividamento das famílias mais vulneráveis. Partindo da constatação que a questão do sobreendividamento é impossível de solucionar de forma individual, nasceu uma nova iniciativa no início deste ano para levantar a questão duma auditoria e da anulação das dívidas privadas ilegítimas, reunindo à volta da mesa o CADTM, o Réseau Wallon de luta contra a pobreza, o Centro de apoio ao serviço de mediação de dívidas de Bruxelas, outras associações e pessoas sobreendividadas.

Se sairmos dos países mais industrializados, chegamos à conclusão que a problemática das dívidas privadas ilegítimas constitui também um desafio para os movimentos que lutam contra o sistema da dívida. Na Índia há mais de 300.000 camponeses sobreendividados que se suicidaram nos últimos 15 anos (ver artigo em inglês). Em Marrocos, as vítimas do microcrédito abusivo organizaram-se com o apoio da Attac/CADTM de Marrocos [10].


Conclusão

Não é tempo de tergiversar sobre as possibilidades de negociação com os credores das dívidas ilegítimas. Tornou-se claro desde há anos que eles não estão dispostos nem a compromissos nem a arranjos amigáveis, preferindo lançar mão de todos os meios ao seu alcance para maximizar os seus lucros, sem olhar aos custos humanitários pagos pelas populações, de Atenas a Deli, dos campus americanos às ruas de Bamako. Também não podemos contar cegamente com a boa vontade de partidos políticos da esquerda radical, ainda que sejam porta-estandartes duma esperança que se tornou cada vez mais rara – o Syriza é a prova acabada. Só uma mobilização massiva, à volta de reivindicações decisivas, permitirá uma mudança real e duradoura em direcção a uma sociedade mais igualitária, respeitadora da natureza e dos direitos fundamentais de todos os seres humanos.

Tradução: Rui Viana Pereira
Revisão: Maria da liberdade


Notas

[1Este texto foi elaborado a partir da exposição oral apresentada na conferência europeia sobre a dívida, realizada a 16/outubro/2015 em Bruxelas. Ver o relatório do secretário-geral dessa jornada: http://cadtm.org/Compte-rendu-de-la-conference. O autor agradece a Noémie Cravatte, Damien Millet, Rémi Vilain, Brigitte Ponet, Jérémie Cravatte e Pierre Gottiniaux a colaboração prestada.

[2Ver artigo de Éric Toussaint, publicado em 22/janeiro/2015, em francês, em inglês ou em espanhol.

[4Ver explicação destes acontecimentos em: Éric Toussaint, «Grèce : pourquoi la capitulation ? Une autre voie est possible (texte de la vidéo avec notes explicatives)», publicado em 27/agosto/2015.

[5«Os Estados-Membros sujeitos a programas de ajustamento macroeconómico devem realizar uma auditoria exaustiva às suas finanças públicas, a fim de, designadamente, avaliar os motivos que levaram à acumulação de níveis excessivos de dívida e detetar eventuais irregularidades», in Regulamento (UE) n.° 472/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2013, «relativo ao reforço da supervisão económica e orçamental dos Estados-Membros da área do euro afectados ou ameaçados por graves dificuldades no que diz respeito à sua estabilidade financeira».

Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

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